Martin Odegaard tinha 15 anos quando se estreou pela seleção da Noruega. Já jogava na equipa principal do Stromsgodset, tinha o mundo todo atrás dele - incluindo o Sporting - e dedicou-se a escolher para onde iria numa espécie de digressão de luxo pelos centros de treino da elite europeia. Um dia, nesse ano de 2014, viu-se em Londres, frente a frente com o então treinador do Arsenal.

«Levou-me a jantar a mim e ao meu pai. Foi porreiro, mas também estranho. É o Arsène Wenger, estão a ver? É a lenda que eu me habituei a ver na TV e agora estou à frente dele a comer um bife. Estava tão nervoso que fiquei ali sentado a pensar: ‘Será que ele me está a analisar? Vai-me julgar se eu comer as batatas fritas? Se calhar é melhor não as comer.»

Esta é uma passagem de um texto na plataforma Players Tribune em que Odegaard recorda o seu percurso de menino-prodígio que acabou por escolher o Real Madrid mas não se afirmou no Bernabéu, andou emprestado pelos Países Baixos, voltou a Espanha para a Real Sociedad e voltou a Madrid. Podia ser a história de uma promessa que não vingou. Mas não é. A vida de Odegaard deu muitas voltas. Mas oito anos depois daquele jantar com Wenger ele encontrou o seu lugar, precisamente no Arsenal. E é hoje a melhor versão daquilo que sempre prometeu.

O jogador que vê mais à frente, combinação ideal entre inteligência e técnica, é aos 24 anos capitão de um Arsenal que volta, ao fim de muito tempo, a apresentar uma candidatura sólida ao título e enfrenta esta semana um teste de fogo, no duelo para acertar calendário frente ao Manchester City.

«Uma caminhada diferente do que imaginei no FIFA»

Odegaard conta que sempre teve um fraquinho pelo Arsenal. Era o clube que escolhia quando jogava FIFA e, no papel de Arsène Wenger, comprou-se a si próprio. Essa «ligação especial» tornou-se realidade. Mas não foi linear. «A minha história não é decididamente Modo Carreira. Foi uma caminhada diferente do que eu imaginei no FIFA. Na vida real, não podemos simplesmente escolher para onde vamos e garantir que tudo será perfeito.»

O futebol foi sempre o centro da vida de Odegaard, uma obsessão. «Havia um relvado artificial ao lado da minha casa em Drammen», recorda, «e eu vivi lá toda a minha infância: «Às vezes agora volto a casa, vejo miúdos naquele mesmo campo só a falarem, a darem toques ocasionais e fico tipo ‘o que é que estão a fazer’? Não era assim que eu e os meus amigos jogavam. Nós jogávamos torneios, jogávamos um para um até escurecer. Era muito a sério.»

Era o pai, antigo jogador, que o treinava no seu primeiro clube, o Drammen Strong. Hans Erik foi figura de primeiro plano no lançamento de Martin, mas o filho diz que não era o que parecia. «Pensam que conhecem a história? O pai insistente a obrigar o filho a praticar todos os dias. Na verdade, era o contrário. Eu é que insistia com ele. Ele sabia coisas que os outros pais não sabiam», conta Odegaard, a recordar como no inverno iam os dois para um pavilhão treinar: «Ele lançava a bola de um banco ela voltava para mim. Ele vinha por trás, a pressionar-me e eu tinha de olhar e posicionar-me antes de a receber. Quando hoje em dia me veem fugir a um defesa, usando aquele toque e a leitura rápida de jogo, isso é o pavilhão. Isso é o meu pai.»

O jogador «capaz de tornar toda a gente à volta dele melhor»

Depois mudou-se para o Stromsgodset, onde o pai tinha jogado. Estreou-se na equipa principal aos 13 anos. O português Vítor Gazimba, hoje na Polónia, treinava a equipa B do clube e recorda esses dias. «Começou na equipa B e rapidamente se integrou na equipa principal», conta o técnico português ao Maisfutebol. «Quando entrei no clube tinha alguma informação da equipa, mas queria ser eu a formar a minha própria ideia, sem ser influenciado por outras opiniões. Assim que entrámos no campo, ao fim de 30 segundos fui perguntar quem era aquele jogador.»

