A semana passada, durante a habitual conversa de fim de jogo, um colega de equipa comentou que, comigo, não valia a pena cobrir o ângulo de remate, porque eu raramente rematava. Desconheço se o disse em tom de crítica, se apontava esta minha característica como uma limitação, afinal o propósito maior do futebol é suposto ser o golo, mas não fiquei melindrado, bem pelo contrário. Foi, porventura, o maior elogio que me fizeram.

É uma questão filosófica, mais do que técnica — até porque nem remato assim tão mal — que tenho vindo a aperfeiçoar nos últimos anos.

Sempre me irritou partilhar o campo com jogadores obcecados pelo golo, aqueles que só têm olhos para a baliza, mas nunca tanto como a partir do momento em que passei a jogar à frente, já lá vai mais de uma década. Muito do meu sucesso enquanto guarda-redes dependia precisamente deste tipo de jogadores. Um adversário que só tinha olhos para a baliza era o mesmo que só ter olhos para mim. Mal passavam do meio campo começava a gritar «remata, remata», engodo ao qual poucos conseguiam resistir, incapazes de perceber que, em futsal, um remate de longe só é golo se o guarda-redes não for guarda-redes. A cada defesa alimentava a minha confiança e a sua frustração e, sobretudo, a certeza de que, na jogada seguinte, tentariam resolver tudo sozinhos, abdicando cada vez mais da equipa e do passe — essa, sim, a mais bela e eficaz combinação para se chegar ao golo.

O mesmo raciocínio era válido para os meus colegas. Cada vez que se perdiam em fintas e remates sem nexo era uma oportunidade extra para salvá-los e demostrar o meu génio. Também eu era egoísta, apenas ainda não tinha consciência disso. Divertia-me, estava sempre em jogo, queria a bola só para mim, mas ninguém desconfiava, pelo menos nunca o verbalizou. A baliza é o único posto em que o egoísmo se dissolve no coletivo, uma performance individual em prol do outro cujo a função maior é salvar. E ninguém questiona quem nos salva.

Um jogo de futebol entre amigos é suposto ser isso mesmo, uma diversão mais do que uma competição, o problema é que, para isso, é preciso ter bola. E tenho tido pouca bola, ultimamente. Por isso me queixo. E não remato.

Quando um jogador tem um colega em melhor posição e mesmo assim opta pelo remate, quando decide enfrentar o mundo sozinho ignorando quem o rodeia, é como se o jogo deixasse de ser coletivo, um monólogo em vez de um diálogo, o campo transforma-se num palco e os colegas em público, figuras de corpo presente apenas para ver e aplaudir e não para jogar. Nesses casos, mesmo quando é golo, já não é o meu golo, o nosso golo — sou incapaz de celebrá-los, os meus colegas já terão reparado — não conseguindo também deixar de pensar que nenhuma daquelas bolas entraria caso estivesse na baliza. Nem precisava de ser eu, bastava um guarda-redes fixo.

Dias há em que me apetece parar o jogo, agarrar no telemóvel e mostrar-lhes um excerto do filme À Procura de Eric, de Ken Loach. Eric Bishop é um carteiro inglês (e adepto do Manchester United) a viver um período complexo. Os seus raros momentos de paz acontecem quando começa a ter conversas imaginárias com Éric Cantona. A determinada altura, pergunta-lhe qual foi o momento mais especial da carreira, enumerando de imediato alguns dos seus melhores golos. O ex-jogador francês vai dizendo que não, até confessar que o momento alto não foi um golo, mas sim um passe, «uma oferenda ao Grande Deus do Futebol».

— E se ele falhasse? — questiona Bishop, ainda incrédulo.

— Tens de confiar nos teus colegas de equipa. Sempre. Senão estamos perdidos.

Eu, que agora sou médio e tenho a mania que sou patrão, entro em campo sempre com estas palavras a ressoar. Mesmo que as minhas semelhanças com Cantona sejam um filme que apenas se desenrola na minha cabeça. 

«Jogador de fim-de-semana» é uma crónica literária de João Ferreira Oliveira, que escreve todas as segundas-feiras no Maisfutebol