Kaoru Mitoma saltou para a ribalta nos últimos seis meses e tornou-se figura no domingo, ao fazer um golo – um golaço, aliás – que afastou o Liverpool da Taça de Inglaterra. Pelo meio deu nas vistas no Mundial e tem brilhado na Liga Inglesa com a camisola do Brighton.

Ora a verdade é que nada disto seria demasiado surpreendente se Mitoma não tivesse por detrás uma história particularmente invulgar.

Natural de Kawasaki, na região de Kanagawa, no Japão, começou a dar os primeiros pontapés na bola na escola primária. Aos seis anos foi jogar para o pequeno Saginuma SC e aos nove anos mudou-se para o Kawasaki Frontale, o clube grande da cidade.

Curiosamente todos estes passos foram dados ao lado do também internacional japonês Ao Tanaka, um amigo inseparável e companheiro de todos os momentos.

Os dois frequentaram a mesma escola primária, começaram a jogar juntos em 2007 no Saginuma, mudaram-se ao mesmo tempo para o Kawasaki e estudaram mais tarde na mesma escola secundária. Só não partilharam a carteira porque Mitoma é um ano mais velho.

As semelhanças vão até ao ponto de ambos terem deixado mensagens muito semelhantes no anuário de finalistas da escola primária. «Quero jogar pelo Japão e ser o melhor jogador do mundo», escreveu Mitoma. «Quero representar meu país e jogar com meu amigo Mitoma», escreveu Ao Tanaka um ano depois.

O destino separou-os em 2021, quando Mitoma assinou pelo Brighton e Ao Tanaka se mudou para o Dusseldorf, mas o mesmo destinou voltou a juntá-los no Mundial do Qatar.

Recentemente, aliás, um canal de televisão celebrou a história dos dois amigos de infância ao levá-los à escola primária para um regresso às origens, durante o qual reencontraram professores e responderam às perguntas das crianças que olham para eles como um exemplo.

O melhor driblador dentro da área nas cinco grandes ligas... a seguir a Messi

Não é este trajeto em paralelo, no entanto, que torna a história de Kaoru Mitoma invulgar.

Quem olha para o futebol do japonês, não pode deixar de se encantar com a capacidade técnica. Sobretudo em espaços curtos. Rápido com e sem bola, muito forte a driblar, Mitoma é um daqueles extremos que vai para cima do lateral e arranja soluções onde elas escasseiam.

No último domingo, frente ao Liverpool, deixou a cabeça em água a Trent Alexander-Arnold: fez um total de dez dribles, cinco dos quais sobre o lateral direito adversário.

Foi aliás o jogador que mais driblou em todo o jogo, o que já não é uma novidade. Nas cinco grandes ligas europeias, só Lionel Messi tem mais dribles dentro da área contrária. Por isso foi decisivo em oito dos últimos onze jogos do Brighton (seis golos e duas assistências).

Ora o mais curioso é que esta vocação para a finta foi muito trabalhada na escola.

Tudo aconteceu quando Kaoru Mitoma tinha 17 anos e estava a acabar o ensino secundário. Nessa altura, Ken Mukojima (diretor geral do Kawasaki Frontale) e Akira Konno (treinador da equipa sub-18) marcaram uma reunião com o jogador e com os pais para lhes comunicar que tinha sido escolhido para assinar contrato profissional e fazer parte do plantel principal.

A resposta de Mitoma deixou-os surpreendidos.

«Quero continuar a estudar e evoluir nos quatro anos de futebol universitário», atirou.

O diretor geral diz que viu na cara do adolescente que a decisão estava tomada e não havia nada que pudesse fazer para lhe mudar as ideias. Mitoma queria ser profissional de futebol, afirmar-se na Liga Japonesa e dar o salto para o futebol europeu, mas queria fazer tudo isso através de passos seguros: optando por um caminho estável e seguro para o futuro.

«Quando olhava para jogadores como Koji Miyoshi e Kou Itakura, que já estavam na equipa principal, percebia que dificilmente conseguiria afirmar-me. Para ser honesto, não tinha confiança necessária para ser um jogador profissional com aquela idade. Por isso, e a pensar no meu futuro, achei que era melhor ir para a universidade», explicou mais tarde.

A tese sobre o processo de drible e como ultrapassar os adversários

Nessa altura já tinha decidido que queria frequentar o curso de Educação Física na Universidade de Tsukura, por onde passaram vários jogadores profissionais japoneses, incluindo até alguns da seleção. A universidade, de resto, já o tinha convidado a inscrever-se.

