Itália aprovou nova legislação fiscal que chamou a atenção do futebol, fez soar campainhas e já levou o presidente da Liga espanhola a alertar para os riscos da concorrência. Impostos e competitividade, uma questão muito sensível, entre países e entre campeonatos de futebol.

O «Decreto Crescita» entrou em vigor em Itália esta semana, numa versão final com alterações em relação ao texto original, menos vantajosa precisamente no que diz respeito a desportistas profissionais. Ainda assim, em teoria bem favorável: jogadores e treinadores pagarão impostos sobre apenas 50 por cento dos rendimentos.  

A medida, designada «regresso dos cérebros», é válida para quem for trabalhar para Itália, não tendo residido no país nos últimos dois anos. Para os trabalhadores em geral é ainda mais generosa: só 30 por cento dos rendimentos estão sujeitos a impostos, e esse valor baixa para 10 por cento para quem for trabalhar nas regiões do sul. A única condição é que fiquem por dois anos no país.

No início era assim para toda a gente, mas depois de muito ruído em torno da forma como as medidas podiam afetar o futebol – nomeadamente a preocupação com a proteção dos jogadores italianos - o governo transalpino recuou e inseriu na lei uma exceção para desportistas profissionais. Serão tributados em 50 por cento dos rendimentos e não é válido o regime mais favorável para o sul, o que no futebol beneficiaria, por exemplo, o Nápoles. Além disso, os desportistas têm de pagar ao Estado uma taxa de 0.5 do seu rendimento tributável, dinheiro que será aplicado no «desenvolvimento da formação». À partida o novo regime incide sobre rendimentos a partir de 2020, pelo que ainda não é claro como será para jogadores ou treinadores que cheguem a Itália neste defeso de 2019, mas há poucas dúvidas de que virá a ser um atrativo adicional para a Serie A.

E mais uma taxa fixa com Cristiano Ronaldo no meio

Até porque Itália tinha já em vigor um outro incentivo fiscal que também foi visto como potencialmente sedutor para jogadores de alto nível: uma taxa fixa máxima de 100 mil euros para todos os rendimentos obtidos no estrangeiro. Essa «flat tax», que se pode aplicar no caso de jogadores a patrocínios, direitos de imagens ou vários tipos de investimentos, foi aliás associada no verão passado à transferência de Cristiano Ronaldo para a Juventus. A mudança do internacional português, que aliás teve problemas com o Fisco em Espanha, foi um enorme golpe mediático para o campeonato italiano, mas a nova legislação pode facilitar a chegada de mais nomes sonantes.   

Em Itália já comparam a nova lei a outra medida famosa de incentivo fiscal ao futebol, usada em Espanha no início do século e que ficou conhecida como «Lei Beckham», por ter coincidido com a chegada do jogador inglês ao Real Madrid. Essa legislação permitia a quem chegasse do estrangeiro pagar apenas 24 por cento de impostos e ter os rendimentos no exterior isentos. Criticada sobretudo nos tempos da recessão europeia, acabou por ser alterada e agora o acesso dos jogadores a esse regime mais favorável está bloqueado.

É precisamente de Espanha que chegam os principais sinais de preocupação com as novas medidas em Itália. Nesta altura, o escalão máximo de imposto de rendimento em Espanha está nos 47 por cento. Em Itália, cobrando apenas por metade do rendimento, o valor efetivo fica-se pelos 23 por cento.

Ana Duarte, diretora de fiscalidade da PwC, acredita que Itália pode estar mesmo a ganhar vantagem competitiva. «Imagino que o novo regime vá pesar», afirma em declarações ao Maisfutebol, ainda sem ter analisado o impacto da nova legislação, mas lembrando que estas medidas se associam à tal «flat tax» para rendimentos no exterior, que já era um aliciante forte do futebol italiano: «Para pessoas como o Cristiano Ronaldo, com elevado volume de negócios, esse regime é bastante atrativo.»

O contraste com o campeonato espanhol torna-se mais claro. «Espanha tem um regime especial que se aplica à generalidade dos contribuintes, mas exclui logo expressamente jogadores de futebol e desportistas», observa: «Não é de agora que Espanha está a perder competitividade.»

O presidente da Liga espanhola, Javier Tebas, tem insistido na ideia de que a Liga espanhola tem vindo a perder competitividade por causa dos impostos e renovou os alertas face à nova legislação em Itália. Já esta semana, num artigo publicado no jornal Expansión, reforçou a ideia.  O dirigente defende uma «homogeneização dos impostos no futebol europeu», mas de caminho pede que a legislação fiscal espanhola se adapte à concorrência: «Como essa harmonização está fora do nosso controlo, depende do nosso país alinhar-se com outros países europeus quanto aos sistemas fiscais com jogadores de futebol.»

