As camisolas de aquecimento viradas do avesso, para esconder o símbolo da Federação americana. Na noite de quarta-feira a seleção norte-americana feminina preparava-se para jogar – e ganhar – mais uma final e esta foi uma forma de protesto, para marcar uma luta que se arrasta, a batalha legal pelo direito ao «equal pay», remuneração igual à seleção masculina. No dia seguinte, o presidente da US Soccer demitiu-se. Uma questão de fundo em jogo no caso que já abalou as estruturas do futebol norte-americano e que tem julgamento marcado para maio, ainda que num cenário temporal agora mais indefinido por causa dos tempos absolutamente excecionais que se vivem no mundo com a pandemia do novo coronavírus.

O protesto das campeãs do mundo na final da SheBelieves Cup, que se jogou no Texas e onde os Estados Unidos venceram na final o Japão, surgiu depois de ter sido revelado o memorando que a Federação enviou para o tribunal, rebatendo os argumentos da queixa que foi apresentada há um ano por 28 jogadoras da seleção. Na sua defesa, a Federação argumentava que os jogadores e as jogadoras têm «trabalhos diferentes» e que eles têm «melhores habilidades» que elas, incluindo «força e velocidade», acrescentando de caminho que os homens também têm mais responsabilidades, porque os seus jogos envolvem «maior pressão».

Os termos da defesa receberam uma chuva de críticas. O comissário da MLS, Don Garber, considerou-os «inaceitáveis e ofensivos» para as mulheres. Vários dos patrocinadores da Federação também se demarcaram, da Coca Cola à Visa, passando pela Deloitte ou pela Volkswagen, que publicou nas redes sociais uma mensagem bem clara.

O movimento dos patrocinadores dá a medida da dimensão do tema. A questão é particularmente sensível nos Estados Unidos, desde logo por causa da enorme diferença de sucesso das duas seleções A seleção feminina norte-americana tem resultados e dimensão nacional como nenhuma outra, reforçada com a conquista do Mundial no verão passado, num país onde o futebol é jogado quase na mesma medida por raparigas e rapazes. No feminino, os Estados Unidos são bicampeões do mundo e venceram quatro dos oito Mundiais já disputados, enquanto os homens atravessam uma fase particularmente crítica, tendo falhado a qualificação para o Mundial 2018.

A final do Mundial feminino de 2019 teve nos Estados Unidos uma audiência televisiva bem superior à da final do Mundial 2018, 14.3 contra 11.4 milhões de espectadores, as camisolas da seleção feminina bateram recordes de vendas, mais do que qualquer outra, masculina ou feminina. Um sucesso que alimenta o processo movido pelas jogadoras à Federação, onde elas exigem uma indemnização de 66 milhões de dólares.

Carlos Cordeiro, o dirigente de ascendência portuguesa que liderava a Federação e foi o rosto da instituição na batalha legal que decorre há um ano, ainda pediu desculpa pela argumentação apresentada, anunciando uma mudança na equipa de advogados que defende a US Soccer, mas não resistiu à polémica e acabou por se demitir. Foi substituído por Cindy Parlow Cone, ex-jogadora que era vice-presidente da Federação e foi uma das vozes que se insurgiu contra os termos em que foi feita a defesa do organism.

As diferenças de ganhos entre homens e mulheres

A mudança indicia uma nova fase no processo, que pode acabar num acordo extra-judicial. Já foi assim em 2016, quando um grupo então menor de jogadoras, mas que já incluía Megan Rapinoe, a capitã da seleção e melhor jogadora do mundo, mas também Alex Morgan, apresentou uma primeira queixa por discriminação contra a Federação.

As jogadoras assinaram em 2017 o acordo coletivo atualmente em vigor com a Federação, que é também a entidade responsável pela Liga feminina, onde jogam todas as internacionais. Mas consideram-no insuficiente e insistem que os homens têm direito a muito mais regalias do que elas. É difícil fazer uma comparação direta, porque a seleção masculina tem outro acordo com a Federação, em termos diferentes. No que diz respeito a receitas geradas também não é fácil encontrar dados concretos para uma comparação, uma vez que as contas da Federação não distinguem por seleção os valores de patrocínios ou outro tipo de ganhos.

Um dos argumentos da Federação tem sido que os homens apenas recebem compensação financeira pelos jogos em que participam, enquanto as mulheres, ao abrigo do acordo em vigor, já têm um rendimento fixo. Mas elas argumentam que mesmo assim estão aquém da igualdade, não apenas nos bónus por participação em jogos bem como em questões práticas como as condições de trabalho: os homens, dizem, utilizaram três vezes mais voos charter do que elas nos últimos anos.

Depois há a questão dos prémios pela presença em Mundiais. Enquanto a FIFA paga 400 milhões em prémios no Mundial masculino, o total para o Mundial feminino é de 30 milhões. A Federação argumenta que não é responsável por essa disparidade de base, a defesa das jogadoras questiona a forma como organismo distribui o dinheiro que tem à disposição. E a questão não passa apenas pelos jogos da fase final do Mundial, como mostrava um artigo do jornal Guardian, publicado a propósito do Mundial feminino no verão passado, que ilustrava a disparidade de valores ganhos por homens e mulheres.

A luta das mulheres tem o apoio do Sindicato de jogadores masculino, cujo contrato com a Federação expirou aliás em 2018. Num comunicado divulgado em fevereiro, os jogadores criticaram a federação, defendendo que o acordo em vigor para as mulheres é «discriminatório». «Na nossa estimativa, as mulheres deviam no mínimo triplicar aquilo que o nosso extinto acordo previa em compensação aos jogadores. A Federação devia ter feito um acordo diretamente associado a uma parte justa das receitas que as jogadoras geram.»

A mudança na direção federativa pode representar uma nova abordagem no processo, à partida com maio como prazo limite para evitar um julgamento. Ainda que haja maior incerteza temporal agora, numa altura em que a preocupação com o avanço do novo coronavirus domina toda a atualidade, esta é uma questão que vem de trás e dirá muito sobre o futuro.

Artigo originalmente publicado às 23:55 de 16-03-2020