No momento em que se senta e respira fundo para atender o Maisfutebol, Saná está a voltar de mais uma viagem solidária, de mais um ato de heroísmo. É assim, aliás, há mais de três meses. O vice-campeão do Mundo de Sub20 por Portugal em 2011, voltou ao país de origem para ajudar quem nada tem. Está chocado com o que o rodeia e envergonhado por não poder fazer mais.

«A Guiné vive uma situação de miséria. Essa é a realidade. A população não está bem, há muita pobreza. Eu reconheço a minha origem. Conheci a Europa. Joguei na seleção de Portugal, mas sei viver a minha realidade. A minha família vive na pobreza. E se vive na pobreza eu também vivo na pobreza. É o compromisso que eu tenho, a minha dívida com a Guiné», diz Saná, sentado numa cadeira velha, encostado a uma parede de amarelo desbotado. 

Voltemos atrás. Saná tinha 15 anos quando deixou Bissau para jogar no Benfica. Destacou-se nas águias, chegou às seleções jovens portuguesas e rumou ao Servette pouco antes do Campeonato do Mundo de Sub20, em 2011.

Saná leva o sorriso a quem mais precisa em Bissau

Mais ou menos pela mesma altura, Saná perdeu a mãe. A agonia que sentiu nos olhos da progenitora jamais o abandonou. É por ela, e pelo resto da família, que procura entregar aos que vivem na miséria aquilo que o futebol profissional lhe deu. 

«Se joguei no Benfica e na seleção de Portugal, isso aconteceu porque a Guiné-Bissau mo permitiu. Não podia estar a comer um prato de bacalhau quando a minha família não o pode fazer. Não consigo», afirma Saná, palavras convictas, discurso duro. 

«Faço este trabalho social há cerca de dez anos. Vi o sofrimento da minha mãe antes de falecer. As condições de miséria no Hospital Simão Mendes são impressionantes. Eu assisti a tudo e desde esse momento decidi que tinha de ajudar, de fazer alguma coisa.»

Saná com a camisola da Seleção Nacional de Sub20

«Não tenho dinheiro para comida e vou comprar máscara? Não!»

A Guiné-Bissau é um país em sobressalto. Eleição após eleição, polémica após polémica, um Estado conturbado. Quase dois milhões de habitantes divididos por credos, simpatias políticas e desportivas, mas unidos no absoluto nada. Os relatos de Saná são impressionantes. 

«Hoje acordei, fui ao Bairro Militar aqui em Bissau e visitei uma senhora que vive numa situação chocante. Levei-lhe arroz, óleo e cebolas para ela ter de comer. Está gravemente doente e não tem nada. O marido morreu e ainda tem dois miúdos em casa. Vou a essas pessoas e digo ‘estou aqui’. Não posso dar tudo, mas levo algumas coisas e peço-lhes para não desistirem e acreditarem em Deus.»

Saná tem hoje o conforto que na Guiné poucos têm. Não é rico, longe disso, mas tem o suficiente para comer e ajudar quem o rodeia. Uma pequena fortuna para quem nasceu num berço de desolação. 

«Já pedi esmola e já vendi fruta na rua. Fui ajudado, deram-me esmola para comer e por isso não posso ficar indiferente a quem precisa de ajuda agora. Não quero que os outros passem pela mesma miséria. Não posso fugir disso», clama Saná, rodeado por uma atmosfera de evidente necessidade.
 

«Os políticos mudam e a miséria é a mesma», diz Saná

«Vivo em Bissau. Ajudo pessoas de outros bairros, não quero saber de políticos. Somos todos guineenses. Vou atrás das pessoas que mais precisam. Não me importa que digam que sou mau futebolista. O mais importante para mim agora é ajudar. Se em Bissau, a capital, as coisas estão mal, imaginem no interior do país. Há zonas ainda sem água potável», protesta, desiludido com as poíticas e os políticos da Guiné. Um futebolista de coração grande. 

