O Flamengo de Jorge Jesus começa nesta quarta-feira em Barranquila, na Colômbia, a defender o título da Taça Libertadores, depois de o Santos de Jesualdo Ferreira ter entrado em campo a vencer na Argentina, dando a volta frente ao estreante Defensa y Justicia. Está aí a Libertadores mais «portuguesa» de sempre, com Jesus a tentar uma segunda vitória seguida que só dois clubes brasileiros conseguiram até hoje. Depois das eliminatórias, a fase de grupos marca o arranque em força da maior competição de clubes sul-americana, que faz 60 anos e tem histórias sem fim para contar. Choques, surpresas, batalhas campais, heróis e vilões, grandes equipas e muita confusão. O Maisfutebol escolheu dez momentos para resumir essa história.

O reinado do Santos de Pelé

Foi em 1960 que arrancou a competição que juntaria os campeões continentais. Essa primeira edição teve sete equipas e ganhou o Peñarol, o primeiro de dois títulos seguidos dos uruguaios, onde jogava o avançado equatoriano Alberto Spencer, que marcou mais de 500 golos pelo Peñarol e é até hoje o melhor marcador da Libertadores, 57 golos no total. Depois seria a vez do Santos de Pelé, numa passagem de testemunho direta: conquistou a Libertadores em 1962 na final com o Peñarol, decidida ao fim de três jogos. No desempate, no Monumental de Buenos Aires, Pelé bisou no 3-0 que consagrou o Santos. Foi essa equipa mítica do Santos que venceu o Benfica na Intercontinental, com o histórico triunfo de 5-2 na Luz na segunda mão. E voltaria a ganhar no ano seguinte. Em 1963 conquistou a segunda Libertadores, na final com o Boca Juniors, no fim de uma campanha que teve uma meia-final histórica: Santos frente a Botafogo, Pelé contra Garrincha, um duelo repleto de campeões do mundo em campo que terminou com o «Peixe» a vencer no Maracanã por 4-0, depois de um empate a um golo na primeira mão na Vila Belmiro e quatro golos de Pelé no conjunto da eliminatória. O Santos venceu também nesse ano a Intercontinental, frente ao Milan. Veja as imagens da decisão de 1962, com o Peñarol.

Independiente, a primeira do Rey de Copas

Também teve direito a passagem de testemunho o início das conquistas do Independiente, até hoje o clube com mais títulos na Libertadores. E com muita polémica na primeira conquista, em 1964. Ainda na fase de grupos, o Alianza Lima teve de jogar todos os encontros caseiros em casa do adversário, na sequência da tragédia do Estádio Nacional, que resultou em mais de 300 mortes. O Independiente ainda venceu na secretaria o Millonarios, eliminado da prova por causa de uma disputa federativa. A meia-final com o Santos ficou marcada por suspeitas em relação à arbitragem, corroboradas décadas mais tarde com a revelação no Brasil de uma conversa em que Julio Grondona, o antigo todo-poderoso senhor do futebol argentino e à época líder do Independiente, admitia ter «intercedido» junto do árbitro. O facto é que o Independiente venceu o Santos de Pelé nos dois jogos e seguiria até ao triunfo na final com o Nacional de Montevideo. Voltou a vencer a Libertadores no ano seguinte, conquistaria quatro seguidas nos anos 70 e ganhou pela última vez em 1984, ano em que também venceu a Taça Intercontinental frente ao Liverpool. Cunhava aí o título de «Rey de Copas», mas não voltou a ganhar um troféu continental.

A má fama e o proveito do Estudiantes de Zubeldía

O cérebro por trás do período de domínio dos argentinos do Estudiantes, que venceu três títulos seguidos entre 1968 e 1970, é Osvaldo Zubeldía, um treinador tão visionário como polémico. Com ele o Estudiantes ganhou fama, e proveito, de não olhar a meios para atingir os fins, derrubando adversário atrás de adversário. «A única verdade é ganhar. ‘O importante é competir’ é uma frase feita para os otários e inventada pelos perdedores», dizia. Além das conquistas da Libertadores, ficaram famosas as batalhas na Intercontinental, primeiro na vitória sobre o Manchester United, em 1968, e no ano seguinte na derrota com o Milan, decidida na Bombonera num jogo que foi um massacre, acabou com pancadaria e detenções e com os jogadores italianos escondidos no balneário, sem cerimónia de entrega da Taça. Sabia mais aqui. Na final de 1970, numa edição em que pelo segundo ano seguido não participaram clubes brasileiros, em protesto contra o calendário, o Estudiantes venceu o Peñarol, com um único golo marcado nas duas mãos.

19 expulsões num jogo: a batalha da Bombonera

Foi o tempo em que o futebol sul-americano ganhou fama de violento, mas nada se compara ao que aconteceu na Bombonera a 17 de março de 1971. O jogo entre o Boca Juniors e o Sporting Cristal, para a fase de grupos, decorreu tenso e descambou quando o árbitro não assinalou um penálti reclamado pelos argentinos. Um crescendo inacreditável de violência, com uma batalha generalizada em campo que terminou com vários jogadores no hospital e… 19 expulsões. O árbitro uruguaio Alejandro Otero só poupou os dois guarda-redes e o defesa do Sporting Cristal Julio Meléndez, por achar que tinham sido os únicos a manter-se longe da confusão. Aparentemente, nem foi bem assim, porque Rúben Sanchez, o guarda-redes do Boca, também se meteu lá no meio. Acabaram todos a noite na esquadra da polícia e o Boca acabou por perder o jogo na secretaria.

