Muito antes de se sentarem no banco como treinadores e rivais, o que acontecerá pela segunda vez neste domingo no Sp. Braga-Sporting, com o terceiro lugar da Liga em jogo, Rúben Amorim e Silas jogaram juntos no meio-campo do Belenenses, numa equipa que chegou longe e deixou muito boas memórias. O Maisfutebol recuou a esses tempos do «menino» Rúben que dançava no balneário e gostava de pregar partidas e do capitão «Snake» Silas, que às vezes corrigia Jorge Jesus e também «cerrava a cara», num balneário do Belenenses cheio de histórias, contadas por quem as viveu com eles.

Passaram quase 15 anos desde que Silas, já com muita experiência acumulada, se juntou a uma equipa do Belenenses onde Rúben Amorim começava a afirmar-se, ele que fez a formação no Restelo. Se nessa temporada 2005/06 a equipa só se salvou da descida por causa do caso Mateus, na época seguinte, depois de chegar Jorge Jesus, tudo foi diferente. Em 2006/07 o Belenenses foi quinto na Liga, e chegou à final da Taça de Portugal, perdida para o Sporting, e apurou-se para a Taça UEFA.

Cândido Costa chegou já no final da pré-época de 2006, depois de deixar o Sp. Braga, e a primeira memória que guarda é a de um grande balneário. «Tínhamos um grande ambiente, muito bom, quer no balneário quer no campo. Uma equipa de jogadores muito experientes mesclada de juventude com muita qualidade. Gente que fazia um balneário incrível. Um grupo forte, daí que, treinados pelo Jorge Jesus, fizéssemos um campeonato muito positivo», conta o agora comentador ao Maisfutebol, lembrando como era esse meio-campo, que tinha ainda Zé Pedro, agora adjunto de Silas no Sporting: «O Silas tinha a tarefa de ser o desequilibrador em campo, além de ser o capitão de equipa, à frente do losango do Jorge Jesus. O Rúben a médio-direito, eu médio interior, o Zé Pedro médio esquerdo e o Silas atrás do ponta de lança.»

Amorim «de fraldas» e a alcunha de Silas

Amorim tinha 22 anos, Silas 30, oito anos de diferença, os dois em momentos muito diferentes da carreira, com estatutos e também personalidades distintas.  «O Rúben era muito jovem, o Silas era mais velho, o capitão», recorda Cândido. Ou, dito por Gaspar, o veterano defesa que estava no Belenenses desde a temporada 2005/06 e também partilha as memórias daqueles tempos: «O Rúben era um miúdo, ainda andava de fraldas... Ainda que isso não queira dizer muito. Conheci jogadores com 30 anos que eram jovens e outros com 21 e 22 que já têm muita experiência. O Silas era completamente diferente, já tinha outro calo, já tinha um conhecimento do jogo acima da média, ele e o Zé Pedro.»

Na segunda temporada no Restelo, Silas assumiu a braçadeira, com Zé Pedro como sub-capitão. «O Silas chega a capitão não só pelo que faz no balneário, mas principalmente pelo que fazia dentro do campo. O capitão é os olhos do treinador em campo», conta Gaspar. E já via o jogo para lá do óbvio. «Já aí se notava que alguma coisa ia dar. Seria um crime para o futebol colocá-lo a fazer outra coisa qualquer», diz. «Lembro-me de um exercício que o Jorge Jesus teve de alterar, porque o próprio Silas deu indicações de que o exercício era melhor de outra forma e ele concordou. Um pequeno grande exemplo de como o Silas já via o jogo de outra forma.» Há mais exemplo, um deles contado pelo próprio Silas, a recordar como sugeriu a Jesus mudar a tática num jogo com o FC Porto. Uma história surgida de uma conversa na TVI que juntou Silas, Zé Pedro e Cândido Costa a recordarem Jorge Jesus e esse Belenenses.

