Estão aí os jogos das competições europeias a eliminar e as primeiras decisões, já nesta quinta-feira, para Benfica e Sporting na Liga Europa. Ganha quem marcar mais golos nos dois jogos ou, em caso de igualdade, quem marcar mais golos como visitante. É assim há mais de meio século, mas o princípio que definiu tantos e tantos jogos pode ter os dias contados. O fim da regra dos golos fora está na agenda, assumiu a UEFA, depois de a ideia ter sido defendida por alguns dos treinadores de topo da Europa no Fórum de Elite no arranque desta época. Há muitos argumentos a favor e contra a mudança da regra, mas poucos discordarão de que ela ajudou a escrever muitas páginas memoráveis da história do futebol europeu. E das equipas portuguesas na Europa. Antes que mude, o Maisfutebol foi ao baú e encontrou muitas delas, com Portugal no princípio de tudo e confusão com fartura pelo meio. O que teria sido destes jogos sem o golo fora?

A regra foi introduzida progressivamente nas competições europeias. Primeiro na Taça das Taças em 1965/66, depois na Taça das Feiras e depois na Taça dos Campeões Europeus, alargada definitivamente a toda a competição em 1970/71. O Benfica foi a primeira equipa a beneficiar dela na prova-rainha do futebol europeu. Em 1967/68, jogou a primeira eliminatória com o Glentoran e foi a Belfast empatar a um golo. Marcou Eusébio para as águias aos 86 minutos e chegou. Na segunda mão não houve golos e o Benfica fez valer aquele golo de Eusébio, no início da caminhada até à final dessa época, perdida para o Manchester United.

O dia em que o V. Setúbal eliminou o Liverpool com «peladinha a dois toques»

Houve mais portugueses no início desta história e um deles é Fernando Tomé. Ele esteve em campo numa das primeiras eliminatórias decididas graças a um golo fora a favor de um clube português. Em 1968/1969, o V. Setúbal de José Maria Pedroto jogava a Taça das Feiras, a competição que viria a dar origem à Taça UEFA, e, depois de eliminar o Rapid Bucareste, tinha na frente para a segunda eliminatória nada menos do que o Liverpool de Bill Shankly, uma potência em construção. Começou a decidir-se no Bonfim a 12 de novembro de 1968 e a primeira mão foi do V. Setúbal: 1-0, marcou Fernando Tomé.

«Lembro-me como se fosse hoje», recorda o antigo jogador, memória viva, ao Maisfutebol: «O Carlos Cardoso pegou na bola, passou o meio-campo adversário, não tinha a quem passar e chutou de longe. A bola bateu com estrondo na barra e eu na recarga, de primeira, fiz golo. O guarda-redes era o Lawrence, se bem me lembro. Na altura disse-se que a recarga tinha sido um penálti em movimento.»

«O Liverpool já era uma potência, já se falava muito nos clubes ingleses e na sua forma de jogar, temida por todos, um futebol um pouco de contenção e depois com muitos cruzamentos, com muito futebol aéreo», lembra Fernando Tomé.

A segunda mão seria daí por 15 dias em Anfield e Pedroto definiu assim a estratégia para fazer valer a vantagem: «Recordo-me que o que o senhor Pedroto nos disse na preleção para o jogo que não íamos defender, mas para jogarmos como se fosse uma peladinha a dois toques. A ideia era termos a bola, para eles não conseguirem aproveitar os flancos para cruzar.» Ter a bola, pois. «Sim, posse de bola. Era mais em progressão do que se faz agora.»

A receita resultou. Melhor do que a encomenda até, o Vitória chegou a estar a vencer por 2-0 em Anfield, primeiro num penálti de Canotilho e depois num auto-golo de Geoff Strong aos 56 minutos. Mas uma última meia hora intensa do Liverpool quase mudava tudo: Tommy Smith reduziu de penálti, Roy Evans igualou perto do final e Roger Hunt fez o 3-2 já nos descontos. «Estivemos a ganhar nos 90 minutos, mas o árbitro deu mais uns minutos e acabámos por perder 3-2.»

De nada adiantou ao Liverpool. Lá está, por causa dos golos fora. Na imprensa inglesa há relatos de que os próprios jogadores do Liverpool estavam confusos no final, sem saber se tinha acabado ali. Mas Fernando Tomé não recorda nenhuma perplexidade: «Não houve confusão, acabou normalmente, já sabíamos como eram as regras.» Bill Shankly, o treinador do Liverpool, resumia assim a eliminatória, numa citação que a «Four Four Two» recuperou recentemente: «Fomos eliminados por um penálti, por um auto-golo e pelas regras.»

