O texto é longo, mas vale muito a pena.

Não é comum ver um jogador despedir-se assim de um clube. Pela forma escolhida, mas sobretudo pelo conteúdo.

Em carta publicada no «The Players' Tribune», Antonio Rudiger confirma a saída do Chelsea. Mas anuncia-o com um texto profundo, no qual fala dos amigos que fez em Londres, com especial destaque para o carismático N'Golo Kanté, mas também o irmão Kovacic.

Um texto que fala também de humilde, de pobreza e de pressão. Aquela que o central aprendeu a relativizar.

Agora o ciclo no Chelsea chega ao fim, e Rudiger faz uma viagem emotiva, que passa pelo Estádio do Dragão.

Vale muito a pena ler, na íntegra:

Não gosto de despedidas. Mas vou tentar que esta seja especial, do coração.

Na verdade, tenho de contar uma história antes de contar-vos uma história. É o meu lado africano. Precisamos do nosso tempo.

Quero falar da final da Liga dos Campeões. Mas para que percebam, tenho de contar rapidamente uma história sobre uma das melhores pessoas do futebol. Estou a falar, claro, de N’Golo Kanté.

Antes de assinar pelo Chelsea ouvi todas as histórias bonitas sobre ele. Diziam que ele estava sempre a sorrir. Diziam que ainda conduz um velho Mini Cooper. Diziam que nunca levanta a voz. Mas sabem como funciona no futebol, não sabem? Ninguém é mesmo assim. Há muita pressão, muita desilusão. Somos humanos. Ninguém é assim tão porreiro a toda a hora. É impossível.

Mas depois conheci N’Golo.

Quando falava para ele, N’Golo limitava-se a concordar com a cabeça, como se tudo o que eu dissesse fosse interessante. E depois fazia uma coisa, que não sei bem descrever… É preciso ouvir para compreender. Cada vez que falava ele fazia “click, click, click” com a boca.

«N’ Golo, queres comer?»

«Click, click»

«N’Golo, quando pressionas…»

«Click, click»

Eu pensava mesmo que havia algo de errado. Um dia perguntei-lhe: «Por que falas assim? O que se passa contigo, irmão?»

Ele sorriu: «É algo que vem do meu bairro.»

Na zona de Paris em que ele cresceu, fazem sempre aquele som. É como se fosse calão para “sim”. Não sei como começou, mas é o que fazem. É como dizer “Sim, sim. Ok, está certo”. Pensei como aquilo era engraçado, pois cresci no mesmo contexto, na Alemanha, e nunca tinha visto nada assim. Pensava que ele andava a brincar comigo!!!

Com N’Golo é tudo autêntico. Até o Mini Cooper. As pessoas riem-se, mas há uma história por detrás disso. Ele tinha o sonho de chegar à Premier League, vindo de onde veio, e o Mini foi o primeiro carro que comprou ao chegar a Inglaterra. Para ele não é apenas um carro, tem um significado profundo.

Claro que os rapazes brincam com ele, mas digo-vos: ele é tão educado que simplesmente diz-te aquilo que queres ouvir.

Alguém diz: «N’Golo, sabes que carro é mesmo bom? Um mercedes, mano. Vejo-te ao volante de um Mercedes.»

E o N’Golo olha de forma genuína e responde: «OK. Vou pensar sobre isso. É uma boa ideia. Obrigado.»

Mas ele está só a brincar contigo!!! No fim sabes que vais ver aquele Mini Cooper a chegar ao centro de treinos nos próximos dez anos.

Estou sempre a dizer às pessoas: há humildade, e depois há o NG.

Os troféus que conquistei aqui são agradáveis, claro. Mas o que fez do Chelsea um local especial foram as amizades. Fomos mais do que colegas de equipa. Alguns destes rapazes – NG, Kova, Ziyech ou Lukaku -, são como irmãos. Isso é muito raro no futebol, sinceramente. E se há um momento que resume tudo, para mim, seria a cena na casa de banho depois da conquista da Liga dos Campeões.

Foi, obviamente, uma época doida para mim. Detesto usar essa palavra, mas que outra posso usar? Menos de seis meses antes da final estava no chão, irmão. Tinha sido afastado da equipa e nem sabia porquê. Cheguei a ter uma reunião em que o treinador disse que o plantel tinha várias soluções e que preferia outros jogadores. Boom. Depois surgiram muitos rumores. Estava a ser vítima de abusos nas redes sociais. Foi o período mais difícil da minha carreira, mas fiquei em silêncio porque não queria levantar problemas ao clube.

Imagem se me tivessem dito, nessa altura, que depois seria titular na final da Liga dos Campeões.

Vá lá. Impossível.

Mas quando temos fome, nada é impossível. Aqueles que estavam esfomeados, que não tinham nada a perder, foram os mais perigosos. Quando Tuchel chegou e deu-me uma oportunidade, foi uma nova vida para mim. Na verdade, fez logo algo que devia servir de lição a muitos treinadores. E não teve nada a ver com táticas. Simplesmente chegou ao pé de mim e disse: “Toni, fala-me de ti”.

