Foram praticamente quatro décadas em que Johan Cruijff se cruzou com o futebol português. Da sua explosão como futebolista, no final dos anos 60, até ao «dream team» do Barcelona e a todo o legado que as suas ideias como técnico deixaram até aos tempos atuais. Ainda há muito do génio holandês na forma como várias equipas jogam, umas mais óbvias que outras. Portugal, claro, também não passa ao lado.

Em campo, encontrou-se com o Benfica por duas vezes na Taça dos Campeões Europeus. Fez miséria na Luz, por exemplo, em 1969, com dois golos, numa das primeiras amostras de qualidade. Um prenúncio do que aí vinha, cinco anos antes do Mundial da Alemanha em que pintou o quadro que quis quase até ao final.

Dos duelos com o Benfica nasceu uma relação com Eusébio que era conhecida. Nos anos 70, por exemplo, chegaram a encontrar-se no Algarve, durante as férias. Aliás, o clube da Luz, na mensagem de homenagem que publicou esta quinta-feira, juntou os dois ícones, agora no panteão das lendas do futebol.

Mas o principal legado de Cruijff ao futebol português veio pelas ideias que colocou em campo, sobretudo na construção da famosa equipa do Barcelona do início dos anos 90. Foi aquela forma de jogar tão característica, inspirada nos conceitos do futebol total de Rinus Michels, que dava um peso importante à própria estética que cativou adeptos por todo o globo. Portugal não foi exceção.

Jorge Jesus é o caso mais conhecido. O atual treinador do Sporting era tão fascinado pelas ideias do holandês que na sua primeira experiência na Liga portuguesa, ao serviço do Felgueiras, usava o esquema do Barça para dar a tática aos jogadores.

A história foi contada por Avelino, que era um dos guarda-redes da equipa, ao Maisfutebol em 2013: «Todo o trabalho era feito na lógica do Barcelona, eram apresentados os nomes dos jogadores do Barça e substituídos pelos nossos nomes. Por exemplo, o Guardiola era o pivô defensivo do Barcelona e o Jorge Jesus queria o Costa (ndr. João Carlos Costa) a fazer de Guardiola. Entretanto, chegou o Sérgio Conceição e teve de passar a jogar à Barça, fazendo todo o corredor direito. Ao início riamo-nos com aquilo, tenho de admitir. Mas a verdade é que jogávamos muito à bola. Ele é que tinha razão.»

Em declarações ao site do Sporting, Jorge Jesus voltou a falar da paixão. «Também fui um pouco influenciado por essa ideia de que ganhar é importante mas não chega. Sou um grande defensor dessa ideia que partilho na minha forma de ver o futebol. Mas Cruijff só há um. Era uma grande figura, um dos grandes mentores e criadores do que é o futebol moderno», elogiou.

Vítor Frade, professor de Ciências do Desporto na Faculdade de Educação Física da Universidade do Porto, trabalhou de perto com Jesus e testemunhou esse fascínio. Mas frisa que não é caso, raro, longe disso.

Em conversa com o Maisfutebol lembra Vítor Pereira, atual técnico do Fenerbahce. Em 1993, concluiu a sua licenciatura, com uma tese orientada por Vítor Frade que se debruçava sobre o futebol do Barcelona de Cruijff.

«Ele [Vítor Pereira] tinha um fraco pela cultura daquele Barcelona. Era preciso escolher um tema e como ele tinha essa paixão e só pensava em futebol não foi difícil. Foi uma boa tese, tenho de dizer», relata. De facto, o técnico conseguiu a classificação de 19 valores.

Vítor Frade lembra um Vítor Pereira deveras entusiasmado: «Ele só queria saber de futebol. Dizia-me mesmo cara a cara: ‘professor eu só estou aqui para ser treinador’. Era muito interessado. Tive muita gente a fazer teses sobre o Cruijff e o Barcelona mas, passe a expressão, ninguém era tão picuinhas como o Vítor (risos). Creio que até foi a Barcelona assistir a alguns treinos e tinha a casa cheia de cassetes.»

Vítor Pereira no início da carreira

O que tem de especial o futebol de Cruijff?

O lado mais inspirador do futebol preconizado por Johan Cruijff, e que cativou tantos portugueses, era a preocupação com o jogo. Gostava de ser pedagogo e de ver que outros compreendiam e pegavam nas suas ideias, tentando colocá-las em prática. Chegou mesmo a dizer que era um prazer enorme ver os seus antigos jogadores reproduzirem o seu pensamento, ou até aprofundá-lo, quando se tornavam treinadores.