O absurdo do Sporting-Rangers e dos penáltis que não serviram para nada

Tomé lembra-se do debate na altura e da principal razão para a mudança da regra: «Queria-se acabar com o terceiro jogo e com a moeda ao ar.»

A vantagem do golo fora rapidamente se tornou parte do jogo. Não sem alguns percalços, talvez o mais absurdo de todos de novo com Fernando Tomé a viver tudo por dentro. O médio trocou o V. Setúbal pelo Sporting em 1970 e estava em campo quando o leão foi eliminado pelo Glasgow Rangers nos oitavos de final da Taça das Taças de 1971/72, depois de… vencer nos penáltis.

É uma das grandes trapalhadas da história das competições europeias.  O Rangers tinha ganho por 3-2 em casa e em Alvalade o Sporting empatou a eliminatória, 3-2 nos 90 minutos. Jogou-se prolongamento e houve um golo para cada lado. E o árbitro mandou que se jogassem penáltis, apesar dos protestos dos jogadores do Rangers.

Damas foi herói, defendeu quatro penáltis. Mas a glória do guarda-redes durou pouco, tal como a euforia em Alvalade. Os penáltis não tinham servido para nada.

«As regras tinham mudado e o golo fora no prolongamento valia por dois. Num empate com golos no prolongamento era eliminada a equipa da casa. A lei tinha sido alterada uma semana antes», recorda Fernando Tomé: «Foi uma confusão, os jogadores do Glasgow Rangers marcavam os penáltis e riam-se. E no fim apareceu o delegado da UEFA a dizer que tinha passado o Rangers porque as regras tinham mudado.» Recorde aqui esta história.

O desempate por grandes penalidades era outra das novidades recentes por essa altura, instituída pela UEFA na época anterior, 1970/71. Tal como o golo fora, chegou para acabar com a necessidade de um terceiro jogo ou com o grande anticlímax que eram os jogos decididos por moeda ao ar. Sim, porque o golo fora resolvia muitos dos empates, mas não todos. Sobravam os casos de igualdade nos dois jogos.

Que o digam FC Porto, Académica ou Benfica. Todos eles foram vítimas dessa lotaria que era a moeda ao ar. O FC Porto em 1966/67, numa eliminatória da Taça das Feiras com o Bordéus, a Académica em 1968/69 frente ao Lyon, para a Taça UEFA; e o Benfica em 1969/70, frente ao Celtic.

Sporting, da Taça das Taças que podia ter sido diferente a Alkmaar

Ainda não havia nada disso em 1963/64, quando o Sporting ganhou a Taça das Taças. E a história podia ter sido bem diferente se já valesse a regra do golo fora. A primeira eliminatória dessa campanha e a meia-final com o Lyon ficaram empatadas nas duas mãos e foram decididas num terceiro jogo que os leões venceram. Mas tanto os italianos como os franceses marcaram golos fora de casa na eliminatória, ao contrário dos leões, pelo que teriam levado a melhor se já existisse a regra do golo fora. Claro que nada disto é linear, antes de mais porque as abordagens aos jogos mudam em função das regras.

Também aconteceu o inverso ao Sporting. Em 1965/66 foi eliminado pelo Espanhol da Taça das Feiras depois de ter vencido em casa por 2-1 e perdido em Sarriá por 4-3. Marcou mais golos fora, mas ainda não valia e no terceiro jogo o Espanhol levou a melhor.

Os «leões» já estiveram dos dois lados de eliminatórias decididas por golo fora de casa, mas a mais memorável é recente. Alkmaar, 2005. Jogava-se a meia-final da ainda Taça UEFA, o Sporting venceu por 2-1 em casa e na Holanda o jogo foi a prolongamento. O AZ marcou aos 109m, golo de Jaliens que lhe dava vantagem, até que em cima do apito final apareceu Miguel Garcia a cabecear para o 3-2. A eliminatória terminava 5-5, o Sporting marcou mais um fora de casa e estava na final. Havia de perder a decisão, em Alvalade, com o CSKA Moscovo.