«Qualquer pessoa conseguiria identificar um talento tão grande», diz: «Um toque de bola e uma visão de jogo extraordinários, uma mente brilhante.» Um jogador, continua, capaz de «tornar toda a gente à volta dele melhor»: «Um jogador de domínio com muita criatividade, com grande entendimento do jogo, muito bom em termos de tomada de decisão. Era facílimo jogar com o Martin.»

É uma espécie de protótipo de jogador ideal, diz o treinador português: «Um treinador que pudesse, no vazio, descrever o que queria de um jogador, estaria muito próximo de idealizar um jogador como o Martin. Topo em termos de talento, de disponibilidade física, testes físicos. Em termos de comportamento na escola também. Inteligente dentro e fora do campo. E com capacidade de trabalho.»

O potencial daquele talento foi evidente para todos. Gazimba recorda o dia em que, com 15 anos, Odegaard se cruzou com a seleção portuguesa de sub-21, em setembro de 2014: «Por Portugal alinharam no meio-campo Sérgio Oliveira, Bernardo Silva e João Mário. Também o Raphael Guerreiro, ou seja, valor imenso na seleção portuguesa. E o Martin foi escolhido unanimemente por todos os jornalistas como homem do jogo, apesar de ser o mais jovem, com cinco, seis anos menos que os outros.»

Quando as coisas «ficaram realmente loucas»

A notícia do prodígio norueguês já corria mundo. «Nesse ano tivemos equipas de todo o mundo, basicamente, a ver tanto os nossos treinos como os jogos. Tudo o que era clube grande europeu queria ver um talento que toda a gente percebeu que era especial. Foi uma corrida para verem quem conseguia contratá-lo», recorda Vítor Gazimba.

Nas palavras de Odegaard no Players Tribune, «foi então que as coisas ficaram realmente loucas».

A atenção mediática era enorme. Mas não o intimidou. «Não vivia numa bolha», conta o jogador: «Eu lia tudo o que se escrevia sobre mim. Sentava-me e lia os jornais. Mas lia-os e pensava: ‘OK, porreiro.’ E pronto. Seguia em frente.»

Vítor Gazimba reforça a ideia de que Odegaard nunca se deixou deslumbrar. «Manteve sempre os pés assentes na terra, focado em dar o seu melhor, sem nenhum deslumbre. Com tudo isto, um jogador de 15 anos podia bem ter abanado, mas ele foi sempre no sentido de se tornar melhor a cada dia.»

Odegaard recebeu convites para os centros de treino de todos os grandes da Europa. «O meu pai tratou de tudo com os clubes, e eram muitos. Fomos ao Bayern, Dortmund, Manchester United, Liverpool, Madrid, ao Arsenal também. Íamos em aviões privados e faziam-nos sentir especiais.»

O Sporting também na corrida

Nessa altura, também o Sporting procurou seduzi-lo. Tomás Pereira, que foi scout dos leões na Escandinávia, já contou essa história ao Maisfutebol. «Na altura, pessoas do Sporting contactaram-me no sentido de ver se seria possível chegar de forma mais pessoal ao contacto com o Martin», acrescenta agora Vítor Gazimba, sem adiantar se houve na altura mais clubes portugueses a abordá-lo nesse sentido. «Foi uma corrida de toda a Europa», diz: «Basicamente ele tinha possibilidade de escolher qualquer sítio para onde quisesse ir.»

Odegaard escolheu o Real Madrid. «Afinal, o Madrid é o Madrid. Eram os detentores da Liga dos Campeões, com os melhores jogadores do mundo. Na altura, eu adorava o Isco – era tão bom com a bola», conta Odegaard, explicando que o fator decisivo foi o facto de o Real ter uma equipa secundária, o Castilla, onde ele podia «competir imediatamente»: «E o treinador dessa equipa? O Zinedine Zidane. Parecia o pacote completo.»