O peso dos impostos e a concorrência… desleal?

Há muitos fatores a definir a competitividade e a dimensão de uma Liga, mas os impostos pesam seguramente na hora de os jogadores decidirem para onde vão jogar, como nota ao Maisfutebol António Samagaio, professor do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG). «Quando um jogador negoceia um contrato normalmente fala-se sempre em verbas líquidas. O clube tem de fazer o cálculo subjacente à carga fiscal», afirma: «Hoje em dia a variável fiscal é um dos fatores que pode condicionar o processo de transferência. Recentemente orientei uma tese onde procurámos questionar alguns jogadores portugueses e estrangeiros, alguns com experiência internacional, e eles mostraram isso, a questão fiscal não é posta de parte na escolha de um clube. Com outros fatores, como a atratividade do campeonato, o projeto do clube.»

A diferença de ganhos ou perdas com impostos é mais relevante ainda para jogadores ou treinadores com altos rendimentos e é na capacidade de os atrair que se joga parte do estatuto de um campeonato. António Samagaio acredita que o futebol italiano esteja a ver nesta nova legislação uma oportunidade para recuperar alguma da notoriedade perdida. «Itália nos anos 90 era o grande campeonato europeu. Perdeu esse estatuto, neste momento é a Inglaterra», observa: «Dificilmente Itália conseguirá superar a Inglaterra, mas pode concorrer com a Espanha e a Alemanha.»

A questão é válida para todos os campeonatos. Por cá, também a Liga e a Federação puseram recentemente a fiscalidade em cima da mesa na discussão sobre a necessidade de aumentar a competitividade externa do futebol português.

A questão da concorrência fiscal coloca-se bem para lá do futebol. «No futebol é mais mediático, porque estamos a falar de estrelas, mas esta questão da concorrência fiscal é transversal. São formas de competitividade fiscal que os países procuram encontrar», observa António Samagaio. «Como em Portugal, com o regime dos não residentes», exemplifica.

Há aliás outra iniciativa fiscal em Portugal que foi vista como uma oportunidade para jogadores de futebol, o Programa Regressar, que oferece também isenção em metade dos rendimentos a emigrantes que tenham estado pelo menos três anos fora e voltem a pagar impostos em território nacional. E também existe uma taxa mais favorável para vários tipos de rendimentos que não os de trabalho. «O rendimento de trabalho é tributado a 40 e tal por cento. O regime da taxa liberatória, tributado a 28 por cento, é bem mais favorável», nota António Samagaio.

As formas que os países encontram para procurar através de incentivos fiscais atrair investimento e dinamizar a economia são um instrumento poderoso e sensível, que levanta muitas questões, desde logo a distorção dos princípios de igualdade. «Colocam-se várias questões, nomeadamente dentro do espaço da União Europeia, até que ponto não é desleal, não é concorrência desleal», nota António Samagaio.

Além disso, também no futebol a concorrência vai para lá do espaço da União Europeia. O que diz igualmente respeito a Portugal, que não está no mesmo patamar das grandes Ligas, mas compete com outros campeonatos mais periféricos. «Há ainda a questão extra União Europeia», nota António Samagaio: «Há países, como a Rússia ou a Turquia, que têm regimes fiscais genericamente mais favoráveis que o da União Europeia. É por isso que vemos equipas turcas a oferecer verbas muito avultadas, porque não têm a mesma carga fiscal.»

«Neste momento a fiscalidade é um dos poucos instrumentos que restam aos Governos para influenciar a economia, além da despesa. Antes havia também a moeda, mas a partir do momento em que estamos na moeda única essa deixou de contar. A fiscalidade é o instrumento por excelência para influenciar o comportamento da economia», analisa António Samagaio.

Por isso, o professor do ISEG não acredita que seja possível chegar à tal «harmonização» que o presidente da Liga espanhola defende para o futebol, mesmo dentro do espaço da União Europeia: «Não acredito. Tem havido várias situações na Europa e não tem havido harmonização. A Holanda com as SGPS, o Luxemburgo... Não há aqui propriamente um caminho para a harmonização. O futebol é uma área económica. Se acontecesse para o futebol logo a seguir ia colocar-se a questão para a generalidade das empresas.»