America Cali, entre os cartéis e as finais perdidas

A guerra de cartéis e do narcotráfico na Colômbia, nos anos 80, entrou pelo futebol dentro e instrumentalizou os principais clubes do país. Foi o tempo em que o América de Cali chegou a três finais, antes de atingir uma quarta, em 1996. Não ganhou nenhuma, é o clube com mais finais perdidas. E foi também o tempo em que o Atlético Nacional conquistou uma Libertadores, em 1989. Mas o conflito e a guerrilha no país chegaram a um ponto em que, por motivos de segurança, os clubes colombianos foram obrigados a jogar a Libertadores longe de casa. Em 1991, alternaram entre a Venezuela e os Estados Unidos. Foi a primeira vez que a Libertadores saiu da América do Sul. América de Cali e Atlético Nacional defrontaram-se na fase de grupos e depois nos quartos de final, com o primeiro jogo em Miami e o segundo em San Cristobal, na Venezuela. As imagens do jogo da fase de grupos, com uma enorme falha de Higuita.

São Paulo, glória a dobrar

O único clube brasileiro a conseguir até hoje duas vitórias consecutivas, além do Santos de Pelé. O São Paulo começou por ganhar em 1992, numa equipa que tinha Telé Santana no banco e em campo craques como Cafu e Raí, o capitão. A primeira vitória chegou depois de uma final intensa com o Newell’s Old Boys, então de Marcelo Bielsa, 1-0 na Argentina e igual resultado no Morumbi, num golo de Raí. A decisão nos penáltis sorriu ao São Paulo, que havia de atingir o topo do mundo nesse ano, ao vencer a «Dream Team» do Barcelona de Johan Cruyff na Intercontinental. No ano seguinte o São Paulo voltou a levantar a Libertadores, vencendo o Universidad Católica, do Chile, numa final praticamente decidida na primeira mão, quando venceu por 5-1 em casa, para depois perder por 2-0 em Santiago mas acabar a festejar.

Boca, a dinastia do início do milénio

A primeira dinastia do século XXI foi do Boca Juniors. Liderado pelo maestro Juan Roman Riquelme, acompanhado por Guillermo Barros Schelotto, Martin Palermo ou, mais tarde Carlos Tevez, e orientado no banco por Carlos Bianchi, o Boca assumiu de vez o estatuto de potência continental, conquistando a Libertadores em 2000, 2001 e 2003. O reinado começou com um triunfo épico sobre o arquirrival River Plate nos quartos de final, em 2000. Depois de o River ter ganho a primeira mão por 2-1, o Boca venceu por 3-0 na Bombonera, com Riquelme magistral e um golo épico ao cair do pano de Palermo, que estava de volta depois de ter parado seis meses por lesão.

Maracanazos e outras surpresas

A Libertadores é tradicionalmente dominada por equipas da Argentina, Brasil e Uruguai, mas já teve vários vencedores inesperados. Como o Colo Colo em 1991, o primeiro clube a quebrar o velho enguiço das equipas de países a Oeste do continente, perpetuado numa velha provocação argentina aos rivais do Pacífico: «La Copa se mira y no se toca.» Ou ainda, em 2004, os colombianos do Once Caldas, que disputariam a Intercontinental com o FC Porto. E depois, em 2008, a LDU tornou-se a primeira equipa do Equador a vencer, numa edição em que o Maracanã gelou não uma, mas duas vezes. Primeiro, o Flamengo foi eliminado nos oitavos em casa pelo América – sim, houve várias edições com a participação de clubes mexicanos -, perdendo por 3-0 depois de ter ganho por 4-2 fora. O segundo Maracanazo foi menos épico, mas igualmente penoso para a equipa da casa. O Fluminense chegava à única final da sua história e, depois de ter perdido por 4-2 no Equador quase virou a decisão, chegando ao 3-1 em casa. Thiago Neves foi o autor do hat-trick mais inglório, porque não chegou. O jogo foi para penáltis e a festa, em pleno Maracanã, foi da Liga Deportiva Universitaria.

O Superclásico no Bernabéu

Há poucas rivalidades como esta e ela já tinha tido vários episódios marcantes na Libertadores. O último dos quais a enorme confusão no segundo jogo dos oitavos em 2015, suspenso ao intervalo depois de vários jogadores do River terem sido atingidos por um spray de gás pimenta a partir das bancadas. O Boca foi excluído da competição e o River já de Marcelo Gallardo conquistaria o troféu que lhe escapava há 20 anos. Depois chegou 2018 e os dois gigantes avançaram até à final. O grande jogo no maior palco, a expectativa era imensa. A primeira mão, na Bombonera, terminou com um empate a dois golos. Na segunda, o ataque ao autocarro do Boca na chegada ao Monumental de Nuñez desencadeou a sucessão de polémicas que desembocou na decisão de jogar a partida… em Espanha, a bizarria de um país colonizador da América do Sul a receber a Taça Libertadores da América. No Santiago Bernabéu, o River venceu por 3-1 e levantou o troféu pela quarta vez.

A incrível reviravolta do Flamengo de Jesus

Já vimos que nunca faltou emoção na Libertadores, mas mesmo com a fasquia alta, a final de 2019 entra direitinha para a história dos momentos mais épicos da competição. O Flamengo de Jorge Jesus, que tinha chegado a meio da época ao Brasil, chegava à segunda final da sua história, frente ao River Plate, o grande dominador do continente nos últimos anos. Foi a primeira final única de sempre e o River esteve muito perto de prolongar a hegemonia, fazendo valer a vantagem garantida no golo apontado aos 14 minutos. Faltavam dois minutos para os 90 quando tudo mudou, nos pés de Gabigol, que fez o 1-1 e depois, já nos descontos, bisou para a vitória. Uma loucura e festa a condizer na consagração do Flamengo, que ganhava o segundo título da sua história 38 anos depois de Zico e companhia terem levantado a Taça.