Pep Guardiola será, porventura, o mais famoso discípulo. Vítor Frade, que orientou «mais de mil teses» no seu percurso académico, reconhece que havia uma atração muito grande pelas ideias de Cruijff. «Hoje em dia é com o Guardiola. Mas o ponto inicial de tudo era o Cruijff e continua a ser», sublinha.

«Esta paixão pelo jogo do Cruijff não é à toa. Estamos a falar de alguém que é um marco na evolução qualitativa do futebol. O Guardiola é outro. O que têm eles em comum? Se reparar não é normal que jogadores top resultem em treinadores top. E eles foram jogadores e treinadores de altíssimo nível. Apaixonados pelo futebol espetáculo, entusiasmante, esteticamente impecável», descreve.

E acrescenta o pormenor que, defende, faz a diferença e seduz: «O que é difícil é manter as mesmas ideias como jogador e como treinador. Porque o jogador vê sempre o jogo de forma mais romântica e o treinador depois tenta ser mais estratega. E muitas vezes as coisas mudam. Com Cruijff se mudou, mudou muito pouco.»

Para reforçar esta ideia, Vítor Frade recorda uma conversa nos tempos em que integrava a estrutura do FC Porto, antes de um jogo que a equipa se preparava para fazer na Suécia.

«Tive uma conversa com o [Bobby] Robson, Inácio, Mourinho até o presidente [Pinto da Costa]. Falávamos dos grandes jogadores ingleses. E o Robson pergunta-me: ‘o que acha do Jimmy Hagan?’ Eu sabia lá. Eu sabia que o Hagan, como treinador, era um tipo muito duro, de treinos muito físicos, imaginava que fosse também assim como jogador. E o Robson diz-me: ‘pode ter a certeza que quem viu jogar o Hagan o coloca nos melhores médios de sempre do futebol inglês’. Lá está, foi uma coisa como jogador, outra com treinador. Difícil é fazer o que fazia o Cruyff, que conseguia manter a paixão do futebol e aquela simbiose perfeita entre eficiência, eficácia e estética», resume.

Mourinho: primeiro apaixonou-se, depois ficaram de costas voltadas

Outro treinador português que pode ser associado a Johan Cruijff é José Mourinho. Mas, essencialmente, pelo choque de estilos. Pelo menos é a versão mais corrente, embora Vítor Frade saliente que nem sempre foi assim.

«Se forem ver as primeiras entrevistas do Mourinho, ele fazia uma apologia declarada ao futebol do Cruijff. O tempo mudou-o. Agora é um estratega, acima de tudo», considera.

José Mourinho nos tempos da U. Leiria

Vítor Frade dá um exemplo que apoia a sua ideia: «Mourinho sempre foi conhecido por colocar muita bola nos treinos. Isso é um princípio de Cruijff, também.»

Contudo, Mourinho acabou por desencontrar-se com Cruijff várias vezes ao longo da sua carreira. Quando acompanhou Bobby Robson rumo ao Barcelona, em 1996, foi precisamente para substituir o holandês. E, quando Robson saiu, Mourinho ficou trabalhando com Louis Van Gaal, que com Cruijff apenas partilhava a nacionalidade...

É, de resto, associada a Johan Cruijff a escolha de Pep Guardiola para treinar o Barcelona no final da era Frank Rijkaard, quando havia muita gente a pensar que seria altura de José Mourinho voltar a Camp Nou.

É verdade também que o português ficou um treinador diferente depois de sair do FC Porto. E cada vez mais distante do estilo Cruijff.

«No tempo do FC Porto ele ainda tinha de fazer equipas. Pegar em miúdos e fazer deles jogadores dentro das suas ideias. Depois disso começou a poder comprar os jogadores que precisava dentro da estratégia que tinha pensada. É alguém extraordinariamente inteligente e estuda ao máximo os pontos fracos e fortes do adversário. O futebol dele é estratégia, não tem problemas em prescindir de outras dimensões para chegar a um fim. Isso com Cruijff é impossível», defende

Ainda assim, não tem dúvidas que, tal como Cruijff é «ímpar» e «fica na história do futebol», Mourinho também o será. Mas, ao contrário o que parecia antever o início da carreira, sendo muito distinto do eterno «El Flaco».

«O trajeto do Mourinho não é, sequer, criticável. De certa forma o Vítor Pereira fez algo parecido, mas em menor escala. Ou seja, começam por ser apaixonados pelo lado mais estético e depois optam pela estratégia. É um percurso normal nos treinadores, poucos são os que não o fazem. O Cruijff foi um dos mais resistentes, sem dúvida, e por isso é tão especial», completa Vítor Frade.