Três meses e meio foi quanto durou a passagem de João Tralhão pelo Mónaco. Apesar da experiência curta que abraçou a convite de Thierry Henry, diz que voltaria a fazer tudo de novo. «Era uma proposta irrecusável e tudo na vida tem uma lógica», esclarece.

Nesta parte de uma extensa entrevista ao Maisfutebol, o técnico de 38 anos fala do contexto duríssimo que encontrou numa equipa com jovens inexperientes, quase duas dezenas de jogadores lesionados, e mergulhada nos lugares de descida.

O futuro deverá continuar a passar por um projeto ao nível do futebol sénior e possivelmente integrado no staff técnico do antigo «matador» de equipas como o Arsenal e o Barcelona, de quem se tornou amigo no curso de treinadores UEFA Pro no País de Gales.

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Como é que surgiu a oportunidade de ser adjunto no Mónaco?

Isto já vem de trás. Eu queria continuar a formar-me como treinador e quis tirar o nível A. Em Portugal não abriu o curso e teve de ser fora. Perguntei ao Benfica se havia essa possibilidade, porque para treinar fora teria de haver essa disponibilidade de horário. Mas, felizmente, a federação que escolhi permitiu-me conciliar as duas coisas: treinar e ir lá, ao País de Gales, de mês a mês durante dois/três dias. Terminei o curso com sucesso e entretanto convidaram-me para tirar o curso UEFA Pro.

E foi aí que conheceu o Thierry Henry?

Sim. Ele estava na minha turma. Identificámo-nos logo pessoal e profissionalmente. Tornámo-nos bons amigos: ganhei mais um amigo para discutir futebol e para juntar àqueles que já tenho desde a infância. Todas as semanas falávamos sobre jogos. Quando ele tem esta oportunidade de ir para o Mónaco, perguntou-me se eu estaria interessado em trabalhar com ele.

Com Ljungberg, Henry e Tugberk Tanrivermis (ex-adjunto do Galatasaray e atualmente na Roma) durante o curso da UEFA no País de Gales

Ficou surpreendido?

De certa forma. Não por outro motivo qualquer, mas porque estamos a falar de um dos melhores jogadores de sempre e de um dos treinadores mais promissores. Surpreendeu-me uma pessoa tão importante no futebol ter escolhido logo o João Tralhão para tentar ir ajudá-lo.

O facto de estar no Benfica há tantos anos e ter no fundo uma posição consolidada no clube não o fez hesitar?

Não. Era uma proposta irrecusável. Pela pessoa que era e pelo desafio que nos apareceu pela frente. E acho que na vida tudo tem uma lógica. Sempre tentei dar um passo de cada vez e quando o convite surgiu tive o feeling de que esse era o próximo passo lógico a dar.

Qual foi o primeiro impacto que teve quando chegou ao Mónaco?

O Mónaco é um clube extraordinário, um clube de exceção e muito particular. Um grande clube que tinha sido treinado por um grande treinador português, mas onde, por um conjunto de motivos, as coisas não estavam a correr bem. Quando chegámos, tomámos a decisão de nos dedicarmos 24 horas para tirar o clube daquela situação. Encontrámos um clube com muitas dificuldades técnicas: 17 lesionados e tivemos de recorrer a jovens da segunda equipa – que nunca tinham jogado na primeira – para jogos de altíssimo nível como contra o PSG e na Liga dos Campeões. Eram jovens de qualidade mas que ainda não estavam preparados para aquela exigência, sobretudo numa altura em que a equipa precisava de resultados.

Reconhece que o contexto não foi o mais favorável para se pegar numa equipa? Já tinham consciência disso à partida?

Sim. Tínhamos consciência de que ia ser um grande desafio e um desafio muito difícil. Não íamos para uma equipa confortável. Mas também sabíamos que com o trabalho íamos colocar a equipa dentro dos seus objetivos. Tínhamos essa certeza. Tentámos reformular algumas coisas técnicas para inverter a situação desportiva e reforçar a equipa em janeiro, porque precisávamos de alguma mentalidade diferente. Mas o futebol é mesmo assim.

(…)

Não guardo mágoa nenhuma por isso. Guardo excelentes experiências e agradeço a oportunidade que nos proporcionaram num clube de exceção.

Chegaram ao Mónaco para substituir Leonardo Jardim num momento em que a equipa estava, se não estou em erro, no 18.º lugar.

