Manchester United e Manchester City são vizinhos, tão próximos – até já partilharam estádio – e ao mesmo tempo tão diferentes. Ambos andaram muito até chegarem aqui, a um dérbi que tem tudo, até sentimentos contraditórios. Na rota do título, da Liga dos Campeões, da hegemonia, do orgulho ferido. Agora o City chega por cima. Não foi assim durante muito, muito tempo e, apesar do crescimento e do ascendente atual dos azuis de Manchester, esta é ainda uma história de rivalidade menos enraizada do que outras. Se não vejamos como, entre os dois males que são o City ou o Liverpool ganhar a Premier League, os adeptos do «red devils» parecem preferir ver festejar os vizinhos em vez do arquirrival. E como os adeptos do Liverpool se veem na circunstância estranha de terem de torcer pelo Manchester United. Que chega aqui a 24 pontos da liderança, mas tem este papel central na luta pelo título. O jogo desta quarta-feira é enorme, por tudo isto. Mas também tem muito para trás.

O City está na luta pela Premier League com um Liverpool muito forte, uma batalha de altíssimo nível pelo título desta época. Vai em 10 vitórias seguidas na Premier League, 14 nos últimos 15 jogos, sendo que a única derrota desse período, com o Tottenham, custou o adeus à Liga dos Campeões. Se ganhar, o City fica com dois pontos de vantagem na frente e deixa ainda mais perdido um Manchester United em queda abrupta depois da ilusão de melhoria com a troca de José Mourinho por Solskjaer. Vem da goleada sofrida em casa do Everton, um 0-4 que entra para o top dos seus piores resultados na Premier League, sofreu seis derrotas nos últimos oito jogos. Está em sexto lugar, a três pontos da zona Champions. Dizem as casas de apostas que tem as piores «odds» de sempre para um dérbi com o City. Se o United levar a melhor reentra na luta pelo quarto lugar e pode atrasar irremediavelmente o City, sendo que também um empate deixa a equipa de Pep Guardiola a correr atrás do Liverpool.

Este será o 178º duelo entre ambos, numa história que começou há quase 140 anos. E teve os dois vizinhos a jogar no mesmo estádio, num tempo de relações cordiais. Nos anos 40, depois dos danos causados em Old Trafford pelos bombardeamentos alemães durante a II Guerra Mundial, o City partilhou Maine Road com o United, que pagava um aluguer para usar o estádio. Foi assim entre 1941 e 1949. É uma história de duelos interrompidos por várias descidas de divisão – bem mais do City que do United -, e de um equilíbrio de forças que mudou ao longo dos anos. Teve um longo período de hegemonia do Manchester United e ganhou nova dimensão quando chegaram os petro-dólares ao City, a partir de 2008.

Curiosamente, o United também tinha passado a ser propriedade estrangeira pouco antes, quando os norte-americanos Glazer compraram o clube. Mas a aquisição do City, primeiro pelo tailandês Thaksin Shinawatra e depois pelo Sheik Mansour e o império financeiro de Abu Dhabi, fez de um clube mediano, que tinha até aí dois títulos de campeão inglês no palmarés e ainda em 2001 tinha descido de divisão, a nova potência do futebol inglês.

O dérbi de Manchester tem historicamente ascendente do United (73 vitórias contra 52 do City e outros tantos empates) e faz-se de muitas histórias. A desta quarta-feira será seguramente mais uma. Mas para trás há muito mais, do jogo que despromoveu o Manchester United à reação de orgulho ferido dos «red devils» na época passada. A lançar o grande jogo desta noite, o Maisfutebol olha para alguns dos duelos que marcaram essa história.

1974, o calcanhar de Law na descida do United

O Manchester United que tinha sido campeão europeu apenas seis anos antes chegava à penúltima jornada em risco de descer de divisão, sem depender apenas de si. Era dérbi em Old Trafford e em campo, como adversário, estava Denis Law, que se tinha mudado para o City depois de 11 épocas no Manchester United. E foi Law quem aos 80 minutos, de costas para a baliza, marcou de calcanhar o único golo do jogo. A expressão dele diz tudo. Vergado ao drama do momento, não festejou. Foi substituído logo a seguir, no meio de uma invasão de campo que acabaria por levar o árbitro a acabar com o jogo a cinco minutos do final. Mas na verdade não foi o golo de Law que condenou o United à última descida de divisão da sua história – já tinha sido despromovido por quatro vezes antes, a última das quais em 1937 -, porque os resultados dos outros jogos ditaram que ela seria inevitável, mesmo que os «red devils» tivessem ganho. Law terminou a carreira no final dessa temporada, o City acabou o campeonato a meio da tabela e o United voltou a subir logo na época seguinte.