Queria saber de onde vinha a minha agressividade, a minha fome, e eu falei-lhe de como tinha sido crescer em Berlim, de como era jogar lá, e que os miúdos mais velhos chamavam-me “Rambo”.

Ele quis saber sobre mim, enquanto pessoa. Isso era enorme. Quando Tuchel me deu a oportunidade eu estava tão motivado que nunca voltaria ao banco. Estava mentalizado que ia dar 200 por cento por este clube, por este símbolo, apesar de tudo o que tinha sido dito sobre mim. Depois de tudo o que passei, a Liga dos Campeões foi a cereja no topo do bolo.

Quando defrontámos o Real Madrid nas meias-finais, fomos vistos como turistas. Toda a gente dizia que éramos muito jovens. Eles eram o Real Madrid. Mas jogámos como uma matilha de cães esfomeados. Especialmente na segunda mão, em Stamford Bridge. Jogámos como uma família, verdadeiramente. O resultado final foi 3-1, mas podia, facilmente, ter acabado 5-1. Os miúdos jogaram como homens no maior dos palcos. Especialmente o Mason. Que jogador. Mesmo. Mentalidade de elite. Às vezes pergunto-me se ele é mesmo assim tão jovem. A forma como se movimenta, não parece ter 23 anos. Contra o Real Madrid foi simplesmente fenomenal, e no fim sabem o que aconteceu…

Os turistas ficaram com o troféu.

Para mim, chegar à final da Liga dos Campeões, depois de tudo o que passei, a nível pessoal, e depois de tanto tempo a jogar sem adeptos, por causa da covid-19… Wow! Foi surreal.

Lembro-me da noite antes da final. Estávamos no hotel, no Porto, e eu, NG, Zouma e Ziyech fomos rezar após o jantar. Por norma, a seguir às orações, costumamos ficar sentados a conversar e a rir um bocado. Mas estávamos tão focados que ficou tudo em silêncio. Lembro-me que estávamos de fato de treino, que tinha a data da final no peito: 29 de maio de 2021.

Foi quando me caiu a ficha. Wow. Estamos aqui. Olhámos uns para os outros e dissemos que seríamos campeões. Dissemos boa noite uns aos outros e fomos para a cama.

Quando cheguei ao quarto, vi que tinha uma mensagem de um amigo no telemóvel. Era uma surpresa, uma mensagem de amigos e família. A desejar-me boa sorte. Fiquei imediatamente calmo. A pressão desapareceu toda. Foi uma forma perfeita de lembrar-me do que é verdadeiramente importante.

De onde eu venho, a pressão não tem nada a ver com futebol.

Pressão é não saberes o que vais comer amanhã.

Quer dizer… pressão??? Não, não, não.

Cada vez que sinto um pouco de pressão, ao apertar as chuteiras antes de um jogo, vou buscar uma memória específica e fico instantaneamente em paz.

A primeira vez que voltei à Serra Leoa, com os meus pais, depois da guerra civil, seguíamos de táxi para o aeroporto quando ficámos presos no trânsito. Estávamos ali, parados, e via pobreza e fome pela janela. Aqueles homens e mulheres vendiam frutas, água e roupas à beira da estrada, às pessoas que vinham do aeroporto.

Foi nesse momento que percebi o motivo pelo qual os meus pais nunca chamaram «ghetto» ao bairro de Berlim em que vivíamos.

Diriam que era o céu na terra. Só quando fui à Serra Leoa é que percebi finalmente a perspetiva deles, quando um homem chegou junto do carro a vender-nos pão e parecia verdadeiramente desesperado. Dissemos que não queríamos, que estávamos bem.

Depois apareceu outro homem a vender pão, e parecia ainda mais desesperado. Dizia-nos que era muito fresco.

«Não, não. Obrigado».

Depois apareceu um terceiro homem, mesmo empenhado. Dizia que tinha o melhor pão da cidade, e por favor, por favor, para comprarmos o pão.

Vou buscar esta memória quando começo a sentir pressão no futebol. Na verdade, aqueles três homens estavam a vender o mesmo pão, da mesma padaria, aos mesmos carros.

Uma das famílias teria um prato de comida na mesa. As outras duas talvez não tivessem.

Isto é pressão, isto é a vida real.

Por isso, para dizer a verdade, dormi como um bebé na véspera da final da Liga dos Campeões. E quando acordei senti-me invencível. Com a família a apoiar-me, com comida na mesa, eu não podia perder.

O jogo foi lindo, uma vez que ganhámos a uma incrível equipa do Manchester City, defendendo como um todo e surpreendendo em contra-ataque. Demos as nossas vidas, e no fim fomos campeões. Após o apito final estava a correr que nem um doido e Tuchel veio na minha direção e dei-lhe um enorme abraço. Foi um momento especial para mim, e serei sempre grato, pois deu-me a oportunidade quando fui dado como morto.