Cândido reforça a ideia: «O Silas era o líder da equipa e tinha coisas que dava para começar a perceber que era alguém que ia estar sempre no meio do futebol. Tinha gosto pelo treino, gostava muito do jogo, gostava muito de questionar, de treinar tática. Tinha aquilo que os líderes têm, a capacidade de questionar. Às vezes até chocava com o Jorge Jesus, também porque era capitão e tinha essa obrigação de confrontar o treinador com as ideias do grupo.»

Silas era «Snake» no balneário do Belenenses, revela Gaspar. A alcunha foi-lhe posta pelos colegas e o antigo defesa explica porquê: «Chamávamos-lhe snake. Cobra, não no sentido pejorativo, mas por fazer as coisas de forma astuta, levar as coisas de forma subtil.»

Como capitão, representava o grupo, em campo mas não só. A história foi contada pelo próprio Jorge Jesus, quando treinava o Sporting. Na pré-época em que Jesus chegou, Silas foi ter com o treinador a dizer-lhe que a equipa não recebia salários há cinco meses e a pedir a sua intervenção. «Infelizmente, no futebol português, é frequente. São poucos os capitães que dão a cara ou o peito neste tipo de coisas mais sensíveis, porque podem ser os primeiros a levar por tabela se correr mal. Por aí também se via que nós tínhamos um capitão», comenta Gaspar, que desde aquele tempo mantém amizade com Silas e Zé Pedro: «São dos poucos amigos que fiz no futebol.»

O «circo perfeito» e os «palhaços» no balneário

E Rúben? «Conheci-o ainda como um menino no balneário, muito sedento de informação, muito atento aos mais velhos, muito responsável», conta Cândido. E sempre pronto para a paródia, acrescenta: «O Rúben era muito engraçado. Era muito de dançar no balneário, de gozar, de aparecer com roupas esquisitas, de fazer aquelas brincadeiras parvas. Criancices, mas é no fundo o que agrega o balneário e em última análise pode fazer a diferença para ganhar jogos. O Silas era muito mais do tipo que ria do que o que fazia rir. Podemos falar do Rúben como o animador do balneário, o Silas o ponderado risonho. O Rúben era mais virado para a constante palhaçada, o Silas ia tentando resistir ao riso.»

Às vezes, Silas assumia o papel de capitão. «Deixava brincar, mas quando as coisas passavam o limite lá cerrava a cara e a gente sabia que não dava para brincar mais», conta Gaspar. «O líder é o treinador, mas o gestor do balneário é o capitão. O Silas, com a ajuda também dos mais velhos, incluindo eu, fez com que esse balneário funcionasse às mil maravilhas. Acho que o treinador nunca foi ao balneário falar de coisas que não fossem do jogo.»

Voltando às brincadeiras no balneário, como eram afinal? «Aquelas coisas de esconder a roupa…», começa Cândido Costa: «Nós estávamos num canto do balneário: o Silas, eu, o Zé Pedro, o Rúben, éramos um grupo que se dava muito bem. O Gonçalo Brandão também, que era um miúdo, o Eliseu, no primeiro ano o Sousa, era um balneário tremendo. No meu primeiro ano está também o Gaspar, que é o maior palhaço... Estava montado o circo perfeito para que fosse um grande ano.»

«Era uma palhaçada, tinha muitos bonecos, gente muito engraçada», continua Cândido: «Estavam constantemente a gozar com a roupa. Cortavam as cuecas uns aos outros, as meias se tinham um furo eram logo queimadas ou ficavam presas lá em cima do balneário, desaparecia roupa que depois aparecia nos capots dos carros. Eu tinha sempre muito cuidado com o que vestia de manhã. Uma vez, eu tinha umas cuecas Dolce e Gabbana, as únicas que tinha de marca. Uns boxers pretos. Tinha muito cuidado, mas um dia eles inventaram que tinham um furinho e rasgaram aquilo tudo. Eu era dos que mais as fazia, daquela vez não escapei.»