1989, o «Massacre de Maine Road»

Nos anos 80 o City andou a vaguear entre a primeira e a segunda divisão. Num dos regressos, em 1989, teve a sua coroa de glória numa goleada ao United que já era de Alex Ferguson: 5-1 no primeiro duelo entre ambos em três anos, num jogo que esteve interrompido por problemas com os adeptos. Mas aquele que os adeptos do City eternizaram como o «Massacre de Maine Road» seria um ponto de viragem. O United estava a lançar as bases para um longo período de hegemonia e passaram 13 anos até o City voltar a vencer o vizinho. Pelo meio voltou a cair, chegou a penar no terceiro escalão do futebol inglês.

1994, o 5-0 a selar a hegemonia do United

Era a segunda temporada desde a criação da Premier League, o Manchester United tinha sido campeão inglês ao fim de um longo jejum de 26 anos e inaugurava uma era de domínio que levou 13 títulos para Old Trafford em pouco mais de duas épocas e permitiu aos «red devils» ultrapassar o Liverpool como o clube com mais campeonatos inglês no palmarés. Foi no início dessa era, na rota para o segundo campeonato seguido, que deixou uma categórica demonstração de força frente ao City: 5-0, o maior triunfo de sempre do United no dérbi. Eric Cantona abriu as hostilidades, o herói do jogo foi o russo Andrei Kanchelskis, que assinou um «hat-trick». Ainda deu para marcar também Mark Hughes, que viria a ser treinador do City uns bons anos mais tarde.

2009, o «melhor» dérbi com os «vizinhos barulhentos»

Em 2009 viviam-se outros tempos no futebol inglês. Primeiro com o Chelsea de Roman Abramovich e José Mourinho à frente do projeto desportivo, mais tarde com o Manchester City, outro projeto de crescimento rápido à força de muito dinheiro e contratações sonantes. Ainda assim, o United entrava nessa época como tricampeão e depois de jogar a final da Liga dos Campeões. Nesse verão, um ano depois da compra pelo sheik Mansour, o City contratou Carlos Tevez, que não tinha renovado com o United, e fez do argentino troféu, ostentando um cartaz gigante com a frase «Bem vindo a Manchester». «Vizinhos barulhentos», chamou-lhes Alex Ferguson: «São um clube pequeno, com mentalidade pequena». O dérbi chegou logo em setembro, com muito ruído à volta. Em campo, foi um enorme jogo. Cristiano Ronaldo tinha deixado Old Trafford e Nani ficou no banco a ver Rooney inaugurar o marcador aos dois minutos, Gareth Barry igualar para o City, Fletcher voltar a dar por duas vezes vantagem ao United e a ambas Craig Bellamy responder com golos, o último dos quais em cima dos 90 minutos. Mas a expressão «Fergie Time» associada ao United de Alex Ferguson não veio do nada. O jogo levava cinco minutos de descontos quando Michael Owen apareceu a fazer o 4-3 final. Mark Hughes, que em dezembro sairia para dar lugar a Roberto Mancini, terminou furioso, a falar em «roubo» por o árbitro ter dado sete minutos de descontos. Alex Ferguson rejubilou e chamou-lhe «o maior dérbi de todos os tempos.»

2011, 6-1, Balotelli e a grande humilhação

Outubro de 2011, Old Trafford. O dérbi da primeira volta chegava à 9ª jornada, com o City na frente e o United a dois pontos. O que aconteceu foi uma humilhação sem apelo nem agravo, do primeiro golo apontado por Mario Balotelli ao 6-1 final selado por Edin Dzeko. Balotelli, sempre nas bocas do mundo e mais ainda nessa altura depois de ter pegado acidentalmente fogo à sua própria casa, marcou dois golos e nos festejos levantou a camisola a mostrar a inscrição que ficou famosa: «Why always me?» Ferguson assumiu o descalabro. «É o pior resultado da minha carreira, de sempre». Mas o treinador disse que a equipa ia recuperar. E recuperou, até chegar ao dérbi da segunda volta, a três jornadas do fim, com três pontos de vantagem. Era jogo do título e acabou por levar a melhor o City, com um golo de Kompany que selou o primeiro título para os azuis de Manchester em 44 anos. Terminaram iguais na frente, com vantagem do City na diferença de golos. O United ainda foi campeão na época seguinte, na despedida de Alex Ferguson, mas foi a última vez até hoje.

2018, na minha cara não

O City de Pep Guardiola dominou o campeonato 2017/18 desde o início e chegava à 33ª jornada a poder ser campeão. Para isso precisava de vencer no dérbi o Manchester United de José Mourinho, segundo a 15 pontos de distância. Era uma questão de tempo, mas o United recusou ser o bombo da festa, numa reviravolta épica. O City chegou ao intervalo no Etihad a vencer por 2-0 e a coisa parecia resolvida. Mas não estava. Na segunda parte apareceu Pogba, marcou um e depois outro e aos 69m Chris Smalling completou a reviravolta. 3-2 e uma manifestação de orgulho do United, que durou pouco. Na ronda seguinte foi uma derrota dos «red devils» frente ao último classificado a entregar mesmo o campeonato ao City: o terceiro em sete épocas, o quinto no total para os Citizens. O United foi segundo, a 19 pontos do City, e essa foi a melhor classificação do clube nas cinco épocas pós-Ferguson.