* com Vítor Hugo Alvarenga

Crosby, pequena cidade de 50 mil habitantes, às portas de Liverpool. Visitada por milhares de britânicos no verão, encantados pelos Homens de Ferro enterrados na praia da localidade, esculturas enigmáticas e assinadas por Antony Gormley.

O clube de futebol da terra chama-se Marine Football Club e dele pouco se sabia até há semanas. A FA Cup, verdadeiro poema vivo ao futebol mais puro, colocou o pequeno Marine no caminho do Tottenham, treinado por José Mourinho.

O jogo é no domingo e joga-se onde teria de se jogar, de forma a manter o espírito que orienta a competição: Rossett Park, campo com capacidade para receber três mil pessoas, 300 delas sentadas. A pandemia não permite o preenchimento da bancada, mas o retrato ajuda a perceber a dimensão do palco que receberá os Spurs.

Os Homens de Ferro na praia de Crosby, terra do Marine FC 

O jogo é, antes de mais, histórico. Nunca, na centenária prova, um clube da Premier League defrontou um oponente de um escalão tão baixo. O Marine FC milita na Northern Premier League – Division One North West, o equivalente à 8ª divisão, e está sete escalões abaixo da ostentação de Mourinho, Kane, Bale, Son e companhia. A imagem de David contra Golias nunca foi tão certeira.

Para tornar a história ainda mais interessante, na baliza do valente Marine estará Germano Mendes, um luso-guineense de 29 anos, profundo admirador de… José Mourinho, claro. O Maisfutebol foi conhecer-lhe a história e os planos que tem para domingo à tarde. Uma conversa deliciosa.

«No verão trabalhei num stand de automóveis»

Bons modos e etiqueta. Antes de mais, a apresentação.

«Eu nasci na Guiné-Bissau, tenho uma família muito, muito grande (risos). Quando tinha 16 anos mudei-me para Portugal e fui jogar para as camadas jovens do Desp. Chaves. Era o titular dos juniores quando o clube foi à final da Taça de Portugal, em 2010. Nos seniores fui emprestado ao Vila Meã e ao Vilar de Perdizes», conta Germano, num silêncio só interrompido pelas brincadeiras do pequeno Rúben.

«O meu filho tem cinco anos. Vivo com ele e com a minha companheira. Este ano o Marine tem uma equipa forte e queremos subir de divisão, estamos a treinar bastante. No verão ainda trabalhei num stand de automóveis de um amigo meu para passar o tempo e ganhar um dinheirinho, mas agora passo os dias nos treinos, no curso para treinador de guarda-redes e aqui em casa. Já tenho muito o que fazer (risos).»

De Trás-os-Montes, Germano ruma para o Oeiras na época 2012/13. No verão de 2013, o guarda-redes percebe que tem de mudar de ares para subir mais alto. «Falei com o meu pai e decidimos arriscar em Inglaterra. Em Portugal o salário era muito baixo, não dava para continuar a ser profissional e a levar menos de 500 euros para casa.»

Germano leva para as Terras de Sua Majestade o sonho do futebol de primeiro nível e a titularidade na seleção de Guiné-Bissau. «Cheguei a ser convocado várias vezes, mas não era a primeira opção. O mister apostava no Jonas Mendes [fez toda a carreira em Portugal e joga atualmente na África do Sul]. Então apostei tudo em Inglaterra. Tive a sorte de ser ajudado pelo Francisco Júnior. Ele jogava no Everton, depois de se formar no Benfica, e abriu-me as portas de casa. Foi um grande amigo e com a ajuda dele estabeleci-me na região de Liverpool.»

Germano em ação na baliza do Marine FC

Francisco está agora nos romenos do Gaz Metan, com Jorge Costa, mas Germano continua por Merseyside. «Joguei em vários clubes [Vauxhall, Droylsden, Nelson] e em 2016 tive a oportunidade de ir para a segunda divisão finlandesa. O JS Hercules tinha boas condições, mas havia muito, muito frio e o salário não era bom. Pedi um aumento no final da época, eles disseram que iam analisar e nunca mais disseram nada. Voltei a Inglaterra.»

Após um ano no AFC Liverpool, Germano muda-se em 2018 para o Marine FC. «É gente séria e ganho um salário interessante, mesmo na oitava divisão. O nosso estádio é pequeno, muito apertado e essa é a maior arma no jogo contra o Tottenham. Nem os vamos deixar respirar», avisa Germano Mendes.

«Só me imagino a defender um remate do Kane ou do Bale»

Faltam quatro dias para o impensável Marine-Tottenham. «Nunca mais chega, o coração anda a bater depressa esta semana», brinca Germano, um grande admirador de José Mourinho. E o que dirá o guarda-redes quando encontrar o Special One?

«Eh pá, vou mesmo jogar contra ele. Bem, o mister Mourinho tem de se pôr a pau porque eu vou fazer a exibição de uma vida. Já avisei o meu treinador: ‘mister, não fique chateado mas o Mourinho é o meu treinador favorito’. Adoro o Mourinho, mas queremos provocar um escândalo. Nem sei o que lhe dizer quando o tiver à frente, se calhar peço-lhe o casaco.»

Germano (1º em cima, à direita) com a seleção da Guiné-Bissau

O problema é que a baliza do Marine tem estado entregue a Bayleigh Pessant, um guarda-redes da casa. Será assim no domingo? «Espero que não. Se eu jogar de início, este será o dia mais importante da minha carreira. Fecho os olhos e só me imagino a defender um remate do Harry Kane ou do Gareth Bale. Espetáculo.»

Para chegar a esta fase da FA Cup, o secundaríssimo Marine FC teve de ultrapassar cinco (!) rondas preliminares – Barnoldswick, Frickley, Runcorn Linnets, Nantwich e Chester – e duas eliminatórias – Colchester e Havant & Waterlooville. Uma odisseia. 

«Custou muito chegar aqui. No sorteio foi uma maluqueira, parecia que tínhamos conquistado a Liga dos Campeões. Acabou o treino e juntámo-nos a ver na televisão. Espetacular, pá, nem me acredito que vou jogar contra o meu ídolo José Mourinho.»

FOTOS gentilmente cedidas por Germano Mendes ao Maisfutebol