Entramos no Estádio do Bessa quando o treino está a começar. O silêncio é apenas interrompido pelos pedidos do preparador físico. «Joelhos até cima, vamos, até doer». À sua frente, 25 jogadores perfeitamente alinhados. Nas bancadas aos quadradinhos, dois adeptos confessam, entre sorrisos: «Estamos aqui para matar o vício do futebol e para ver os craques».

Petit é um deles, embora agora noutra função. Tinha pendurado as botas depois de uma lesão grave contraída ao serviço do Colónia, mas foi buscá-las de novo para o Boavista. «Devido às minhas ligações ao clube, chamaram-me para estar à beira dos jogadores, só que o bichinho da lesão não me deixou jogar muito mais», recorda ao
Maisfutebol.

Começou como jogador-treinador, pensando em «estabilizar o clube» enquanto ia falando com os amigos que também foram voltando: «Sabíamos que tínhamos a luzinha ao fundo do túnel de voltar à primeira. Isso ia acontecer mais dia menos dia, mais ano menos ano».

O campeão nacional de 2000/01 foi despromovido à segunda liga em 2008 na sequência do processo Apito Final. Um ano depois, por problemas financeiros, desceu ao terceiro escalão. A longa batalha judicial estendeu-se até ao último dia 1 de abril, com a decisão final de reintegrar o Boavista na primeira divisão.

Jorge Couto, que tal como Petit foi campeão no Bessa, é agora diretor para o futebol e lembra ao Maisfutebol que nem tudo foi bonito até aqui. «O clube sempre funcionou, mas não foi fácil, depois de ter vivido aqui os momentos que vivi, deparar-me com uma realidade completamente diferente».

Maiores diferenças? «A falta de receitas no Campeonato Nacional de Seniores e os jogos com pouca assistência». Numa visão mais otimista, regressaram ao Bessa «clássicos» de outros tempos e até um dérbi especial da cidade do Porto, contra outra equipa em dificuldades.



«O que nos tem motivado é a paixão. Também está dentro de nós o sentimento dos adeptos, independentemente da liga que disputamos», sublinha Jorge Couto. Durante os seis anos em escalões inferiores, alguns adeptos afastaram-se. Mantiveram-se cerca de 5 mil sócios com quotas em dia, num universo de 20 mil que o Boavista espera alargar com o regresso à primeira linha do futebol português. «Agora estão a voltar, aos bocadinhos», diz-se na bancada. Petit acrescenta que a claque, os «Panteras Negras», que celebraram esta quarta-feira 30 anos, «esteve sempre lá».

No relvado, agora sintético, juntam-se os mais experientes com mais de uma dezena de jovens da formação. «Quase num ano, conseguimos voltar a dar nome ao Boavista. O clube tem agora mais responsabilidades e mais organização. O Boavista está pronto para voltar», assegura o treinador. 



Frechaut (o único dos campeões de 2001 que ainda joga), Ricardo Silva e Fary treinam com os rapazes e, às vezes, com respeito, são tratados por «você». Alfredo é o treinador dos guarda-redes. Também eles ajudam a «trazer de volta a velha mística do Boavista», nota Jorge Couto. «É muito importante para os miúdos que alguém lhes explique o que é jogar aqui. Estamos a assistir a uma passagem de testemunho».

A peladinha começa e assistimos a um duelo rasgadinho: Ricardo Silva é o central de uma das equipas e Fary o avançado da outra. O senegalês, à beira de tornar-se o mais velho da liga portuguesa, assume a integração dos pequenos: «Are you fine?», pergunta a Ryan Hirooka, um dos dois asiáticos que chegou ao Boavista esta época. Petit, atento e sereno, não precisa de dar muitas indicações, só se ouve Fary. «Vai», «em cima», «pressiona». «Se ele corre, tu corres para cima dele. Vocês são novos, f...!». Agora ninguém se ri, mas nem sempre o treino é assim tão sério.



Na altura de definir metas, ninguém é demasiado ambicioso. «Entrar na primeira com os pés bem assentes na terra e ganhar solidez. Mas é evidente que o objetivo é a manutenção, e com tranquilidade se for possível. Meio da tabela então seria ótimo. Aos poucos, queremos fazer com que o Boavista recupere, para chegar o mais rápido possível ao que era», explica Jorge Couto.

Petit está «consciente das dificuldades» e não quer «meter muita pressão» à sua equipa. «Os adeptos estão habituados a lutar pelo título ou pelas competições europeias, mas nós sabemos o que podemos fazer. Queremos fazer um campeonato tranquilo, que dê prazer aos adeptos para voltarem», sublinha o treinador.

Fica apenas a promessa de uma «equipa à imagem do Boavista», ainda que «sem orçamento para grandes jogadores». Espera-se ainda pelas negociações com a Federação, sobre uma eventual indemnização pelos seis anos afastados dos grandes palcos, e com a Benfica TV, para venda dos direitos televisivos dos jogos das próximas épocas onde podem estar incluídos empréstimos de jogadores. Para Petit, todos os que quiserem «lutar pela camisola» são bem-vindos. Já o apelo de Jorge Couto estende-se a todas as pessoas e empresas que queiram «ajudar» o Boavista a encontrar «uma equipa competitiva».

Primeiro através do acordo com os credores e depois com o IAPMEI e o Ministério da Economia, a direção do clube, presidido por João Loureiro, e da SAD, liderada por Álvaro Braga Júnior, conseguiu diminuir o passivo para cerca de 32 milhões de euros e acertar um pagamento faseado ao Fisco e à Segurança Social até 2026. O rigor das contas terá então de estar sempre presente.

Daí que o relvado do Bessa ainda seja uma incógnita. Passou a sintético para baixar os custos de manutenção, mas seria caso único na primeira liga. Jogando em casa, podia ser uma vantagem em relação aos adversários, mas nas saídas a questão colocar-se-ia ao contrário. As duas hipóteses estão em cima da mesa: mantê-lo e assegurar treinos em relvados naturais para facilitar a adaptação dos jogadores nas partidas fora ou mudá-lo para o original.



Por fora, vão estar eles a sofrer. Petit, campeão não só pelo Boavista mas também pelo Benfica, lembra «uma carreira bonita» que deixou para trás e, na brincadeira, garante que ainda é capaz de dar uns toques nos treinos, só que agora tem mais para fazer. «É mais tranquilo ser jogador, o treinador ainda vai para casa trabalhar depois», diz, sorrindo.

O desejo agora é chegar tão longe como treinador: «Estou a adorar, vou agarrar esta oportunidade com unhas e dentes. Este é o meu clube e estou preparado para enfrentar este desafio».

Também Jorge Couto assume «as saudades de jogar e de alcançar títulos», mas sabe que a perspetiva agora é outra. «Quero ver o clube ao mais alto nível, quero voltar a viver esses momentos, mas agora fora do campo», conclui o diretor.

O treino acaba e o Bessa volta ao silêncio. As bancadas aos quadradinhos ainda vão receber mais uma partida do Campeonato Nacional de Seniores (a não ser que o Boavista suba ao segundo lugar e aí terá mais uma eliminatória). Depois, o barulho, os adeptos e os craques estão de volta. Vem aí a primeira.