Quando voltámos ao balneário, os rapazes estavam a festejar com champanhe, mas alguns de nós, os muçulmanos, fomos para a casa de banho para um momento de paz. Eu, NG, Ziyech e Zouma olhámos uns para os outros, olhámos para as medalhas e abanámos as cabeças.

Nunca esqueceremos isso.

O NG tinha o maior sorriso na cara.

«Wow», disse ele. «Conseguimos mesmo».

Ele começou a rir como só ele sabe rir.

Quando o NG ri, só podes sentir alegria pura. Começámos todos a rir, como crianças. Aquele momento na casa de banho, para mim, é eterno.

Reparem, já passei por tudo na vida: pobreza, discriminação, abuso, e pessoas a duvidar de mim ou a usar-me como bode expiatório. De passar de excluído da equipa a vencedor da Liga dos Campeões em poucos meses? Como se escreve uma história assim? Tendo em conta de onde vim, tem ainda mais significado. Mas olhando para o balneário percebemos que alguns rapazes tinham vivências semelhantes. Muitos sabiam o que era ir para a cama com fome. Mas tornamo-nos “blues” e tornamo-nos campeões europeus.

Deixo o clube com o coração pesado. Significou tudo para mim. Mesmo esta época, com todas as complicações, deu gosto. O futebol é futebol. Somos abençoados por ganhar a vida com algo que faríamos de graça. Quando se falou de restrições financeiras começámos todos a rir com a possibilidade de viajar de autocarro ou ter de apanhar um avião mais pequeno para os jogos. Um avião pequeno?

Vá lá….

Sabem de onde vim? Um avião pequeno continua a ser um privilégio. Honestamente, a ideia de viajar de autocarro para Manchester parece-me bem. Eu e os rapazes teríamos conseguido com que fosse divertido, de certeza.

Infelizmente, a negociação da renovação de contrato começou a complicar-se no outono. Negócios são negócios, mas quando ficas sem novidades do clube de agosto a janeiro, a situação fica complicada. Após a primeira oferta seguiu-se um logo período de nada. Não somos robots, sabem? Não podes esperar tantos meses com esta incerteza para decidir o futuro. Claro que ninguém antecipava as sanções, mas, ao mesmo tempo, outros grandes clubes mostravam interesse, e tinha de tomar uma decisão. Vou deixar a questão assim, pois tirando a parte dos negócios, não tenho nada negativo para dizer deste clube.

O Chelsea estará sempre no meu coração. Londres será sempre a minha casa. Cheguei sozinho, e agora tenho uma esposa e duas crianças. Tenho também um novo irmão, o Kova. Tenho uma FA Cup, uma Liga Europa e uma medalha da Liga dos Campeões. E, claro, tenho centenas de memórias que ficarão comigo para sempre.

Mas, na verdade, quero deixar-vos com uma memória final que é agridoce. Por vezes as coisas que causam maior impacto não são todas boas, nem todas más. Para mim esta memória é simplesmente o Chelsea…

Aconteceu em 2019, depois de termos sido esmagados pelo Man City, por 6-0. Para ser sincero, eles deram cabo de nós. Foi embaraçoso. Após o apito final dirigi-me aos adeptos do Chelsea e levantei as mãos para pedir desculpa. Ao avançar, espero ser vaiado. Mas estavam de pé a aplaudir. Mesmo naquele momento difícil, estavam connosco.

Fiquei chocado.

Levantei as mãos, a pedir desculpa.

Ao aproximar-me, um adepto começou a insultar-me. Estava a uns cinco metros, a olhar-me nos olhos. Ouvi abusos quase toda a minha vida, mas ali foi diferente. Foi algo realmente pessoal. Gritei para ele: «Se quiseres falar bem cá abaixo e temos uma conversa.»

Claro que ele não avançou nem um passo. Parou. E foi marcante que os adeptos que estavam junto dele se tenham virado a recriminar: «O que estás a fazer? Ele veio aqui pedir desculpa. O que se passa contigo?»

Os adeptos, os verdadeiros adeptos, começaram a apoiar ainda mais.

«Rudi! Rudi! Rudi!»

Isto foi realmente poderoso. Levámos seis, mas aqueles adeptos ainda estavam a aplaudir-nos de pé, para desgosto daquele idiota.

«Vamos, Rudi! Vamos!».

Até o idiota começou a aplaudir. Os outros adeptos fizeram com que o idiota aplaudisse e pedisse desculpa. Nunca esquecei aquilo. Nunca.

Existe ódio no futebol, claro. É um facto. Já lidei com o pior. Mas também existe muita alegria. No Chelsea vivi os dois extremos.

Sim, ouvi os abusos, mas também senti o amor.

No final do dia a luz foi mais forte do que a escuridão.

Por isso, serei sempre Chelsea.

Obrigado,

Rudi