Um alentejano que fez história com a camisola do FC Porto. Hugo Laurentino tinha 16 anos quando deixou Évora, «uma cidade pequenina» que demorava 15 minutos a atravessar «de uma ponta à outra», para se mudar para um Universo completamente distinto.

De azul e branco fez história. Não só no clube, mas também na modalidade, razão pela qual acredita ter feito o suficiente para sair como um dos melhores guarda-redes portugueses de sempre.

Aliás, no momento em que deixa as balizas e passa para o cargo de team manager, Laurentino defende que o FC Porto tem uma das equipas com mais potencial da sua história. Mas avisa que isso não chega.

E quem o diz é o homem que, enquanto menino acabado de chegar, alguém decidiu sentar entre os dois nomes maiores do clube na altura: Carlos Resende e Eduardo Filipe. Ele cresceu e acumulou muita, muita experiência. E experiências.

MF: Quando chegou ao FC Porto, aos 16 anos, logo no primeiro almoço sentaram-no entre o Carlos Resende e o Eduardo Filipe. Isso foi a melhor chapada de realidade para a dimensão do que representava a mudança?

HL: Eu só via o Resende e o FC Porto na televisão. E quando chego, o professor [José] Magalhães mandou-me sentar a almoçar entre o Resende e o Eduardo Filipe. Eu não fazia a mínima ideia do que dizer ou fazer. Fiquei ali todo encolhidinho ao lado deles. E a verdade é que hoje são meus amigos. 

MF: E se tivessem dito àquele miúdo: ‘atenção que eles são figuras históricas, mas tu vais ganhar mais títulos de campeão pelo FC Porto do que eles os dois juntos.’?

HL: [risos] Eu dizia: ‘nah, isso é mentira, nunca vai acontecer’. A verdade é que nós não sabemos o que a história nos poderá trazer. E felizmente aconteceu. Mas até posso contar uma história que tem um pouco a ver com essa ideia.

MF: Força.

HL: O meu primeiro grande jogo como sénior foi na Madeira, no segundo ano do Pokrajac, em 2003-04. Eu fui convocado porque o Hugo Figueira tinha torcido um pé. Então, fui eu e o Carlos Ferreira a esse jogo, que se ganhássemos, batíamos o recorde de vitórias consecutivas. E já não me lembro quanto tempo faltava para o fim, mas uns 20 minutos, estávamos perder por cinco e o Pokrajac meteu-me em campo. Sei que o primeiro remate que me fazem, eu dou um grande frango. E pensei ‘começas bem!’.

MF: E o treinador?

HL: Chama-me ao banco e diz-me: ‘tu nos treinos defendes as bolas dos melhores jogadores da Europa: do Resende, do Eduardo, do Petric, do Dedu… estes jogadores não são ninguém. Vai lá defender’. A verdade é que depois disso, aquele foi o primeiro jogo em que os jornais vieram a falar de mim. E mal acabou o jogo, o Petric veio direito a mim e começou a dar-me beijos. Beijos! [risos] Eu ainda não tinha percebido aquilo que tinha feito, mas demos a volta ao jogo, ganhámos por dois ou três e batemos o tal recorde.

MF: Nesse ano conquistam o campeonato, mas no seguinte é emprestado ao V. Setúbal. Que força retirou desse empréstimo?

HL: Eu fui para lá com perspetiva de poder jogar muito mais do que realmente joguei. Sei que o treinador preferia jogadores experientes e estava lá o Ricardo Correia, que fez talvez as melhores épocas da carreira. Mas uma das coisas que gostei foi que joguei sempre contra os grandes. Não sei porquê, mas contra o FC Porto e o ABC, fui eu que joguei. E correu bem.

MF: Mas apanha uma realidade completamente diferente?

HL: Sim, foi algo a que não estava habituado. Ganhássemos ou perdêssemos, no final íamos sempre jantar todos. Eu não estava habituado a isso, porque quando perco, a minha mulher é que sofre: se perco, vou para casa. E no Vitória, ganhando ou perdendo, era igual. Mas foi enriquecedor ter essa visão do outro lado do andebol. E ao fim de duas épocas regressei ao FC Porto.

MF: Mas esse regresso esteve muito perto de não acontecer, não é assim?

HL: Sim, quando regressei ao FC Porto, eu até já tinha tudo fechado com o Torrevieja, uma equipa espanhola que ia ser treinada pelo Manolo Laguna, meu treinador na seleção. E na altura, a ASOBAL [1.ª divisão espanhola] era o melhor campeonato do mundo, onde estavam os melhores jogadores. Poder estar lá seria magnífico. Já tinha tudo fechado, mas tive de voltar e vim cumprir mais 15 anos (risos).