«Deus, quem me dera ter mudado de camisola»

Então, aterrou em Madrid numa manhã de janeiro de 2015, com 16 anos acabados de fazer. Esse dia deixou-o traumatizado até hoje. «Tornei-me basicamente um meme.» Conta Odegaard que o Real mandou um avião para o trazer da Noruega. Era muito cedo, não tomou banho e vestiu a primeira coisa que apanhou, pensando que teria tempo de ir ao hotel em Madrid. Mas não. Foi direto ao estádio, para ser apresentado.

«De repente estou sentado ao lado da lenda do Real Madrid Emilio Butragueño – que obviamente está a usar um fato todo janota – e estão a apresentar-me ao mundo. Sei que viram as fotografias. Eu, na minha velha camisola às riscas, sem ter tomado banho, a tentar ajeitar o cabelo com as mãos. Era o maior dia da minha vida, as imagens a correrem mundo. É suposto eu ser o jogador por quem o Real conseguiu bater toda a concorrência e pareço um miúdo qualquer da escola que acabaram de ir buscar à visita ao estádio. O Butragueño está a apresentar-me e na minha cabeça só penso: ‘Deus, quem me dera ter mudado de camisola’.»

Sem idade para conduzir, era o pai que o levava de carro para os treinos do Real Madrid. «Foi surreal. O meu pai tinha de levar-me para jogar com o Isco e o Ronaldo e o Ramos e o Modric, o Bale e o Benzema, como se estivesse a deixar-me na escola.»

Odegaard diz que foi bem recebido e que os jogadores que falavam inglês, como Kroos, Modric e Cristiano Ronaldo, se encarregaram de o acolher: «Deram-me conselhos e ajudaram-me muito.»

«Tudo ou nada?! Tenho 18 anos!»

Mas, a saltar entre o Castilla e a equipa principal, Martin nunca encontrou o seu espaço. «O plano era eu treinar todos os dias com a primeira equipa, mas jogar regularmente com a equipa B. Pareceu um bom plano na altura, mas no fim de contar acabei sem encontrar o meu lugar em nenhum dos grupos.»

Após duas épocas, sentiu que tinha de mudar. «Deixei de jogar com a chama que era típica do meu jogo. Preocupava-me mais em não cometer erros do que em jogar o meu jogo. E o meu jogo sempre foi sobre fazer a diferença. Fazer o passe difícil», diz: «Depois de um par de anos, eu não estava a progredir.»

Com o passar do tempo veio também a cobrança da imprensa. «Lembro-me de ler um título que dizia 'Agora é altura do tudo ou nada para Martin Odegaard!' E eu a pensar, ‘Tudo ou nada? Tenho 18 anos!'»

Agora, reflete com serenidade sobre isso: «No fim de contas, é a natureza da máquina de ‘hype’. Não há meio termo no futebol moderno. Ou és a melhor contratação da história, ou és uma m….»

Odegaard não se arrepende de ter ido para o Real Madrid. «Foi bom para mim. Aprendi muito sobre o que é preciso para chegar ao topo. Vi, treinei e aprendi com os melhores jogadores do mundo, os meus ídolos. Joguei no Bernabéu. Aprendi a ser duro e a enfrentar desafios. É parte do que sou agora. É a razão para estar onde estou agora.»

«Os clubes já não faziam fila por mim»

Mas naquela altura tinha de mudar. «Nunca perdi de vista o quadro maior», diz: «Pensei sempre no que precisava de fazer para ser a melhor versão de mim próprio. Era por isso que precisava de mudar.»

Já não estava meio mundo atrás dele. «Tinha de aceitar o facto de que os clubes já não faziam fila por mim.»

Foi para os Países Baixos, por empréstimo do Real Madrid. Primeiro, uma época e meia no Heerenveen. Correu bem, ainda que não tenha havido muita gente a reparar, diz Odegaard, agora de viva voz, numa entrevista associada ao texto no Players Tribune: «Estive lá um ano e meio, mas porque não marquei muitos golos e não fiz muitas assistências, ninguém falava sobre isso ou valorizava o que eu fiz.»

Seguiu-se o Vitesse, outra boa experiência para Odegaard. E depois voltou a Espanha. O acordo era para jogar duas épocas por empréstimo na Real Sociedad. Fez só uma, durante a qual até marcou um golo ao Real Madrid para a Taça do Rei.

