Kharkiv é o destino do Benfica na viagem à Ucrânia para começar a definir o futuro na Liga Europa. Será a primeira equipa portuguesa a jogar na atual casa longe de casa do Shakhtar Donetsk, agora de Luís Castro, uma equipa há muito em constante itinerância. Que tem no confronto de quinta-feira o primeiro jogo depois de uma paragem de dois meses. Um desafio acrescido, diz quem já viveu o futebol ucraniano por dentro e olha com o Maisfutebol para o que espera o Benfica.

O Shakhtar não faz um jogo oficial desde 14 de dezembro, quando venceu o Zorya e conservou uma vantagem de 14 pontos na liderança do campeonato ucraniano. A equipa voltou ao trabalho a 20 de janeiro, para um estágio na Turquia, tendo regressado à sua base de treino, em Kiev, no início da semana passada. A preparação do regresso para um nível competitivo alto foi uma preocupação da equipa técnica, como já contou ao Maisfutebol José Boto, responsável pelo «scouting» do Shakhtar.

Ricardo Fernandes e Mário Sérgio jogaram no Metalurg Donetsk, vizinhos do gigante Shakhtar, antes do conflito que acabou por conduzir à extinção do seu antigo clube e transformou o Shakhtar numa equipa itinerante. Também eles, que estão ambos hoje no Felgueiras, Ricardo a dar os primeiros passos como dirigente e Mário Sérgio ainda em campo, viveram esses longos períodos de paragem no duro inverno ucraniano. É uma nova pré-época, preparada como tal, explicam.

O regresso depois da paragem que é «uma pré-época»

«Não é a mesma coisa ter esta paragem tão prolongada, praticamente é como se estivesse a iniciar a época agora. É natural que o Shakhtar tenha algumas dificuldades», começa por observar Ricardo Fernandes: «Mas também estamos a falar de um nível em que o trabalho é bem planeado, com certeza o Shakhtar saberá preparar esta fase da melhor forma», acrescenta o antigo médio, que entre 2007 e 2012 passou quatro temporadas no Metalurg, intercaladas.

Do ponto de vista dos jogadores, a paragem é benéfica, diz: «Quando há interrupção de competição há um plano de trabalho estabelecido pela equipa técnica. Mas o descanso é necessário também. No meu tempo, lembro-me que faziam muito bem essas duas pausas, de verão e de inverno. Os jogadores também precisam de descansar, ter um bocado de tempo para as famílias. Chegam bem mais frescos à competição. Grande parte do plantel do Shakhtar é constituído por jogadores estrangeiros, é importante.»

Mário Sérgio reforça a ideia. «O Benfica chega com todo o ritmo competitivo, é diferente ter uma paragem que é quase uma pré-época e voltar. Vão-se fazendo jogos particulares, mas o facto é que é uma paragem longa», afirma o lateral-direito, que esteve no Metalurg entre 2008 e 2012, para defender também que a capacidade de planeamento num clube como o Shaktar ajuda a limitar o impacto da paragem: «O Shakhtar, como joga as competições europeias, volta com jogos de grau de dificuldade maior, pode sentir um bocado a diferença. Mas não acho que seja por aí.»

O conflito que tudo mudou em 2014

Os dois viveram em Donetsk antes do conflito, que se estima tenha provocado já 13 mil mortes desde a ocupação da cidade em 2014 por separatistas russos. Haverá mais de um milhão de pessoas deslocadas e nada ficou como dantes, também no futebol. «Enquanto estive lá, tanto em Donetsk como em Kiev era tudo muito tranquilo. Saí ano e meio antes do que aconteceu. Depois do que se passou mudou tudo. Mantive amigos lá que contavam que não se podia sair à rua. Daí as equipas todas terem saído de lá. O centro de estágio do Metalurg foi ocupado», conta Mário Sérgio.

«Fui acompanhando porque tenho colegas que ainda lá estão, o Júnior Moraes ainda é do meu tempo, fui acompanhando também pelo Metalist», recorda por sua vez Ricardo Fernandes. «Não é fácil para o povo ucraniano. Mas muitas das pessoas de Donetsk também acabaram por se deslocar para Kiev. Os clubes mudaram as sedes para Kiev. Estamos a falar de um Shakhtar que tinha crescido imenso, que tinha uma dimensão muito grande e perdeu um bocado com esta situação. Continua a ser um colosso, mas é pena não poder estar em casa. Tinha um estádio magnífico. Completamente moderno, feito para o Euro 2012, ao nível dos melhores da Europa.»