MF: E escrever história…

HL: Sim. Nos dois primeiros anos ganhámos só umas duas Taças, Supertaças… o campeonato só chega no terceiro ano, com o Carlos Resende.

MF: Depois desse primeiro título chega o Obradovic e as coisas até começam por correr mal. Como foi o impacto dessa mudança de mentalidade?

HL: Nos três anos anteriores tínhamos tido boas épocas, porque ganhámos sempre alguma coisa e no terceiro ano conquistámos o campeonato. E ficámos habituados ao Carlos Resende que é uma excelente pessoa e exigente dentro do campo. E depois chegou o Obradovic com um tipo de exigência muito diferente. No início parecia que não tinha amigos e nenhum de nós conseguia falar diretamente com ele. Ele veio muito fechado para um sítio onde não conhecia as pessoas nem a mentalidade dos atletas. E sim, é verdade que os primeiros tempos com o Obradovic foram muito difíceis.

MF: Como é que deram a volta?

HL: Nunca mais me esqueço. Nós ganhámos em casa ao Sporting, mas depois fomos perder ao Sp. Horta e recebemos o Xico Andebol com uma equipa muito, muito jovem, que fez o que quis de nós aqui no Dragão Caixa. Depois disso, o treino que o Obradovic nos deu foi fechar-nos no balneário durante uma hora e meia a conversar. A maioria dos jogadores deu o seu ponto de vista, o professor também falou e quando chegámos ao treino a seguir eramos uma equipa completamente nova.

MF: Mas o que mudou?

HL: O professor viu com o que podia contar, nós também percebemos isso da parte dele. E depois, ele abriu mão de algumas exigências de treino, e nós demos-lhe outras coisas. E a partir daí vieram aquelas seis épocas de sucesso. É verdade que ele era muito duro no treino, mas fora era o nosso melhor amigo. E continuo a ter uma excelente relação com ele. No dia em que decidi deixar de jogar, ele ligou-me para perceber o que se estava a passar e desejar-me sucesso para o futuro.

MF: Do percurso até ao hepta, há algum momento que guarde com mais carinho?

HL: Sim, claro. Há muitos momentos que guardo muito carinho. O principal é o do último título. Eu não pude fazer o último jogo, estava lesionado depois de ter levado a bolada no olho [num jogo da Taça de Portugal, que o obrigou a passar a jogar com uns óculos especiais]. Nesse dia ainda não tinha recuperado a visão. E quando acaba o jogo, a reação do [Ricardo] Moreira foi a de correr direito a mim para festejar comigo. É daqueles momentos que nunca vou esquecer.

MF: No balanço de uma carreira tantos anos de andebol, quais os treinadores que mais marcaram?

HL: Há muitos. Tenho de falar do Obradovic, que me marcou imenso. Tanto dentro de campo, como fora, pela amizade que mantemos. Todos aprendemos muito com ele, que é um dos responsáveis pelo boom do andebol do FC Porto. O Carlos Resende também nunca podia faltar, porque eu fui uma aposta dele. No ano em que ganhámos o primeiro título do hepta, a partir de dezembro, além de mim, havia o Candeias, guarda-redes da seleção, e o Dragan Jerkovic, campeão olímpico com a Croácia. E a verdade é que fui eu que joguei quase sempre e senti esse título como o primeiro que realmente conquistei. No Évora também tive o professor Coelho e o Manel, que me influenciaram muito para ser guarda-redes.

MF: E qual considera o seu ponto forte enquanto guarda-redes.

HL: (risos) Eu não sou forte nem alto. As minhas características são totalmente diferentes das do típico guarda-redes de andebol. Acho que era muito bom a ler o jogo. Também devido ao estudo prévio que fazia dos jogos – cheguei ao ponto de ver quatro jogos do adversário antes de cada jogo, se não sentia que estava a jogar nu -, eu conseguia antecipar os movimentos dos remates e aliava a isso a rapidez de reação. Tinha de ser esperto e jogar com o que tinha de forte. Mas acho que o meu ponto forte eram os remates de 1.ª linha. 

MF: Sente que fica perpetuado como um dos melhores guarda-redes portugueses de sempre?

HL: Eu não faço questão de ser perpetuado. Claro que toda a gente gosta de ser elogiada. Mas o que sinto é que fiz história. Fiz bem o meu trabalho como atleta e sinto que fui dos melhores. Não me considero o melhor nem uma estrela. Tentei sempre ser o melhor, por vezes fui, outras não. Mas acho que para a história, fico como um dos melhores guarda-redes portugueses a nível internacional.

MF: Quais são os outros?