Gaspar começa por acusar o toque. «Eu não era o palhaço, éramos todos. Cada um tinha o seu nariz», ri-se. «Toda a gente brincava.» Quer dizer, mais ou menos: «O Costinha, o guarda-redes não se podia brincar com ele, era só músculo, a gente sujeitava-se a levar logo um enxerto de porrada…»

«No balneário fazíamos os nossos jogos de futebol», continua Gaspar: «Às vezes chegávamos até uma hora antes do treino, para brincar, para fazer aquele tipo de balneário que tanto faz falta no futebol. Nesses jogos tentávamos sempre aquela coisita, às vezes com alguma batota, fazia parte. Quando um balneário é assim, as coisas tornam-se mais fáceis.»

Era um ambiente muito saudável, dizem os dois antigos jogadores. E isso, garantem, faz toda a diferença em campo. «Dava gosto ir para os treinos», diz Cândido: «Foram dois anos fantásticos. Se me perguntarem qual o melhor balneário, apanhei muitos bons, mas aquele, aquela mescla de profissionais e jovens e aquele espírito, foi um espetáculo. Às vezes não era fácil no campo, saíamos massacrados de campo. Chegávamos ao balneário e havia sempre alguém a fazer uma brincadeira. Um balneário pode ser complicado, uns jogam outros não, uns ganham mais outros menos. É muito importante ter um grupo que te faça lembrar todos os dias que és só um jogador de futebol e te leve de volta ao que era na infância.»

A influência de JJ em Amorim e Silas

Gaspar reforça a ideia: «Um balneário assim ajuda a que as coisas em campo corram melhor.» Além disso, acrescenta, as brincadeiras eram um escape ao trabalho obsessivo de Jorge Jesus. «Tínhamos de ter um balneário desse tipo para aturar o profissionalismo levado ao extremo do Jorge Jesus. Tinha de estar tudo como ele queria, insistia, insistia. Mudava, dois dedos ao lado e já estava bem.»

Jorge Jesus é um treinador marcante, e inevitavelmente influenciou Rúben Amorim e Silas. Em medidas e de formas diferentes, com certeza. O atual treinador do Sp. Braga falou sobre isso há pouco tempo, quando assumiu a equipa e lembrou que trabalhou ao todo sete anos com o atual treinador do Flamengo, do Restelo ao Benfica, com quem teve alguns desentendimentos, mas que naturalmente deixou marcas na sua aprendizagem.  

«O que seria notícia é que algum jogador que tenha passado pelo Jorge Jesus não tenha ficado ali alguma coisa, pela forma exigente como ele trabalha. É um treinador muito marcante. Independentemente do feitio, nem tudo é perfeito, mas 90 por cento das coisas que treina e ensina são muito relevantes», diz Cândido.

Gaspar, por seu lado, vê muito de Jorge Jesus em ambos os atuais treinadores: «Nota-se que tiveram o mesmo professor. Obviamente que têm uma pincelada aqui e acolá deles ou de outro professor, mas a base é JJ. É um treinador que marca qualquer jogador. Eu próprio que estou a dar os primeiros passos, a base é JJ.»

O que ambos têm em comum

«Grandes treinadores são os que estão no balneário muitos anos. Particularmente eles, que tiveram bons professores, serão tanto melhores se tiverem tido bons professores. Ambos têm um potencial muito grande, porque são treinadores de futebol. Não de bola, desses há bastantes», diz Gaspar, que apesar das diferentes personalidades vê semelhanças nos dois. «Tanto o Rúben Amorim como o Silas têm uma coisa muito boa, a humildade que tinham e têm, saber quando erram e emendar esses erros. E depois a vontade de querer fazer sempre melhor.»

Cândido admite que, olhando para trás, era menos óbvio ver naquele jovem Rúben um treinador, um treinador que de resto está a fazer um arranque de sonho no Sp. Braga, com seis vitórias em seis jogos e a conquista da Taça da Liga pelo meio. «É mais surpreendente para mim ver o Rúben numa idade tão jovem a assumir uma equipa do que o Silas», diz, imaginando o tipo de técnico que será Amorim: «Falo com ele com alguma frequência e imagino que como treinador seja o que era. Liberdade e também muito trabalho e muita exigência.»

