Foram exatamente 7664 dias que Sergei Bubka esperou, em vão, que algum atleta superasse o mais inacessível dos 35 recordes mundiais que fixou ao longo da carreira. 20 anos, 11 meses e 25 dias de uma espera que terminou, simbolicamente, na sua cidade. Donetsk já tinha sido o palco do maior salto com vara de todos os tempos, a 21 de fevereiro de 1993. Voltou a sê-lo neste sábado, graças a um francês de 27 anos, Renaud Lavillenie, autor de um salto perfeito a 6,16 metros, um centímetro mais do que Bubka tinha conseguido, 21 anos antes.

Mesmo sendo em pista coberta, uma variante menos consagrada das provas ao ar livre, esta era uma das marcas mais míticas do atletismo mundial, quase no mesmo plano de simbolismo do que os 8,90 metros conseguidos no comprimento por Bob Beamon, nos Jogos Olímpicos do México, em 1968.



Bubka, agora vicepresidente do Comité Olímpico Internacional, interrompeu a presença em Sochi, nos Jogos de Inverno, para assistir à prova. E estava no camarote de honra quando o francês passou à primeira, sem qualquer toque na fasquia. O ucraniano já antecipava qualquer coisa assim, até porque Lavillenie tinha saltado 6,08 metros, duas semanas antes. Por isso, antes da prova teve um tweet profético:

E, poucos minutos depois da queda do recorde, o cumprimento veio pelo mesmo meio:


O elogio, do ponto de vista do especialista, já tinha sido feito: «Quase não há desperdício nos seus saltos. Ele concentra-se, tem uma velocidade de arranque fenomenal, e um domínio técnico quase perfeito. Há quem diga que com 1,77 é demasiado baixo para passar regularmente os 6 metros, mas para mim isso nunca foi critério. O que conta é a forma como se transfere a energia da corrida para a vara, e nesse aspeto não tem rival», afirmava Bubka antes da prova. As fotos posteriores mostram-no, sorridente, a felicitar o francês, com o ar vagamente paternalista de quem sabe que não será a queda deste recorde a desalojá-lo da condição de melhor varista da História. O seu lugar está seguro, pelo menos para já.

De Leiria para o mundo


Foi em Leiria, há quase cinco anos, que o mundo do atletismo percebeu que poderia esperar algo de especial de Renaud Lavillenie. A 21 de junho de 2009, em pleno estádio Magalhães Pessoa, o varista francês, então com apenas 22 anos, superou a fasquia colocada a 6,01 metros, tornando-se o 10º melhor saltador de todos os tempos.



A proeza, conseguida durante os Campeonatos da Europa por equipas, permitiu ao atleta de Barbezieux-St. Hilaire - uma pequena povoação de 5 mil habitantes, perto de Bordéus - melhorar o seu máximo pessoal em cinco centímetros e apagar dos livros de recordes a marca do seu ídolo de infância, Jean Galfione.

Mas essa não é a única ligação portuguesa do homem que desalojou Sergey Bubka do patamar dos inacessíveis: entre 2008 e 2012, Lavillenie foi treinado por um lusodescendente, Damien Inocencio, que incluiu vários estágios em Portugal no seu menu de preparação. Os treinos na companhia dos especialistas portugueses foram uma constante, com Lagos e o Jamor como etapas habituais.

Numa entrevista ao site «Atleta Digital», dada no Estádio Nacional, em 2011, o francês adiantava mesmo que um dos prazeres desses ciclos de preparação era a possibilidade de explorar uma das suas paixões, o surf, nas ondas de Peniche. Na mesma entrevista, garantia também não ter o recorde do mundo como principal objetivo: «Prefiro os títulos ao recorde. O recorde é muito importante mas eu sei que a qualquer momento alguém pode batê-lo. Contudo, as medalhas ninguém me pode tirar, elas estão em minha casa. Julgo que é mais importante uma medalha de ouro», dizia. Nada nem ninguém conseguiu impedi-lo de conciliar as duas coisas.

Filho de um antigo saltador, que foi também o seu primeiro técnico, Renaud começou a carreira por volta dos nove anos, mas só a partir dos 15 começou a levar a sério a especialidade. Os genes saltadores correm na família, aliás: o irmão mais novo, Valentin, de 22 anos, é campeão francês no escalão de Esperanças.

Como júnior, o seu máximo de 4,70 metros, em 2005, não era particularmente impressionante: representava uma progressão de apenas 40 centímetros em relação aos seus primeiros registos em provas oficiais, dois anos antes. Foi já com a orientação de Inocencio, um dos mais reputados técnicos franceses, que os resultados do Lavillenie mais velho explodiram: em fevereiro de 2008, quando saltou 5,70 em Bercy, os 100 centímetros de progressão já não deixavam margem para dúvida: Inocencio tinha entre mãos um futuro campeão. 16 meses mais tarde, o salto de Leiria confirmou que o céu era o limite.

A separação inesperada


De então para cá, os títulos (14) e as medalhas (18) não pararam de acumular-se, formando um dos palmarés mais notáveis na história da especialidade. O ponto alto foi, claro, nos Jogos Olímpicos de Londres, onde conquistou a medalha de ouro, com um salto a 5,97 metros. Mas poucos dias depois, para surpresa geral, Lavillenie rompeu a ligação com Damien Inocencio, escolhendo Philippe d'Encausse como novo responsável para o ciclo de quatro anos que termina nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016.

Uma decisão bastante criticada nos meios do atletismo francês. Pela forma como foi comunicada para o exterior, ainda no rescaldo de Londres, deixou uma imagem fria e calculista colada à pele do atleta. Inocencio nunca aceitou bem a forma como tudo se processou, e foi especialmente crítico para com o ex-pupilo numa entrevista ao site Sport.fr: «Já tinha poucas ilusões acerca da natureza humana, agora tenho ainda menos. Durante quatro anos fiz tudo para que ele chegasse o mais longe possível e nunca fui pago para isso. E agora tive direito a um aperto de mão, e nem sequer um agradecimento», lamentou.

Ainda assim, o lusodescendente, que em janeiro assumiu o cargo de responsável máximo pela especialidade na China, não deixou de ter palavras lúcidas sobre o futuro de Lavillenie: «Os atletas são muito orgulhosos, e ele vai querer demonstrar que tinha razão quando mudou de treinador. Por isso, ele pode perfeitamente bater o recorde do mundo em breve. Mas, seja como for, já não será trabalho meu», concluiu.

Quanto a Lavillenie, a primeira reação foi de incredulidade: «Estou noutra dimensão, ainda preciso de tempo para descer das nuvens. É incrível, superar um recorde tão mítico, à primeira, e sem qualquer toque. Bubka é um dos melhores de sempre, e superar um máximo dele era inimaginável até há pouco», comentou depois da proeza, que sublinhou assim na sua conta no Twitter:



O novo recordista, que em Donetsk se transformou na figura de proa do desporto francês, prepara o futuro com três objetivos na mira: primeiro, melhorar o seu recorde ao ar livre (6,02 m), apontando a outra marca mítica de Bubka (6,14 m, em julho de 1994); depois, em 2015, conquistar o título mundial ao ar livre, que lhe escapou por três vezes, em 2009, 2011 e 2013. Finalmente, em 2016, tornar-se, depois do norte-americano Bob Richards, o segundo atleta da História a defender com êxito o título de campeão olímpico. Se o conseguir, talvez o sorriso de Bubka não seja tão rasgado como em Donetsk.