«O Metalist acabou por fechar com esse problema», continua: «Mudou-se para Kiev, o dono tinha outro clube perto de Dnipro e acabou por deixar cair o Metalist. Houve vários clubes que tinham grande poder financeiro e se perderam. Foi uma pena, era um grande campeonato.» Um lamento repetido por Mário Sérgio: «A Ucrânia tinha boas equipas, com boas estruturas, mas muitas passaram mal. Na altura safaram-se duas ou três, o Shakhtar, o Dínamo, mas mesmo ou Dnipro, e o Metalurg, acabaram por ter muitos problemas devido à guerra. O campeonato ucraniano saiu muito prejudicado.»

O clube que faz 125 viagens por época e o estádio «sem pressão»

O «magnífico» estádio do Shakhtar, a Donbass Arena, chegou a ser bombardeado no meio do conflito, e há muito que deixou de receber a equipa. O clube, vencedor da última edição da Taça UEFA em 2008/09, mudou as operações para Kiev. O investimento do seu proprietário, o milionário Rinat Akhmetov, manteve-se, e o Shakhtar, depois de duas épocas em que viu o título ucraniano fugir para o rival Dínamo Kiev, recuperou o domínio interno e conquistou três títulos nacionais seguidos, sob o comando de Paulo Fonseca. Mas à custa de um enorme esforço logístico.

Depois do conflito a equipa jogou durante os primeiros anos em Lviv, no outro extremo da Ucrânia. Em 2017 mudou-se para Kharkiv, mais perto tanto de Donetsk como de Kiev, mas ainda assim a 400 quilómetros da capital. Entre as deslocações para jogar «em casa» e e os jogos fora, a equipa do Shakhtar faz 125 viagens por época, como já contou Paulo Fonseca. Mas ganhou em apoio dos adeptos, disse também o treinador português, lembrando como em Lviv o Shakhtar chegou a jogar perante apenas seis centenas de adeptos.

«Talvez possa ter mais adeptos a apoiar, agora que está mais perto», admite Mário Sérgio, acrescentando que o estádio de Kharkiv, onde jogará o Benfica, tem todas as condições, como a maioria dos principais recintos da Ucrânia: «O estádio é bom. São estádios recentes, foram feitos para o Euro 2012, são bons e com muita qualidade.»

Mas o ambiente, antecipa Ricardo Fernandes, não será propriamente intenso: «Seja qual for o estádio é sempre diferente do que estamos habituados. Pode ter muita gente, mas não é um ambiente quente como cá. Vivem aquilo de forma completamente diferente. Não acho que vá criar qualquer tipo de pressão.»

O Benfica defrontou o Shakhtar em 2007/08, na fase de grupos da Liga dos Campeões, e venceu na Ucrânia, 2-1 com bis de Cardozo. Na altura o jogo foi ainda no Estádio Olimpiyskyi, o recinto do Shakhtar antes da construção da Donbass Arena. Portanto, é território novo aquele que vai encontrar. Também em pleno inverno na Ucrânia, ainda que não se esperem temperaturas particularmente baixas.

O frio que se «esquece»

Não fará grande diferença, acredita Ricardo Fernandes. «Não acho que o frio seja um problema. Há muitos brasileiros e adaptam-se bem. Enquanto lá estive acabei por jogar só um jogo em que estava a nevar. À neve nem os jogadores do Shakhtar estão habituados», diz. Mário Sérgio diz que é um dado a ter em conta, mas também acha que não será problemático: «Quando o frio pega, é muito frio mesmo. Não é fácil, mas os jogadores habituam-se. Quando se entra em campo o frio não passa, mas esquece-se.»

Quanto ao jogo, ambos esperam uma partida de qualidade. «O Shakhtar mantém uma linha que já vem de trás, do tempo do Lucescu, com a aposta em jogadores brasileiros de qualidade. Gosta de jogar com qualidade, não é uma equipa forte fisicamente, dá sempre primazia à qualidade do processo e continua, com um treinador que conhecemos e também privilegia isso. À imagem do Benfica. Acho que vai ser um bom jogo.» Mário Sérgio reforça a estabilidade do Shakhtar, bem como a qualidade: «Do que vi do Shakhtar esta época, tem muito boa equipa, tem jogadores que ainda jogaram comigo, jogam muito bem. Agora o Benfica está numa fase em que não ganha há três jogos, mas isso às vezes não quer dizer muito e um jogo pode mudar tudo. Penso que vai ser equilibrado.»