A condenação em primeira instância do presidente do Bayern de Munique, Uli Hoeness, a três anos e meio de prisão, por fuga ao fisco, marca o princípio do fim de um conto de fadas que mudou radicalmente o estatuto do dirigente alemão: de figura mais influente da Bundesliga nos últimos 30 anos, Hoeness passou a ser o símbolo mais mediático do combate à evasão fiscal na Alemanha.

A sentença, comunicada nesta quinta-feira pelo juiz Rupert Heindl, ignorou a argumentação da defesa, segundo a qual Hoeness, ao assumir voluntariamente o crime, em janeiro de 2013, seria elegível para uma amnistia para crimes fiscais. O tribunal considerou que o comportamento do dirigente não equivalia a uma confissão completa: além de só ter contactado as autoridades depois de ter recebido informações de que estava a ser investigado, o presidente do Bayern admitiu inicialmente um desvio de 3,5 milhões de euros. No final do julgamento, esse valor tinha superado os 27 milhões, encaminhados para uma conta na Suíça durante pelo menos dez anos.

Craque nos relvados e fora deles

Embora os crimes de Hoeness em nada envolvam o Bayern, é praticamente certo que a sentença desta quinta-feira marca o fim de um ciclo para o homem que, como jogador, primeiro, e dirigente, depois, esteve em todos os momentos altos na história do clube bávaro. Na década em que também se sagrou campeão europeu e mundial de seleções, em 1972 e 74, esteve em campo, como jogador, nas três finais da Taça dos Campeões ganhas em meados dos anos 70. As outras duas, ganhas em 1999 e 2013, viu-as da tribuna de honra, primeiro como diretor geral, depois já como presidente.


Hoeness bisou na final da Taça dos Campeões de 1974

De 1970 – ano da chegada de Hoeness ao clube, como médio de ataque - para cá, o Bayern passou de média potência do futebol alemão para dominador incontestado da Bundesliga e superpotência do futebol europeu e mundial. Os seus destinos foram moldados por uma geração de futebolistas que tinha Beckenbauer como primeira figura - no campo e fora dele. Mas Hoeness, que sucedeu ao seu antigo capitão na presidência, em 2009, foi sempre muito mais do que um braço direito do kaiser.

Sem o carisma e o charme do seu ex-capitão, foi a astúcia como homem de negócios que lhe permitiu escalar degraus na hierarquia do Bayern. Filho de um talhante de Ulm, aproveitou a tradição familiar e o dinheiro ganho como futebolista para montar uma fábrica de salsichas que, ainda hoje, é uma das fontes de rendimento da família.

A facilidade de movimentos no meio empresarial ajudou-o a conseguir patrocínios preciosos para o Bayern, desde o acordo com a Magirus-Deutz que, no início dos anos 80, tirou as contas do clube do vermelho. Atualmente, representantes de topo da Adidas, Deutsche Telekom, Audi e Volkswagen têm assento no conselho geral do Bayern – e, depois de terem rejeitado o seu pedido de demissão em maio, deverão pronunciar-se ainda esta semana sobre a situação de Hoeness. Que entre os vários méritos como dirigente teve o de nunca esquecer o difícil equilíbrio entre a procura do lucro e a paixão dos adeptos – estes ainda detêm 75 por cento de um clube que cobra bilhetes substancialmente mais baratos do que os seus rivais da elite europeia.


Hoeness: alma de adepto, cérebro de empresário

Porta-voz do fair-play financeiro

Apontado por Angela Merkel, em tempos recentes, como exemplo de empresário de sucesso, Hoeness já recebeu o «beijo da morte» da política com quem tantas vezes partilhou a tribuna de honra: «Muitos podem sentir-se desapontados com Uli Hoeness, e entre eles está a chanceler», afirmou o porta-voz de Merkel, Steffen Seibert, assim que os contornos do processo se tornaram conhecidos.


Merkel e Hoeness, quando tudo eram sorrisos

Mas a condenação de Hoeness não é um embaraço apenas para a chanceler e os altos executivos da finança alemã: como responsável estratégico do Bayern, esteve na base dos principais movimentos dos clubes da elite europeia. Dinamizador do G-14, ideólogo da Liga dos Campeões no início dos anos 90, Hoeness tinha sido também, até há bem pouco tempo, o porta-voz oficioso da política de fair-play financeiro da UEFA. Saíam da sua voz as críticas mais ácidas ao novo-riquismo despesista de clubes como o Manchester City ou o PSG e os apelos mais fortes à moralização das contas – e é irónico que Hoeness nunca tenha escondido a indignação com os sucessivos favorecimentos e perdões fiscais com que os governos espanhóis, de forma mais ou menos encapotada, aliviavam os prejuízos dos seus principais clubes, com Real Madrid e Barcelona à cabeça.

A sublinhar a ironia está ainda a curiosidade de a sua condenação ter acontecido mês e meio depois de o seu homólogo do Barcelona, Sandro Rosell, ter pedido a demissão depois das acusações de irregularidades fiscais na contratação de Neymar – e uma semana depois de outra antiga glória do futebol europeu, o romeno Gica Popescu, ter sido igualmente condenado a três anos de prisão, por fraude fiscal e branqueamento de capitais.

Coube ao presidente da Liga de clubes, Reinhard Rauball, rival de Hoeness ao longo de muitos anos, no Borussia Dortmund, fazer-lhe um elogio que, atualmente, tem contornos de despedida: «Os méritos de Uli Hoeness no crescimento do futebol alemão permanecem intocáveis, apesar da sua conduta». Aos 62 anos, mesmo que o recurso dos seus advogados lhe permita uma redução de pena, é difícil não pensar que a era de Hoeness como dirigente desportivo chegou ao fim nesta quinta-feira. Fica por avaliar a dimensão dos estragos deste processo no clube que tanto ajudou a crescer nos últimos 40 anos - e na hierarquia das grandes potências do futebol europeu.