«Os governantes gostam de ocultar o que é importante, gostam de mentir. Não me interessa a política. O povo está a sofrer e tenho a obrigação de mostrar esse sofrimento ao mundo. O mais importante é a vida, o ser humano. Não consigo ficar indiferente à fome. Não têm um pouco de arroz em casa.»

Saná ainda está ligado aos romenos do Gloria Buzau, mas garante que a carreira no futebol está longe de ser uma prioridade nesta altura. Aos 28 anos, a alma puxa-o para outros cantos da existência, para outras causas.

«A maior parte da população da Guiné está a sofrer, está na miséria. Não defendo qualquer regime, nenhum político se importa com isto, pensam todos da mesma maneira. São todos iguais. Convido os ativistas guineenses a mostrarem os meus vídeos, a pobreza atroz do nosso país.»

Perguntamos a Saná onde estão as autoridades do país. Quem o ajuda a ajudar? Saná abana a cabeça e diz que nem nos hospitais as pessoas estão seguras. É tudo demasiado triste.

«Falta tudo nos hospitais. Médicos e medicamentos. Se alguém tem uma dor de cabeça ou uma dor de barriga, morre. Se tem de dar uma criança à luz, morre. Mas os governantes vão para China, para a Europa, para Portugal. Só eles é que podem ter a boa vida e a escola, os pobres não podem ter nada. No Estado de Emergência, a partir das 18 horas ninguém pode circular. Mas há exceções. Quem? Os senhores de sempre. E obrigam ao uso da máscara. Como? Não temos dinheiro para comida e vamos gastar o pouco que temos em máscaras? Não, prefiro comprar peixe e arroz para a minha família.»

Saná está a tentar levar água potável a todos os bairros de Bissau

«Quando morrer não quero que digam que fui um bom jogador, mas um bom homem»

Aos quatro anos na formação do Benfica e ao ano passado no Servette, Saná juntou uma participação importante no Mundial de Sub20 em 2011. Fez três jogos, incluindo 90 minutos na final contra o Brasil. Seguiu-se uma transferência para Espanha [Valladolid] e passagens apagadas por Sp. Braga, Ac. Viseu, Leixões e Olhanense. 

Uma carreira que não cumpriu as juras de 2011. Saná assente, sim senhor, mas não se mostra nada preocupado. «Quando morrer, não quero que digam que fui um grande jogador. Não, não, posso ser o pior de todos. Quero é deixar um bom exemplo na Guiné e que digam que fui um homem bom. Vamos morrer todos e não vamos levar nada connosco.»

O que se segue no percurso desportivo de Saná? «A liga romena foi interrompida e vim de férias para a Guiné. A pandemia apanhou-me em Bissau. Não sei se vou voltar para lá. Tenho algumas possibilidades para a próxima época. Para já quero ficar na Guiné. Ao longe não posso fazer nada pela minha gente.»

E Portugal? «Não tenho grandes contactos na liga portuguesa. O meu objetivo é jogar num país muçulmano. Quero aprender outras coisas para abraçar esse caminho no futuro. O Islão é muito importante na minha vida, mais do que o futebol nesta fase.»

Resta saber como apoiar Saná, como apoiar os cidadãos guineenses. Saná pede que entrem em contacto com ele e garante que todo o dinheiro ou comida será bem encaminhado.

«Quando me enviam dinheiro para ajudar os necessitados, faço sempre o vídeo para confirmar a entrega dessa ajuda. Faço isso por honestidade e respeito por todos. O Ivanildo e o Sami já ajudaram. Sei que o André Almeida, o Cedric Soares, o Nelson Oliveira, o Mário, o meu ‘pai’ Ilídio Vale, todos estarão disponíveis para ajudar a Guiné. Só posso agradecer a Portugal e aos meus amigos portugueses.» 

Saná, um anjo da guarda na Guiné-Bissau. As imagens não nos deixam mentir.