Dizer palavrões é feio, já se sabe. Mas também «um exercício de libertação», como afirma Miguel Esteves Cardoso, no texto Gosto de Palavrões. Eu, que nasci no Norte, onde os palavrões são vírgulas, não poderia estar mais de acordo. Desde que utilizados com prudência.

Não por qualquer prurido ou puritanismo, nada disso, mas por uma questão de auto-preservação. Usa-se e abusa-se do palavrão e isso, a médio/longo prazo pode colocar em causa a sua própria existência. No mínimo, o seu estatuto. É natural que todos digamos palavrões, que tenhamos palavrões de trazer por casa, convém, contudo, que sejamos capazes de dignificá-los, elevá-los e sobretudo, racioná-los. Utilizá-los por tudo e por nada é vulgarizá-los, domesticar o ão que morde e liberta, deixar que se transformem em meras palavras. Há momentos na vida em que só um palavrão é capaz de condensar ou materializar toda a nossa dor ou excitação — entre os quais ter um filho, bater com o mindinho na borda da cama ou falhar um golo estão, obviamente, no topo da lista. Quando esse momento chegar convém que tenhamos um palavrão forte, hirto, fresco e viçoso e não um palavrão cabisbaixo, deprimido, cansado, gasto de tanto uso.

Da parte que me toca, tenho feito por isso. Semanas há em que passo os dias sem dizer um palavrão, a encher o saco para poder usá-los todos à quinta-feira, entre as 23h00 e as 00h00. Mal falho um passe ou um remate e é vê-los soltarem-se de imediato, primeiro baixinho, para mim, depois alto e bom som, uma espécie de ritual tão ou mais catártico do que marcar um golo. Aliás, não digo nem sinto nada quando faço um passe de morte ou marco um golo, e sou capaz de explodir num festim de caralhadas perante um erro ou um falhanço sem grandes consequências.

O campo é território fértil para a libertação, aquela hora em que se expiam e expelem muitos dos males acumulados. E, na maior parte dos casos, não há libertação sem palavras feias, por mais educados ou eloquentes que sejam os intervenientes. Muitos primeiros palavrões nasceram mesmo no terreno de jogo. Tal como os beijos de língua antes de serem beijos de língua passam por um treino intensivo de espelho, também os primeiros palavrões de muitas crianças são encenados em frente ao espelho e, posteriormente, materializados durante um jogo de futebol, conscientes de que o que acontece no campo fica no campo, uma bolha onde podemos ser quem verdadeiramente somos, mas em que (quase) nada daquilo que fazemos ou dizemos tem impacto na vida real.

Eu, que tenho péssima memória, não me lembro bem do primeiro palavrão que disse em campo, mas recordo-me perfeitamente da primeira vez que o fiz na presença de um adulto. Deveria ter uns oito ou nove anos. Tinha saído da escola e encontrei o meu tio B. Era o meu tio preferido, ex-jogador, ex-presidiário, alcoólico, toxicodependente, um poço de conhecimento e de contradições presos a um corpo com pouco mais de 1m60, verdadeiro íman para uma criança em busca de referências e personagens de filme, como ele à data me parecia. Sentei-me a seu lado e disse:

— Está um calor do car...!

Ele fingiu que não ouviu e eu repeti.

— Está um calor do car..., não está tio?

Continuou sem dizer nada durante alguns segundos, até que se levantou e perguntou-me se queria jogar à bola, ao que acedi com entusiasmo. Não foi propriamente um jogo ou uma brincadeira a dois. Ele ficou com a bola presa ao pé, às voltas, a dar toques, a provocar-me, sem que eu conseguisse tocar na xixa, até que desisti, a conter-me para não insultá-lo e a engolir uma série de impropérios que até perante o espelho era incapaz de proferir.

— Então, o gato mordeu-te a língua? — disse-me. — Agora, sim, podes ser homem à vontade.

Acatei a reprimenda sem qualquer rancor, embora só anos mais tarde compreendido a lição.

«Jogador de fim-de-semana» é uma crónica literária de João Ferreira Oliveira, que escreve todas as segundas-feiras no Maisfutebol. O autor opta pelo Acordo Ortográfico antigo.