Está a acontecer. O governo inglês chegou a uma proposta de acordo, ela foi ratificada pelos líderes da União Europeia e falta agora a decisão do parlamento britânico. Se for aprovado, o Reino Unido separa-se da Europa comunitária a partir de 29 de março de 2019. Está a acontecer e ainda são muitas as dúvidas. Também no futebol, onde o Brexit terá inevitavelmente consequências. E elas já se sentem. No dia a dia, antes de mais, mas também em muito do que envolve o futebol inglês.

«É o tema mais falado do momento. Debate-se muito, tem-se falado muito, com todos os problemas com as negociações.» Quem o diz é Ivo Pinto, que joga no Norwich desde janeiro de 2016 e fala ao Maisfutebol sobre a forma como vive em Inglaterra um jogador que tinha até agora um estatuto que irá provavelmente mudar.

O defesa português está em Inglaterra há dois anos e meio, sempre no clube que lidera atualmente o Championship, e já viveu por dentro o referendo de junho desse ano, quando 51.89 por cento dos britânicos votaram «Leave». Sair.

O resultado foi um choque para muitos, recorda Ivo Pinto. Também no balneário do Norwich. «No dia do referendo foi um assunto de que se falou muito no clube, no balneário. A maioria das pessoas que votaram pela saída era de uma faixa etária mais alta. No clube acreditava-se que ia haver muitos «sim» à saída, mas não imaginavam que ia ser maioritário. Eles próprios não acreditavam que podia acontecer», conta.

Muitas dúvidas em português

De lá para cá sobraram muitas dúvidas e muita contestação. Ivo Pinto chegou a acreditar que a decisão se invertesse. «Até certa altura acreditei que pudesse haver um novo referendo», diz. «Agora acho que já não.» Mas está convencido que, se ele acontecesse, os ingleses voltariam atrás. «Acredito que se houvesse um novo referendo provavelmente o não à saída ganharia.»

Mas o acordo está aí, ainda que com muitas interrogações sobre a capacidade do Governo de Theresa May para conseguir que seja aprovado pelo parlamento, numa votação marcada para 11 de dezembro. Se não for, abre-se todo um clima de incerteza, com cenários que podem ir de uma saída sem acordo a novo referendo.

Ainda está muito em aberto mas o Brexit já começa a entrar no dia a dia de quem está em Inglaterra. Ivo Pinto dá um exemplo tão prático como este: «Eu tenho cães e já recebi um e-mail a dizer que ia ser diferente a entrada e saída de animais. Foi um e-mail de aviso prévio para a saída de animais, terá de haver um aviso prévio de quatro meses, temos de nos dirigir ao veterinário. Será a partir de 29 de março.»

A principal questão para quem vive e trabalha em Inglaterra é, claro, como ficará a sua situação depois do Brexit. O acordo prevê que os cidadãos comunitários mantenham direitos, mediante o pedido de um estatuto de residência, mas também aí ainda há muitas dúvidas. «Sinto muito essa preocupação quando encontramos algum português, há muitos a viver aqui em Norwich, na zona de Norfolk. As pessoas têm muitas dúvidas sobre o que vai acontecer, como vão ser as condições para os estrangeiros», conta Ivo Pinto, que diz não estar muito preocupado com a sua própria situação.

«O que ganhava antes do referendo não é o mesmo que ganho»

«Para ser sincero, ainda não tenho nenhuma preocupação especial. Já questionei algumas pessoas e o que me tem vindo a ser apresentado é que nada se vai alterar para nós. É claro que a saída e entrada do país vai ser diferente. Mas não estou muito preocupado. Eu já cá estava até antes do referendo. Mas mesmo quem chegou depois do referendo acredito que não irá ter muitos problemas», diz.

«O que pode mudar são as burocracias, as regras, entradas e saídas, o dinheiro, é mais por aí», acredita o português. Mas também sobre isso não tem ainda muita informação. Sobre a movimentação de dinheiro, por exemplo: «Para já nada se alterou. Já falei com o meu gestor de conta e no banco não têm ainda informações nem ideia de que algo se vá alterar.»

Dinheiro. O Brexit ainda não aconteceu e já há tendências relevantes por aí, pelo lado económico. Desde o referendo do Brexit a libra tem vindo a desvalorizar. E Ivo Pinto já o sentiu no bolso: «Uma coisa que já é um facto é que a moeda desvalorizou muito. Eu próprio, o que ganhava antes do referendo não é o mesmo que ganho hoje devido à queda da libra.»

O que leva à questão global. As preocupações com as consequências do Brexit para o futebol inglês, com os riscos de perda de capacidade financeira e consequente competitividade do campeonato, são reais. Os efeitos também já começaram a sentir-se, nomeadamente no facto de os clubes ingleses já terem de pagar mais para contratar jogadores. No verão passado Mauricio Pochettino, treinador do Tottenham, atribuiu ao Brexit parte da razão para as dificuldades do clube no mercado de transferências. O técnico argentino dizia que o clube investiu muito no novo estádio e gastou mais do que o previsto: «Com o Brexit foi pior, porque os custos subiram 30 por cento.»

«Isso pode influenciar para o futuro, com uma moeda mais fraca os clubes ingleses terem de pagar ainda mais para contratar jogadores», acredita Ivo Pinto.

O que o futebol inglês já perdeu e o que será dos estrangeiros

E há muito mais. Até agora os jogadores comunitários tinham um estatuto de exceção que os isentava de cumprir as exigências do futebol inglês para a contratação de estrangeiros. Perdendo esse estatuto, o panorama muda profundamente. Esse é o grande tema sobre a mesa. Do ponto de vista dos jogadores, antes de mais. É aliás um dos assuntos em debate esta semana em Roma no congresso da FIFpro, o sindicato internacional de futebolistas.