No décimo nono.

O que vos foi pedido pela direção?

O que é pedido em qualquer clube que se vê mergulhado numa crise de resultados. Todos temos bem presentes casos como o do Atlético Madrid, que desceu de divisão, ou o do Chelsea, que teve problemas depois de ser campeão. Ou seja: grandes clubes que se veem nestas situações e para os quais é mais difícil sair dali do que propriamente para quem está habituado a lutar para não descer. Pediram-nos para tentar tirar a equipa daquela situação.

Era difícil fazer melhor naqueles três meses com todas as limitações que já enumerou?

Quem conhece o Thierry ou me conhece a mim, sabe que somos pessoas de processo. Olhamos para um processo e tem de haver pilares – uma ideia de jogo – que sustentem os resultados. Para isso é necessário tempo.

E entrar a meio de uma época não ajuda.

A meio de uma época, naquele contexto em que uma equipa está completamente desconfortável a nível de classificação, quando grande parte dos jogadores estão lesionados durante muito tempo e a equipa a jogar de três em três dias. No espaço de três meses e meio tivemos uma típica semana de jogo sábado/sábado. Quando não há tempo para treinar nem para introduzir novas ideias, as coisas são mais difíceis de alcançar. Tentámos de todas as formas, mas não era o nosso momento…

Acredito que algumas contratações de janeiro tivessem sido aprovadas pela equipa técnica da qual fazia parte…

Saímos a um dia ou dois do fecho do mercado e muitos nomes passaram pela nossa avaliação. Havia jogadores que já estavam connosco: o Fàbregas, o Naldo, o Fodé [Touré]…

Havia condições claras para dar a volta à situação com todo este acréscimo de qualidade?

O futebol vive dos jogadores e de uma orgânica entre eles, treinadores e direção. Sabíamos que se não tivéssemos os recursos para lutar com as mesmas armas dos nossos adversários, tínhamos mais dificuldades em vencê-los. Sabíamos que a equipa tinha de ter reforços e o melhor para o Mónaco era recuperar também os jogadores lesionados. O Rony Lopes, por exemplo, só regressou em meados de janeiro e depois de uma paragem de três meses.

Esperavam que a direção vos permitisse trabalhar com melhores recursos? Os jogadores que foram recuperando e os que chegaram?

Não vou opinar sobre questões de gestão, mas tínhamos uma ideia a longo-prazo. O futebol tem disto: tem de haver um equilíbrio entre as duas partes e entendeu-se na altura que este não eram as pessoas certas para o projeto.

Guarda um certo arrependimento por ter saído do Benfica para um projeto que durou menos tempo do que esperava?

De todo. Tomava a mesma decisão hoje em dia. Era um passo lógico. Esta experiência só me trouxe coisas boas. Obviamente que não é fácil sair do Benfica, mas era um passo que eu tinha de dar. Aprendi muito nestes meses em que estive no Mónaco. Conheci grandes jogadores, grandes pessoas, fiz boas amizades, aprendi uma nova língua e alarguei a minha visão sobre futebol.

Qual é o próximo passo a dar?

A paixão que quero seguir é o treino no futebol profissional. O desafio em que eu estiver tem de ter lógica para mim, tenho de sentir que estou ali com um propósito. Agora estou a aproveitar o tempo para refletir sobre as minhas práticas, para investir noutras áreas, na parte científica e para olhar para outros campos. E estou a ter tempo para tomar boas decisões no futuro.

Tem recebido convites? De clubes seniores?

Tenho tido algumas abordagens, sobretudo de seniores. Também estou com o Thierry, temos uma equipa de trabalho e a nossa expectativa é que possa aparecer um projeto.

A ideia é continuar a trabalhar com ele, portanto.

Todos os cenários estão abertos, mas sim, sem dúvida. Sou fiel à decisão que tomei há uns meses. A não ser que surja uma coisa muito diferente e que seja boa para todos, a minha ideia é continuar este trajeto.

E o futebol de formação é uma porta fechada?

Não fecho portas a nada. Foi uma porta lógica para mim numa determinada altura. Mas se me fez sentido estar neste momento no futebol profissional no Mónaco, um projeto de formação só faria sentido se fosse algo que me estimulasse ao nível do que me estimula o futebol profissional.

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