HL: Lembro-me de ver o Paulo Morgado, que era fantástico a defender. O Sérgio Morgado também fez exibições memoráveis. Houve uma altura em que o meu objetivo era copiar o Sérgio, adorava vê-lo defender. O Carlos Ferreira também foi um grande guarda-redes, tal como o Ricardo Candeias. Agora, ganharam tantos títulos como eu? Talvez só o Carlos Ferreira. Acho que não fui indiferente e que daqui a dez anos vai haver gente a lembrar-se de como o Laurentino defendia.

MF: Temos algumas perguntas ‘encomendadas’. O Quintana quer perguntar o seguinte: conhecendo-o desde que chegou ao FC Porto, como vê a evolução dele como guarda-redes?

HL: (risos) O Quintana evoluiu drasticamente. Evoluiu muito e em tudo. E acho que está no auge da carreira. Está na melhor fase de sempre. Está muito calmo, seguro, sabe o que quer e sabe o que faz. E começou a delinear objetivos, que era uma coisa que ele antes não fazia. Muitas vezes, fazia as coisas por fazer, e agora traça objetivos, o que o ajudou a tornar no que é hoje.

MF: Colocá-lo-ia no top-5 mundial?

HL: Diria que sim: ele é capaz de estar, neste momento, no top-5 mundial de melhores guarda-redes.

MF: E que influência sente que teve na evolução dele?

HL: Nós temos uma relação mesmo muito boa. Sempre nos ajudámos muito, tanto em treinos como em jogos. Mas por exemplo, quando ele chegou, há 10 anos, o Quintana não observava nenhum adversário antes do jogo. E influenciei-o nisso. Se lhe perguntares agora, ele não consegue ir para um jogo sem o analisar. Ele via muito pouco andebol e agora está sempre a ver. E acho que isso é muito bom para quem sonha ser o melhor. Para perceber a evolução do andebol e ver o que os outros fazem. E tornou-se muito mais sério no treino. Hoje não admite que um colega não esteja a 100 por cento no treino, que era aquilo que nós o obrigávamos a fazer. Nós fizemos com que ele mudasse e ele está a fazer com quem os mais novos mudem.

MF: O Diogo Branquinho, seu colega de assento no balneário, quer saber uma coisa simples: qual a receita para o FC Porto voltar a ganhar sete títulos consecutivos?

HL: (mais risos) Acima de tudo, é a união do grupo. É preciso estarem todos focados no único objetivo e não em coisas paralelas. É a única coisa que interessa. E depois, darem tudo nos treinos e puxarem para o treino os colegas que estiverem com a cabeça noutro lado.

MF: Este FC Porto da atualidade parece-lhe dos melhores de sempre. Capaz de um feito como o do hepta?

HL: Eu vou fazer um exercício: para mim, a melhor equipa do FC Porto foi com Carlos Ferreira, Rui Rocha, Eduardo Filipe, Carlos Resende, Carlos Matos, Petric, Dedu, Manuel Arezes, Ricardo Costa e David Tavares. Essa para mim foi a melhor equipa. O que é que eles ganharam? Dois ou três títulos nacionais. E nós, com aquela equipa que criámos, conseguimos ganhar sete títulos. Eu não sei se esta equipa vai ganhar sete títulos, mas já ganhou um. E não espero que ganhem sete, mas que ganhem oito, para poderem quebrar o recorde. Se comparamos as equipas pelos feitos, esta é das melhores de todas: ganhou campeonato, Taça e foi à final-four da Taça EHF.

MF: Mas acha que as equipas com os melhores jogadores nem sempre conseguem ser as melhores equipas?

HL: Sim. Acho que é preciso uma boa base. E no hepta, tivemos uma boa base: eu o Moreira, o Gilberto, o Tiago Rocha e, numa primeira fase também o Filipe Mota e o Wilson [Davyes]. Mas principalmente os quatro primeiros, que durámos mais tempo e que demos uma base forte. Nenhum de nós era brilhante, mas éramos bons jogadores, e conseguimos ajudar o FC Porto a chegar a um grande patamar. Mas em termos internacionais, nós os quatro eramos banais.

Hugo Laurentino, Ricardo Moreira e Gilberto Duarte, os três hepatacampeões pelo FC Porto

MF: E nesta equipa é diferente?

HL: Hoje é completamente diferente. O Quintana pode jogar num Kiel. O Daymaro e o Victor [Iturriza] também podem jogar num Kiel. O Alexis [Borges] esteve no Barcelona. E naquela altura não tinhas ninguém que pudesse jogar nessas equipas. Para vermos, o Tiago Rocha e o Gilberto foram para uma grande equipa da Polónia. Foram para o Wisla Plock, mas não foram para o Kielce que é a grande equipa da Polónia. Hoje temos jogadores que podem entrar nas melhores equipas do mundo.

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