Também do ponto de vista do futebol inglês, se passar a ter acesso mais restrito e mais dificuldades nas contratações de jogadores de qualidade. A Premier League é nesta altura, entre os cinco grandes campeonatos, aquele que mais depende de estrangeiros. Uma análise recente do CIES, o Observatório do Futebol, constatava que apenas 35,3 por cento dos jogadores utilizados no campeonato são ingleses, contra 61 por cento em Espanha ou 48 por cento na Alemanha, por exemplo. O jornal «Guardian» apontou outro dado paradigmático: se não beneficiassem do estatuto de comunitários, 65 por cento dos atuais jogadores europeus da Premier League não teriam passado pelo crivo dos critérios de aprovação de estrangeiros da Federação inglesa, que obriga nomeadamente a determinado número de internacionalizações, consoante o país de origem.

A Federação inglesa está a trabalhar com os clubes numa abordagem à elegibilidade de estrangeiros no pós-Brexit e, de caminho, a procurar garantir maior quota de obrigatoriedade de recrutamento de jogadores ingleses, dentro da lógica dos que procuram ver na saída da União Europeia uma maior oportunidade de potenciar o talento britânico. Nesta altura os clubes da Premier League podem ter um número máximo de 17 jogadores não formados no país, a ideia seria reduzi-lo para 13. O que mudaria muito. Basta constatar que o líder Manchester City tem neste momento o número limite de jogadores estrangeiros no plantel, os tais 17. A proposta não foi vista com bons olhos pelos clubes e ainda não há acordo.

Mas haverá muito provavelmente uma solução de compromisso entre o futebol inglês e os jogadores estrangeiros.

É essa a opinião de Fernando Veiga Gomes, especialista em direito desportivo, que analisa para o Maisfutebol as possíveis consequências do Brexit para a Liga inglesa e para os jogadores europeus. «Sabemos que irá criar dificuldades para os jogadores europeus, embora ainda não se saiba exatamente o alcance completo do que vai acontecer», afirma, recorrendo a um exemplo para dar a medida do que poderia implicar uma saída sem acordo no futebol: «Em tempos o jornal As fez as contas aos espanhóis e concluiu que dos 32 a jogar na Premier League só seis reuniam condições para ficar depois do Brexit. São muitos jogadores de qualidade que não cumpririam os requisitos.»

«Se bem que acredito que os ingleses vão criar algum tipo de isenção, uma situação de exceção», prossegue: «Com o poder económico da Premier League, com a importância que tem, de certeza que vai encontrar medidas de exceção. Os ingleses são peritos nisso, em encontrar regimes de exceção.»

Como os jogadores menores podem fazer a diferença

Mas este especialista aponta outra questão que, acredita, não é tão facilmente contornável e pode ter grande impacto: «Importante para a Premier League, para não perder competitivamente em relação às outras quatro grandes Ligas, é a questão dos jogadores menores.»

«As transferências de menores são proibidas», enquadra Fernando Veiga Gomes. «Mas existe uma exceção para o espaço europeu, onde são permitidas entre os 16 e os 18 anos. Com o Brexit essa exceção deixa de vigorar e os clubes ingleses deixam de poder contratar jogadores jovens por atacado. O projeto de scouting deles fica afetado e irão perder por aí para os outros grandes clubes, que irão buscar os jovens talentos. Isto tem a ver com regras de direito europeu, de livre circulação. Não estou a ver que consigam uma exceção também para isto.»

O risco é também de acentuar desequilíbrios dentro do próprio futebol inglês. É esse o receio de alguns clubes, expresso por exemplo por Peter Coates, presidente do Stoke City. «Os grandes clubes podem ser menos afetados porque tendem a comprar no topo, jogadores consagrados e que cumprem os critérios», disse o dirigente à BBC.

Ivo Pinto é um exemplo de um jogador que beneficiou do estatuto de comunitário para chegar ao futebol inglês. «Eu quando vim não tinha nenhuma internacionalização A e não tive nenhum tipo de problemas», recorda. Pode ser diferente daqui para a frente, admite: «Saindo da União Europeia, podem vir a considerar todos os jogadores estrangeiros, como consideram atualmente os extra-comunitários.»

No Championship os critérios de proteção dos jogadores estrangeiros são menos restritos. E Ivo Pinto não acredita que mudem muito. Mas... «O nosso campeonato já obriga a ter sete jogadores de cá na convocatória. E um dos sete tem de ser formado na academia do clube.Com o Brexit não sei se passará a haver mais, mas não acredito que vá mudar muito», diz: «Mas nunca se sabe, também não acreditava que o Brexit fosse acontecer, já não ponho as mãos no fogo por nada.»

Está muita incerteza no ar. Ainda assim, o jogador português acredita que Inglaterra e o futebol inglês não vão mudar assim tanto depois do Brexit. «A nível social acho que não irá mudar muito. As pessoas em Inglaterra são muito simpáticas, a minha experiência tem sido mais do que agradável.»

Por ele, quer continuar por lá. Mesmo acabando contrato com o Norwich no final desta época, o jogador português olha para um futuro em Inglaterra: «No Norwich não acredito que vá ficar. Estou a ver opções, a partir de janeiro já posso negociar com outros clubes, já estou a estudar algumas possibilidades. Mas quero ficar. Gosto muito de viver cá. É um país muito bom, fantástico a nível de futebol.»