Os cursos, a falta deles e o futuro

Amorim e Silas têm outro ponto em comum, o facto de ambos não terem completado a formação e formalmente não assumirem como treinadores principais. Uma questão que se arrasta e sobre a qual os dois antigos companheiros dão a sua opinião. «Tento pôr-me nos dois lados», diz Cândido: «Do indivíduo que faz tudo by the book, leva anos a chegar ao fim da formação e gasta uma pipa de dinheiro e vê dois ex-jogadores que chegam a clubes grandes sem ter feito esse percurso. Do outro lado, há quem tenha estado 10, 15 anos no desempenho de uma profissão. Não valerá alguma coisa? O que está mal é a lei, embora agora vá mudar alguma coisa.»

Cândido dá o seu exemplo: «Eu fui tirar o Nível I, foi o único que tirei. Fui treinado pelo Jorge Jesus, pelo Jaime Pacheco, José Mourinho, Fernando Santos, Jesualdo Ferreira. O curso não me trouxe nada de novo, mas deu-me uma coisa: engavetar a informação. Esquematizar, isto é para esta gaveta, isto para aquela.» Tem de haver um equilíbrio, diz: «Não concordo com a ideia de que se possa fazer um mesinho de curso e estar preparado para treinar na Champions League. O futebol tem uma componente científica, pedagógica, que um jogador mesmo que jogue 15 anos não aprende. Ainda por cima a vida de jogador é um bocado fútil, não se pressupõe que sejam bons formadores. Temos que olhar para os que têm os níveis todos e se sentem ultrapassados. Também há aí jogadores, que não tiveram a oportunidade que tiveram o Rúben e o Silas. Eu faria o mesmo que o Silas e o Rúben, as oportunidades são para ser agarradas, não há mal nenhum nisso. Mas acredito que ficam melhores treinadores se fizerem todos os níveis.»

Gaspar, que está também no processo de formação, tem o Nível II e voltou agora a querer dedicar-se ao futebol e ao treino, é mais assertivo. «Começou a haver dinheiro envolvido, teve de começar a haver regras. Acho muito bem, acho que não deve haver exceções. Se há a regra é para todos. Se o treinador não cumpre, o clube perde três pontos», diz, separando a amizade que tem por Silas ou Amorim desta questão. «Não tem nada a ver. Está-se a abrir uma exceção», insiste Gaspar, que de resto se mostra muito crítico sobre outra questão associada à formação de treinadores, os créditos para renovar a licença.

Gaspar separa as águas e, para lá da questão de princípio sobre a formação, fica a torcer pelos dois ex-companheiros. «Fico feliz por eles, por se estarem a afirmar de uma maneira rápida. Festejei vários golos com eles, também chorámos todos quando tínhamos de chorar», continua Gaspar: «Guardo boas memórias do Silas e também do Rúben Amorim, mesmo com algumas picardias, alguns desabafos. Guardo muitas saudades. Diz-se que os amigos são como as estrelas, não precisamos de as ver sempre, mas estão lá. Nesse grupo de trabalho ficámos amigos para sempre.»

«Eles viveram muito juntos, muitas alegrias e muitas tristezas», observa por sua vez Cândido, que mantém contacto tanto com Silas como Amorim: «Agora está cada um a defender o seu clube, mas fico muito feliz de os ver treinar equipas de topo. O Rúben numa situação mais confortável, o Sp. Braga também não estava numa situação tão delicada. O Silas ainda me deixou a gostar mais dele, porque agarrou o Sporting num momento muito difícil. Melhorou logo o Sporting, que vinha de seis derrotas consecutivas. Melhorou logo a equipa, sob enorme pressão, o que me faz ter muito orgulho.»