Há um prazer inebriante na novidade. Um entusiasmo juvenil, uma felicidade delicada.

A novidade empolga, estimula, emociona. Chega a ser encantador como gestos tão simples se tornam especiais. Carregar no play diante de um filme novo, por exemplo. Descobrir um bom vinho que não se conhece. Correr para dar o primeiro mergulho naquele mar.

O início é sempre assim, inteiro e limpo, como escrevia Sophia de Mello Breyner.

Raramente nas histórias de amor o coração acelera tão descompassado como naqueles instantes imediatamente antes de se dar o primeiro beijo.

Será falta de ferro? Excesso de cafeína? Um pedido de pacemaker?

A verdade, meus caros, é que a novidade é viciante. Deliciosamente viciante, aliás. Uma fonte inesgotável de prazer.

Piqué descobriu-o há coisa de três anos, quando aproveitou a pandemia para criar aquele campeonato do mundo de balões de ar. Quem apostava que um torneio em que o objetivo era não deixar cair um balão pudesse ser um sucesso? Mas foi. Um tremendo sucesso, aliás. Milhares de pessoas inscreveram-se numa plataforma e seguiram os jogos ao vivo.

No final Piqué tinha ficado com uma base de dados de potenciais clientes e criado uma comunidade.

Ora essa espécie de experiência foi o tubo de ensaio para algo muito maior. A Kings League. O segredo é o mesmo, basicamente: criar um produto que atraia o público que se apaixona arrebatadoramente por novidades e entregá-lo através de canais de streaming. Com um extra, desta vez: o futebol.

Mas sejamos claros, o futebol é só um pretexto. Não acredito que alguém siga a Kings League por causa dos jogadores ou dos resultados. O que conta ali é o entretenimento, todo o espetáculo que é criado à volta do jogo e que tem nas figuras públicas que vestem o papel de presidentes os verdadeiros protagonistas.

Interessa perceber o que os jogadores dizem aos árbitros, e ver como reagem os presidentes. Interessa ouvir o que os treinadores gritam, e como reagem os presidentes. Interessa olhar a cara de um jogador que se lesionou, e ver como reagem os presidentes.

Interessa no fundo olhar tudo, ouvir tudo, entrar dentro de campo e no balneário, perceber as conversas e ver a reação dos reais protagonistas, que na tribuna torcem e sofrem com uma câmara apontada a eles.

A Kings League é no fundo o casamento perfeito entre futebol e o big brother. Ou melhor, o casamento perfeito entre futebol, big brother e e-games, porque as cartas que viram os jogos completamente do avesso a qualquer instante são parte importante da equação.

O resto é promoção e é o que Piqué sabe trabalhar melhor.

Basta lembrar, a esse propósito, o que fez quando rebentou o escândalo da Supertaça Espanhola na Arábia Saudita. O país inteiro queria ouvi-lo explicar-se. Ele podia convocar uma conferência de imprensa para uma sala de hotel, mas inteligente e perspicaz preferiu fazê-la através da conta pessoal da Twitch. Toda a gente podia acompanhar a conferência ao vivo, embora só os jornalistas pudessem fazer perguntas. Conclusão: cem mil pessoas ligaram-se ao canal dele.

Isto, sim, é promoção. Genial ou não?

Ora por isso, e sabendo que o triunfo da Kings League dependeria do sucesso da promoção, Piqué chamou para o jogo dez dos mais famosos streamers espanhóis. Que trouxeram com eles a respetiva comunidade que os acompanha.

Podia ter convidado antigos jogadores, por exemplo, mas não era a mesma coisa. Por isso do mundo do futebol só chamou Kun Aguero e Casillas, curiosamente duas estrelas com uma presença muito forte nas redes sociais. De resto, dos doze presidentes convidados, dez vinham do mundo do streaming.

A partir daqui foi só alimentar o que tinha criado. Todas as semanas havia uma notícia viral. Podiam ser os elogios de Ricardinho, a presença de Ronaldinho ou a chegada de um jogador fantasma que não podia revelar a identidade. A Kings League era sempre tema de convesa, estava sempre nas trends do momento.

Conclusão: a primeira edição da Kings League foi um sucesso e não faltou quem visse neste jogo o futuro do desporto.

Mas será que é mesmo uma ameaça ao futebol?

Honestamente, não acredito. Não acredito nem mesmo um bocadinho.

Antes de mais, porque a Kings League viveu do fator novidade e como ela pode ser inebriante, lá está. Foi buscar um público jovem, que gosta de fugir do mainstream, mas que mais tarde ou mais cedo vai partir com a mesma rapidez com que chegou. Provavelmente à procura de outra novidade inebriante.

Não acredito que seja uma ameaça também porque não alimenta paixões. Não faz sonhar as crianças. Nenhum miúdo vai para a rua ou para a escola fazer um jogo com os amigos de Kings League. Aquilo tem muito pouco a ver com futebol, aliás.

Na melhor das hipóteses, será uma ameaça à Netflix, mais do que ao futebol.

Mas há na Kings League uma série de coisas boas e que deviam ser aproveitadas pelo futebol. Por exemplo, aquela capacidade de chegar a uma larga comunidade que vive nas plataformas de streaming. Ou a possibilidade de nos fazer mergulhar dentro do jogo e não ficar apenas de fora a ver. A forma como consumimos futebol tem de evoluir e tem de nos conquistar outra vez. As novas gerações já não aceitam ser apenas espectadoras. É preciso levá-las para dentro do jogo, mostrar-lhes os pormenores, abrir-lhes as portas das grandes estrelas.

O jogo tem de ser mais inclusivo, mais moderno.

Como já o começam a ser outras modalidades, alias, que nos permitem ouvir os treinadores ou as explicações dos árbitros em tempo real.

Infelizmente o futebol é um velho do Restelo. Continua a servir-nos o jogo da mesma forma há décadas, com raras e sempre muito lentas evoluções. Enquanto isso há uma e outra geração que vive nas redes sociais e nas plataformas de streaming, que se está a afastar do futebol e a contagiar outros como elas.

Precisam de novidades que os empolguem, que os estimulem, que os emocionem. Uma coisa verdadeiramente encantadora.

A Kings League já mostrou que é possível.

«Box-to-box» é um espaço de opinião de Sérgio Pereira, editor-chefe do Maisfutebol