O FC Porto está a um ponto de conquistar o 30º título de campeão nacional já em 2021/22, um ponto que terá de somar a mais que o Sporting. Se o confirmar, fixa um marco redondo numa hegemonia que construiu nas últimas décadas, ao mesmo tempo que entra num clube muito restrito a nível europeu. De caminho, acentua várias singularidades do campeonato português, um dos poucos em toda a Europa que passará a ter dois clubes com 30 ou mais títulos, além de ser aquele que tem menor número de campeões ao longo da história.

Por agora, o membro português do clube dos 30 é o Benfica - com 37 títulos, é o quinto da Europa com mais troféus de campeão nacional. A Escócia tem o único campeonato onde há duas equipas acima dos 30, Rangers (55) e Celtic (51), ambos com números incríveis mas alcançados num campeonato que teve início ainda no século XIX. Em Portugal, isso está perto de acontecer numa Liga que contabiliza 88 anos de história. Para já, mas já lá vamos.

O Benfica atingiu os 30 campeonatos em 1993/94 e nessa altura o FC Porto tinha 13 no total, enquanto o Sporting somava 16, contando agora 21. Em menos de três décadas, os dragões ganharam mais 16 títulos. Uma recuperação que tinha começado antes, como nota João Nuno Coelho, sociólogo e investigador da história do futebol português, que olha com o Maisfutebol para este fenómeno dos multicampeões históricos.

«Nestes 40 anos desde 1982, desde a chegada do Pinto da Costa à presidência, o FC Porto ganhou 22 títulos, o que é impressionante. Pode fazer agora o 23º. Isso é marcante, ao mesmo tempo que me parece ser marcante a rivalidade competitiva ter-se acentuado com o Benfica, que tem 13 títulos neste período, e o Sporting, com 4, ter ficado um pouco para trás», observa.

Uma nova fase em que o título «viaja pelos três»?

Mas esta temporada, aliada ao título ganho pelo Sporting na época passada, pode estar a lançar nova tendência, nota: «Se calhar este título em especial, porque está a ser disputado com o Sporting, não deixa de ser significativo. Parece-me que a tendência neste momento pode ser para voltarmos a ter um período de luta a três. De vez em quando acontece. No final dos anos 50, depois daquela grande hegemonia do Sporting, houve ali meia dúzia de anos até 1960, quando o Benfica começou a ganhar vantagem, em que o título foi sempre decidido na última jornada e andou a viajar pelos três clubes. Poderemos eventualmente estar na presença de outra situação dessas.»

Essa seria uma boa notícia para o campeonato, acredita, dando mais alguma incerteza à Liga. Que é nesse aspeto mais competitiva do que vários campeonatos europeus de topo, onde há nesta altura hegemonias evidentes de uma só equipa, como o Bayern Munique na Alemanha, o PSG em França ou o Olympiakos na Grécia. «Comparativamente com o que temos noutros países, já não é mau termos três equipas a lutarem entre si», observa João Nuno Coelho. «Mas», acrescenta, «o ideal era que houvesse mais». O que sempre foi e continuará a ser muito difícil: «A questão de os direitos televisivos serem negociados de uma forma centralizada, se acontecer, vai ser só no final desta década. Aí poderá haver outros clubes a interferirem nesta luta. Seria o cenário ideal. Para não ser muito irrealista, com a liderança dos três grandes, obviamente, mas com os outros com outro tipo de competência, para tornar o campeonato mais interessante. Acho que somos a única Liga para aí das 20 maiores europeias em que a negociação continua a ser individual. Isso faz com que os mais fortes fiquem sempre mais fortes e os outros não saiam da cepa torta, no fundo.»

À espera da decisão que pode declarar mais três campeões nacionais

Portugal só teve até hoje cinco campeões nacionais, menos do que qualquer outra Liga na Europa. Como exemplo, mesmo o campeonato escocês, apesar do domínio esmagador de Rangers e Celtic, já teve dez campeões diferentes. A única Liga comparável, sem contar com campeonatos que apenas começaram nos anos 90 em países recém-independentes, é a Grécia, que teve ao todo seis campeões.