O Real chamou-o de volta ao fim da primeira temporada em San Sebastian. Odegaard achou que tinha chegado a sua hora. «Pensei: ‘Tenho de aproveitar esta oportunidade. Este é o sonho que eu persigo desde os 16 anos’.»

O treinador era agora Zidane e tudo parecia bem encaminhado. Mas não. «Apanhei Covid. Fui titular nos primeiros dois jogos da época 2020/21, mas não estava totalmente recuperado. Não estive no meu melhor e depois disso não tive muitas oportunidades. Quase nada. Entranto, via a Real Sociedad na televisão e pensava: ‘Ainda podia estar ali.’

Em Londres encontrou uma casa

Em dezembro decidiu que queria mudar e acabou por vencer a relutância do seu agente, convencendo-o a falar com o Arsenal, que já tinha revelado interesse em contratá-lo. Conta como teve uma conversa via Zoom com Mikel Arteta e ficou seduzido: «Honestamente, desafio quem quer que seja a sair de uma reunião com o Arteta sem acreditar em tudo o que ele disse.»

«Fiquei com a impressão forte de que ele estava ali a construir algo especial», diz Odegaard, sem poupar nas palavras sobre como foi feliz a escolha pelo Arsenal: «Precisava de encontrar um lugar onde assentar. Precisava de encontrar uma verdadeira casa. Encontrei-a no norte de Londres.»

Meia época no Emirates confirmou que aquele era um casamento perfeito. Mas ainda não era definitivo. No verão de 2021, o Real Madrid voltou a chamá-lo, para cumprir a pré-temporada. «Ao fim de algum tempo falei com o treinador, o Ancelotti, e percebi que não me queriam tanto como tinham dito no verão, sabem?», conta Odegaard na entrevista. E então acertou a saída em definitivo: «Ligámos outra vez ao Arsenal e tudo se compôs.»

Agora sim, Odegaard podia concentrar-se em ser a melhor versão de si próprio. Ainda no passado sábado, no programa de jogo do Arsenal-Brentford, ele recordava como é recente a estabilidade que vive: «Acho que esta foi a primeira época em seis ou sete anos em que eu sabia realmente que ia ficar no mesmo sítio depois do verão.»

No Boxing Day deste ano, Odegaard reencontrou Wenger pela primeira vez desde aquele bife com batatas fritas. «Ele foi honesto e disse que a certa altura estava preocupado com a forma como as coisas estavam a correr para mim.»

«Foi sempre o mesmo jovem, com os pés na terra»

O percurso de Odegaard não foi linear. Mas ele teve sempre tudo o que era preciso. Vítor Gazimba diz que, pela sua parte, nunca teve dúvidas. Desde logo porque continuou a acompanhar Odegaard nos anos seguintes e viu sempre o mesmo equilíbrio. «Ele regressava várias vezes, houve várias vezes que treinou connosco na altura das férias de verão. Era o mesmo jovem, com a mesma ambição, os mesmos pés na terra, a qualidade cada vez mais aprimorada. Sem nada que lhe tenha sido tirado ou que tenha sido perdido. Pelo contrário, sempre acrescentando um pouquinho mais», diz o técnico português.

«Já vimos muitas grandes promessas que acabaram por não se afirmar. Isso é banal. Mas no caso do Martin, para ser sincero, não tive qualquer dúvida de que era uma questão de tempo, de chegar ao sítio certo na altura certa», afirma Gazimba: «O talento transbordava, a ética de trabalho também. Com tanta qualidade junta num miúdo que cuida de si, totalmente focado em ser melhor a cada dia, muito bem educado também em casa, a certeza que tive era que este jovem ir chegar muito longe.»

Agora, está no sítio certo. «O Arsenal assenta-lhe perfeitamente. Vamos ver se serão mesmo campeões passado tanto tempo com ele como capitão. Seria um gosto vê-lo levantar a taça», diz Vítor Gazimba. Mas, acrescenta, ainda tem o futuro pela frente: «Nós já o vemos há muito tempo, mas ele acabou de fazer 24 anos, ainda é um jovem.»