Antes de mais, uma pergunta: lembram-se de Stewart Houston? E de Bruce Rioch?

Provavelmente, não.

Ora, estes escoceses, cujos nomes para muitos de nós terão ficado perdidos nalguma gaveta da memória, têm a distinta honra de serem antecessores de Arsène Wenger no comando técnico do Arsenal.

É verdade que, pouco antes de Arsène, houve o Arsenal de George Graham e que muito antes de ambos houve o de Herbert Chapman – que entre os anos 20 e 30 do século passado inventou o sistema tático «WM», o primeiro 3-4-3, e se sagrou quatro vezes campeão inglês nessa época (duas pelo Huddersfield e duas pelo Arsenal).

Ainda assim, dado o devido desconto à maior frescura das memórias mais recentes, é ainda assim pouco provável encontrar nome que se confunda mais com os 132 anos de história do clube.

Nos últimos 22, Arsène foi Arsenal e vice-versa.

Esta sexta-feira, o treinador francês anunciou o adeus ao comando técnico dos Gunners.

«Sinto-me grato pelo privilégio que tive ao servir o clube durante muitos anos memoráveis», escreveu Wenger num comunicado divulgado pelo site oficial do clube.

Uma despedida há muito esperada, também por parte dos adeptos. Nos tempos mais recentes, uma parte significativa já não queria a continuidade do treinador.

«Wenger out» lia-se em tarjas e cartazes pelas bancadas do Estádio Emirates, nas ruas (ver foto), nas redes sociais e um pouco por todo o lado.

A conquista da Taça de Inglaterra no final da época passada ajudou a adiar o adeus do treinador, que aos 68 anos deixa um legado impressionante no clube londrino.

Antes de mais, os grandes títulos: três conquistas da Premier League, uma das quais após uma época inteira imbatível (2003/04, como campeão sem qualquer derrota), sete Taças de Inglaterra, 20 anos consecutivos na Liga dos Campeões – falhou o acesso nesta época.

O legado, porém, está para lá da prateleira onde se guardam os troféus.

«Wenger também transformou a identidade do nosso clube e do futebol inglês, com a sua visão de como o jogo deve ser jogado», referiu o Stan Kroenke, acionista maioritário do Arsenal, num comunicado publicado hoje.

Há 22 anos, quando o Arsenal procurava treinador com a época já a decorrer, depois da saída de Stewart Houston, havia quem não estivesse assim tão convencido com a opção por Wenger, vindo do futebol japonês (Nagoya Grampus Eight), depois de se ter dado a conhecer como treinador no Nancy e alcançado reconhecimento no Mónaco.

Tony Adams, capitão dos Gunners, era dos mais descrentes com a possibilidade daquele francês fazer esquecer George Graham, que havia treinado o clube por um longo período entre 1986 e 1995: «No início, pensei: o que sabe este francês de futebol? Ele usa óculos e parece mais professor. Ele não vai ser tão bom como o George! Saberá sequer falar inglês decentemente?»

Na verdade, depois do interino Pat Rice segurar a equipa por quatro jogos, o tal francês estreou-se em Ewood Park, a 12 de outubro de 1996. Uma estreia auspiciosa com uma vitória por 2-0 em casa do Blackburn Rovers, sentenciada com um bis de Ian Wright.  

Wenger tinha vindo para ficar. De tal forma que a sua estada dobrou o tempo da de Graham e nudou o Arsenal e a própria Premier League.

Quando ele chegou, em 1996/97, apenas uma equipa da liga inglesa era treinada por um não-britânico – o Chelsea, de Ruud Gullitt. Hoje, os treinadores britânicos estão reduzidos a pouco mais de um terço do total e nenhum orienta equipas candidatas ao título.

Com Wenger triunfou uma declarada a aposta no futebol de formação, num jogo vistoso assente no talento e juventude. Com Wenger o Arsenal adotou um futebol continental, uma tendência que viria a alastrar-se pelas principais equipas da Premier League.

Ele criou uma armada francesa, contratou 31 gauleses durante estes 22 anos e chegou a ter uma base de sete, oito jogadores seus compatriotas no plantel, época após época.

Graças à prospeção precoce de talentos em diversos mercados, o Arsenal tornou-se numa Torre de Babel, com jogadores de diferentes nacionalidades, bem antes de quase todas as outras equipas seguirem esse caminho. Tornou-se numa equipa vencedora, sobretudo nos primeiros tempos, e capaz de dar espetáculo, com um futebol alegre, em muitas ocasiões.

Wenger pegou num plantel que já tinha Bergkamp, Ian Wright e Overmars lá na frente – bem como Seaman e o já convertido Adams, lá atrás – e juntou-lhe uma série de outros craques: Petit e Vieira a dominarem o meio-campo, Ljungberg e Robert Pires a explorarem o ataque… E a partir de determinado momento acrescentou à sua máquina de jogar futebol uma peça capaz de tornar o «canhão de Londres» numa arma de destruição em massa. Vindo também do Mónaco chegou um jovem goleador que viria a transformar-se numa das grandes estrelas da Premier League e do futebol europeu: Thierry Henry.

Esse período do virar do século, até ao campeonato da invencibilidade em 2003/04, terá sido o melhor do Arsenal.

Ao longo dos anos, foram chegando outras estrelas: Fàbregas, Van Persie, Rosicky, Alexis Sánchez… Contudo, o fulgor foi-se perdendo e, ao fim de 22 anos, o desgaste era evidente.

«Wenger out?» Pois seja feita a vossa vontade.

Contudo, voltando ao início: lembram-se de Stewart Houston? E de Bruce Rioch?

Já se esqueceram deles outra vez, não?

Pois não precisam de melhor prova prova para aferir que, na memória coletiva, Arsène é o nome que mais se confunde com a história do Arsenal.