Lado B é uma rubrica que apresenta a história de jogadores de futebol desde a infância até ao profissionalismo, com especial foco em episódios de superação, de desafio de probabilidades. Descubra esses percursos árduos, com regularidade, no Maisfutebol:

Troy Deeney, atual capitão do Watford, escalou uma árdua montanha para se tornar num dos bons valores a atuar na Premier League de Inglaterra.

O avançado de 27 anos já marcou oito golos na prova e mantém o estatuto de imprescindível sob o comando técnico de Quique Flores.

A história da sua estadia na prisão, em 2012, é recordada com frequência pelos jornais ingleses. Troy chegou a dizer que estar preso foi a melhor coisa que lhe podia ter acontecido.

Porém, é necessário procurar a origem do problema. O que leva um jogador do Watford, então no Championship, a dar um pontapé na cabeça de outra pessoa durante uma luta noturna à porta de um bar?

Em busca de respostas, é preciso viajar até Chelmsley Wood, um bairro camarário nos arredores de Birmingham. Foi lá que Troy Deeney nasceu, em 1988. O pai biológico afastou-se - «Olho para ele como um simples dador de esperma», chegou a dizer o jogador – e a mãe desdobrava-se entre três empregos para sustentar os três filhos.

O pequeno Troy habituou-se a ter pessoas à porta do seu apartamento, numa das torres habitacionais do bairro, a reclamar dívida. Aliás, o jogador costuma recordar esses tempos quando lhe falam em pressão no terreno de jogo.

«Pressão no futebol? Pressão é tentar pagar as contas. Lembro-me de ter pessoas à porta de casa a reclamar pagamento de empréstimos. Isso sim, é pressão. Ainda tenho elementos da minha família nessa condição, porque não ganho suficientemente bem para tomar conta de todos.»

Troy Deeney não tinha apenas a mãe. Recorda com especial carinho o padrasto, embora este primasse por ausências prolongadas. Chamava-se Paul Anthony Burke, era uma figura popular no bairro e passava grande parte do seu tempo na prisão.

Os meses que Paul passava fora de casa eram justificados com pretensas viagens de trabalho, mas Troy e os irmãos aperceberam-me mais tarde que o padrasto levava uma vida de crime. Ainda assim, nada têm a lhe apontar.

O atual capitão do Watford cresceu assim no seio de uma família descaracterizada, em ambiente desfavorável para o sucesso, e foi expulso da escola, sem grande surpresa, aos 14 anos.

Troy Deeney ainda ensaiou um regresso aos estudos mas foi uma experiência relativamente curta. Desistiu aos 16 anos, sem completar o ensino secundário, dedicando-se a trabalhos na construção civil a troco de 150 euros por semana.

O futebol já fazia parte da vida do adolescente mas limitava-se ao Chelmsley Town, um clube amador da sua zona. Depois de falhar um período de testes no Aston Villa, Troy teve uma nova oportunidade quando o responsável das camadas jovens do Walsall viu um jogo seu.

Segundo os jornais ingleses, Troy Deeney já tinha bebido uns copos mas, ainda assim, marcou sete golos na vitória por 11-4. Estava nessa altura com 18 anos e ganhou o direito a novo teste. Teve de ser o treinador do Chelmsley Town a tirar o seu jogador da cama e a dar-lhe 20 libras para o táxi necessário para ir treinar ao Walsall. Felizmente, não desperdiçou a oportunidade.

«Quando estava no Chelmsley, ia trabalhar às seis e meia da manhã, voltava a casa lá para as 20 horas e depois ia treinar à noite. No Walsall, começava a treinar às 9h e acabava às 14h. Percebi que podia ganhar mais dinheiro com menos trabalho e pensei: deixa ver onde isto me pode levar.»

Troy Deeney chegou ao Walsall em 2006 e destacou-se no terreno de jogo. Não se conseguia livrar de alguns maus vícios - pagando as noitadas de vários ‘amigos’ - mas atraiu o interesse do Watford, que pagou mais de 600 mil euros pelo seu passe em 2010.

O avançado sentia que a evolução na carreira permitia maior conforto financeiro para a família mas viria a cometer um erro gravíssimo dois anos mais tarde, numa fase conturbada da sua vida pessoal.

Fevereiro de 2012. Troy acompanha Paul Anthony Burke ao hospital e o padrasto – que o jogador sempre encarou como um pai – descobre que tem um cancro no esófago em estado avançado.

Troy explodiu. A sofrer por dentro, decidiu sair na noite seguinte, em Birmingham, com o seu irmão e alguns amigos. Estava tenso, precisava de se distrair, mas a jornada terminou da pior forma.

Final da noite, corpos cansados e afetados pelo álcool, agitação no meio da rua. Inicia-se uma cena de pancada e alguém diz ao jogador que o irmão está a ser agredido.

«Pensei: ok, até chegar ao meu irmão, bato em toda a gente que encontrar pelo caminho.»

Um dos homens que se cruzou com Troy Deeney levou uma pancada, caiu no chão e agarrou uma perna do avançado. Este reagiu sem pensar, enraivecido, com um pontapé na cabeça do oponente. Um pontapé na cabeça!

«Não gosto muito de falar disso, podia ter originado algo muito pior. O tipo podia ter morrido, porque sou um rapaz corpulento. Não pensei nas minhas ações e quando a polícia me quis mostrar o vídeo no dia seguinte, nem consegui ver.»

Troy foi condenado a dez meses de prisão. Três dias antes da sessão final do julgamento, o padrasto perdeu a batalha com o cancro.

O Watford suspendeu o contrato com o jogador, cortou-lhe o salário e seria natural pensar que o futuro não traria nada de bom. Pelo contrário. Troy Deeney cumpriu apenas três meses da pena e saiu como um homem mudado.

«Podes pensar que o mundo está contra de ti ou olhar em frente e pensar que não queres voltar a embaraçar a tua família e os teus filhos. Se ainda tenho um lado negro? Claro. Todos têm. Mas aprendi a controlar isso, com a ajuda de um psiquiatra com quem falo regularmente, porque sinto essa necessidade. Ainda tenho demónios.»

O avançado cumpriu a pena encurtada por bom comportamento, abandonou a cadeia com uma pulseira eletrónica e foi surpreendido com a atitude de Gianfranco Zola. O treinador integrou-o no plantel, sem ressentimentos, e disse-lhe para trabalhar. Foi o que ele fez, cada vez mais.

Troy Deeney teve um papel decisivo na subida do Watford à Premier League e, aos 27 anos, deixa a sua marca na Premier League. Sem esquecer os seus demónios.