FC Porto, do hat-trick inglório de Juary ao golo fora na caminhada para a Liga Europa

O FC Porto também tem memórias marcantes de jogos decididos com golo fora de casa. Uma delas tão épica como amarga. Foi em 1985/86, frente ao Barcelona, na segunda eliminatória da Taça dos Campeões Europeus. A primeira mão no Camp Nou terminou com vitória do Barça por 2-0 e na segunda mão, nas Antas, Juary saiu do banco a meia hora do fim para assinar um incrível hat-trick. Mas pelo meio Steve Archibald marcou para o Barça e foi esse golo que fez a diferença. O FC Porto vencia o Barcelona por 3-1, mas saía de cena. Para voltar na época seguinte e só terminar com a Taça dos Campeões Europeus nas mãos. Com Juary a apontar o golo da vitória sobre o Bayern Munique na final.

Na caminhada para a final da Taça das Taças de 1984, perdida para a Juventus, o FC Porto passou Dínamo Zagreb e Glasgow Rangers graças ao golo marcado fora. Na época seguinte, por outro lado, seria eliminado na mesma competição pelos galeses do Wrexham pelo mesmo princípio: perdeu 0-1 em Gales e de nada valeu o triunfo por 4-3 nas Antas. Por outro lado, a caminhada para o último triunfo europeu, a vitória na Liga Europa de 2010/11, também tem uma eliminatória decidida pelo golo marcado fora, graças ao triunfo por 2-1 em Sevilha na primeira mão dos 16 avos de final, antes da derrota por 1-0 no Dragão.

Benfica, de Vata e Leverkusen até Braga

É dessa temporada outra decisão por golo fora para a história: a meia-final portuguesa entre Sp. Braga e Benfica. O golo marcado na Luz na derrota por 2-1 fez a diferença para o Sp. Braga, que ganhou por 1-0 na segunda mão e assegurou a presença na final com o FC Porto.

O Benfica europeu tem de resto muitas histórias de eliminatórias decididas por golo fora, do lado perdedor e do lado vencedor. Duas delas para sempre na memória. Antes de mais, Vata. A meia-final da Taça dos Campeões Europeus de 1989/90, decidida na Luz depois da vitória do Marselha em casa por 2-1. Estádio cheio como um ovo, enorme expectativa e aos 82m Vata faz o 1-0 num lance confuso na área com um braço pelo meio – que ele nega até hoje. A eliminatória terminava empatada e na verdade o que fez a diferença foi o golo de Marselha, apontado por Lima.

Quatro anos mais tarde, Leverkusen. Um Benfica em tempos de crise chegava à Alemanha depois de um 1-1 sofrido na primeira mão dos quartos de final da Taça das Taças. E o que aconteceu foi um daqueles jogos que mandam toda a lógica às malvas, até Kulkov marcar aos 85 minutos o 4-4 final. O Benfica seguia em frente depois de uma das eliminatórias mais loucas de que há memória. Mas as regras quando nascem são para todos. E na meia-final, frente ao Parma, foi ao contrário. O primeiro jogo foi também na Luz e o Benfica venceu por 2-1, golos de Rui Costa e Isaías para o Benfica e de Zola para os italianos, o golo que faria a diferença. Na segunda mão ganhou o Parma por 1-0 e o Benfica ficou pelo caminho.

O golo fora vale até hoje, mas há muito que há quem o ponha em causa. Um dos primeiros foi Arséne Wenger, que já em 2013 considerava a regra ultrapassada. «O peso do golo fora é demasiado e já não se justifica», dizia o treinador francês, defendendo que a ideia original pretendia estimular as equipas a serem mais ofensivas longe de casa, mas que jogar fora já não tem assim tanto peso e a regra até se tornou contra-producente: «Já não há grande diferença. Às vezes acho que até há o efeito contrário, porque as equipas jogam em casa de forma a não sofrer golos.»

A ideia ganhou adeptos e isso ficou claro no último Fórum de Treinadores da UEFA. «Os treinadores acham que marcar golos fora já não é tão difícil como era no passado», explicou o secretário-geral do organismo, Giorgio Marchetti: «Acham que a regra devia ser revista e é o que faremos. Acham que o futebol mudou e marcar golos fora não tem o mesmo peso que tinha há muitos anos, quando a regra foi criada.»

Há quem não concorde. Fernando Tomé, voltamos a ele, não vê razão para mudar. «Acho que não deviam mexer. Obriga a que os clubes joguem para ganhar», defende o antigo jogador. «Há muita coisa que não devia mudar e já mudou e tornou o futebol menos natural», diz: «Acho o mesmo em relação ao VAR. Posso estar a falar com algum saudosismo, mas só trouxe mais ruído.»