«O grande drama do futebol português para mim é esse», diz João Nuno Coelho. Ainda que, como recorda, exista a possibilidade de essa contabilidade histórica vir a sofrer alteração. A Federação Portuguesa de Futebol instituiu uma comissão técnica para reavaliar o enquadramento histórico das competições nacionais. A principal questão, levantada nos últimos anos pelo Sporting, prende-se com o Campeonato de Portugal, que se disputou entre 1921/22 e 1937/38. «Podemos ter novidades em breve. Poderá haver quase na secretaria a criação de mais alguns campeões. Vai depender da tal decisão acerca do Campeonato de Portugal. Os títulos dessa competição em princípio vão ser equiparados ou à Taça de Portugal ou ao Campeonato Nacional. Se houver equiparação ao Campeonato, aí teremos mais três campeões: o Olhanense em 1924, o Marítimo em 1926 e em 1928 o Carcavelinhos, que agora é o Atlético Clube de Portugal.»

Entre a hegemonia dos grandes e o domínio de Lisboa e Porto

Portugal não só tem um campeonato centrado em apenas três clubes, como é também historicamente muito restritivo a nível geográfico, nota o coautor do livro «A paixão do povo», uma profunda viagem pela história do futebol português: «Os próprios clubes que conseguiram o feito de ser campeões, e apenas uma vez cada um (Belenenses e Boavista), também são de Lisboa e do Porto. É trágico, quase, em termos desportivos. Nunca houve um clube fora de Lisboa e Porto a conquistar um campeonato. Isto diz muito da hegemonia dos três grandes até em termos sociológicos. Quase todas as pessoas são dos três grandes e depois têm outro clube, o clube da terra. Enquanto isso for assim não acredito muito que as coisas possam mudar. Não me parece que seja apenas uma questão de investimento, terá de ser uma vaga mais de fundo. Provavelmente já não vamos ver isto em vida…»

As raízes desta hegemonia a três são históricas e sociais, considera João Nuno Coelho. «Tem a ver com a sociedade portuguesa e com um imobilismo e um conservadorismo muito grandes.» É também o resultado, defende, da forma como os «grandes» se expandiram e «secaram» o terreno à sua volta: «Nos anos 20 e 30 foi a altura em que o futebol se popularizou muito em Portugal. É curioso perceber a forma como se foi espalhando por aquilo que era chamado a província. A paixão pelo futebol teve sempre muito a ver com a criação de filiais, depois também com o ciclismo. O nome dos três grandes foi-se espalhando pelo país.»

Outro momento crucial, observa, foi a forma como o Campeonato de Portugal evoluiu. «Há uma fase decisiva, quando se alargou, em 1927, o número de equipas participantes no Campeonato de Portugal. Passou a deixar de ser disputado apenas pelo campeão regional de cada Associação. E como é que se alargou isso? De forma a que Porto e Lisboa pudessem ter mais representantes. Quase como aconteceu depois com a Liga dos Campeões no final da década de 90. E isso levou a que houvesse menos representantes das diferentes regiões e mais de Porto e Lisboa. Depois acaba por ter efeito de reprodução», afirma. Desde logo na comunicação social: «As notícias e os programas são feitos para a maioria e a maioria são adeptos dos três grandes. Isto vai-se reproduzindo. É completamente uma pescadinha de rabo na boca. Depois as crianças querem ser daqueles que ganham, e os que ganham são sempre os mesmos. Acabou por haver aqui uma reprodução social deste poder e desta riqueza, digamos assim. Isto é um bom exemplo de como funciona o capitalismo. É por reprodução de poder e riqueza.»

Apesar dos desequilíbrios, em Portugal nenhum clube português está perto dos recordes absolutos de títulos na Europa. Uma lista que acaba de ganhar um novo líder isolado: o Linfield, da Irlanda do Norte, que conquistou novo campeonato no fim de semana passado. Entre as quatro maiores ligas europeias, só três equipas entram no clube dos 30. Veja a lista completa na galeria associada.