«Na primavera do terceiro ano do ensino secundário vi um jogo da Universidade de Tsukuba, que na altura estava na segunda divisão da Liga Universitária, e senti que eles davam grande atenção à técnica individual e à capacidade de passe. Fiquei logo interessado e perguntei ao meu treinador no Kawasaki Frontale se me deixava fazer lá um treino», adiantou.

«Ele deu-me autorização e eu fui. Pude então constantar, como já esperava, que a qualidade e o nível de treino eram muito elevados. Era uma fase em que estava preocupado com o meu futuro, até porque a carreira de jogador pode ser curta. Percebi que ir para a universidade era o melhor para o meu crescimento humano e pensei que aquele seria o sítio certo para isso.»

Por isso, e ao contrário do que faria qualquer jovem da idade dele - o amigo Ao Tanaka, por exemplo, assinou nessa altura com o clube -, Mitoma recusou assinar contrato profissional e integrar a equipa de um dos grandes do país para ir estudar para a faculdade. A pensar, precisamente, em voltar mais forte para jogar na Liga Japonesa.

Inscreveu-se no curso de Educação Física, estudou fisiologia do treino, nutrição, aprendeu a tratar do corpo para recuperar melhor e continuou a jogar no futebol universitário.

Ganhou a Taça do Imperador, foi chamado à seleção sub-20, disputou o Torneio de Toulon e os Jogos Olímpicos: só três universitários, aliás, chegaram à seleção olímpica.

«Claro que há sempre a dúvida se não estaria a atrasar a minha carreira, mas eu sabia que os responsáveis da federação assistem ao campeonato universitário e tinha a noção que se jogasse bem eu teria uma oportunidade nas seleções jovens.»

Mitoma, no entanto, fez mais do que estudar e jogar futebol. No último ano do curso, o jovem escreveu uma tese sobre a qualidade do drible.

Chamou-lhe ‘Um estudo sobre o processamento de informação do atacante em situações de um contra um no futebol’e partiu da análise de centenas de horas de filmagens que o próprio Mitoma fez. Para isso, treinava e pedia aos colegas para treinarem também com uma GoPro presa à testa. O resultado dessas gravações permitiu-lhe chegar a uma série de conclusões.

Percebeu, por exemplo, que o essencial não é a bola, mas o corpo: é preciso mexer o centro de gravidade do adversário para o conseguir desequilibrar e ultrapassar. Por isso, tenta olhar para a bola o menos possível, procurando perceber falhas na movimentação do defesa.

O regresso ao Kawasaki Frontale, que nunca deixou de seguir Mitoma na faculdade

Ao mesmo tempo, e com o auxílio de um professor que tinha corrido os cem metros barreiras, aumentou a velocidade linear. O que diz que foi essencial para o seu futebol.

«Sempre fui um jogador tecnicamente habilidoso quando era mais novo, mas não tinha a capacidade de utilizar a velocidade para progredir como faço agora. Acho que o curso foi essencial para perceber como usar bem essa velocidade. A força do meu drible duplicou.»

A verdade é que a tese teve um sucesso tão grande que ganhou um lugar de destaque na Universidade de Tsukura.

Mais importante do que isso, porém, permitiu a Mitoma tornar-se num dos dribladores mais entusiasmantes do futebol atual. Ele que já nasceu com o talento certo, mas soube desenvolvê-lo nas carteiras da faculdade, acrescentando-lhe um valor científico.

Atento à evolução do jogador, o Kawasaki Frontale voltou à carga no fim dos quatro anos da licenciatura e o impacto do jogador na Liga Japonesa foi brutal.

«Acompanhei a evolução dele durante os quatro anos, na perspetiva de que ele pudesse voltar para o Frontale. Na faculdade, as capacidades dele aumentaram muito e a qualidade da equipa melhorou drasticamente após isso. Ele cresceu muito como homem e como jogador, e eu sentia-o muito bem dentro dessa evolução», referiu o diretor geral Ken Mukojima.

Em época e meia no Kawasaki Frontale marcou 21 golos e garantiu a transferência para o Brighton, que começou por emprestar o jovem ao Union Saint-Gilloise. Na Bélgica foi fundamental para o vice-campeonato do pequeno clube e esta temporada regressou a Inglaterra, para se afirmar em definitivo.

Pelo caminho tornou-se titular e peça de destaque também na seleção do Japão que atingiu os oitavos de final do Mundial 2022, ele que fez o cruzamento com a bola em cima da linha de fundo, para o golo do amigo Ao Tanaka, na vitória decisiva sobre a Espanha.

No regresso a Inglaterra tem espalhado o pânico entre os defesas adversários e justificado um salto na carreira que não deve demorar muito mais. Pelo menos os elogios abundantes, que vão de Jurgen Klopp a Michael Owen, parecem assim o indicar.

E pensar que tudo começou nas aulas da faculdade...