Nunca o nome de «Os Belenenses», assim, no plural, fez tanto sentido como esta época, uma vez que vamos ter, não uma, mas duas equipas com o nome da equipa do Restelo nas competições nacionais. Confuso? Vamos por partes. As tumultuosas relações entre o clube e a SAD do Belenenses, que se têm vindo a deteriorar desde há três anos, chegaram a um ponto de não retorno. Já não existem negociações pendentes, já não há qualquer conversa possível entre as duas partes. A equipa gerida pela SAD está a treinar no Estádio Nacional e é ali, no Jamor, sob o comando de Silas, que vai jogar, no papel de anfitrião, na temporada de 2018/19 com uma equipa que não é reconhecida pelo clube. O clube, por sua vez, já inscreveu uma equipa sénior na I Divisão dos Distritais de Lisboa e pretende recomeçar do zero com o objetivo de voltar à alta-roda num prazo de cinco anos. Dois projetos distintos que vão ainda fazer correr muita tinta nos próximos meses.

Da parte do clube, liderado por Patrick Morais de Carvalho, não há volta a dar, «é um ponto final». O corte de relações com a SAD é total e definitivo ao ponto do presidente não admitir sequer que a equipa que joga na Liga utilize o nome e os símbolos do clube. Da parte da SAD, a opção pelo Jamor é, à partida, apenas transitória. Rui Pedro Soares, o líder da sociedade, considera que a atual situação é «insustentável» e o regresso da equipa principal ao Restelo é incontornável, não sabe é dizer quando é que isso vai acontecer.

Falámos com os dois presidentes para fazer um ponto da situação. Duas conversas separadas por menos de cinco quilómetros de distância. Primeiro com Rui Pedro Soares, no Estádio Nacional, ao mesmo tempo que Silas orientava o treino da equipa que, na temporada passada, se classificou no 12º lugar da Liga. Logo a seguir, fomos ao Restelo, a casa do Belenenses, para ouvirmos também Patrick Morais de Carvalho que está a preparar a primeira época de um ano zero do clube. Dois Belenenses em construção, embora não se reconheçam um ao outro.

Novo Belenenses: refundação ou nado morto?

Já se sabia que a equipa principal, gerida pela SAD, ia jogar esta época no Estádio Nacional, no Jamor, a novidade é que o clube também vai contar com uma equipa sénior a jogar no Restelo. «Eu lidero apenas a vontade dos sócios, todos estes passos foram sempre dados em sede de Assembleia Geral, com aprovações sempre perto dos cem por cento dos sócios. Sou apenas um mandatário dos sócios para esta estratégia. Aquilo que os sócios querem e eu próprio quero é que não haja possibilidade nenhuma que aquela equipa que está a treinar em Oeiras se confunda com o Belenenses. Queremos refundar o clube, vamos ter uma equipa sénior que, vou dizer isto em primeira mão, foi inscrita ontem [quinta-feira] na I Divisão Distrital de Lisboa. Portanto, temos um caminho de cinco anos pela frente. O nosso objetivo passa por sermos campeões em todas as divisões. Vamos com honra e com dignidade, é essa a matriz do Belenenses», contou o presidente do clube em pleno relvado do Restelo.

Horas antes, no Estádio Nacional, Rui Pedro Soares tinha admitido, mas desvalorizado a possibilidade de existirem dois Belenenses em competição já esta época. «É possível, nos distritais é possível. Agora o que vai acontecer no futuro? A direção vai ter de explicar aos sócios quais são as consequências de apresentar essa equipa, nomeadamente não sei se alguma vez vai ser permitida a essa equipa jogar nas ligas profissionais. O normal não é isso. O clube fundador não pode criar uma SAD, a SAD cria uma equipa e o clube fundador cria uma nova equipa e pensar que vai chegar à I Liga. Caso contrário, olhávamos para a Liga daqui a sete ou oito anos e era uma repetição de seis ou sete clubes. Para mim essa equipa é um nado morto. Com certeza que os nossos adeptos à segunda-feira, durante a época, vão discutir os resultados que o Belenenses teve contra o V. Guimarães e o Sp. Braga, não vão discutir resultados dos distritais», comentou o líder da SAD.

Duas visões distintas, uma vez que para Patrick Morais de Carvalho existe apenas um Belenenses. «Pedimos paz, a massa associativa está cansada desta guerra permanente. Isto não interessa a ninguém, o que queríamos é que houvesse um acordo. Por outro lado, esta situação traz-nos um sentimento de alívio e permite-nos refundar o clube, é isso que estamos a fazer. O que os sócios têm votado sucessivamente nas Assembleias Gerais, com uma amostra muito significativa de sócios, é que não aceitavam o status quo que se vivia aqui no clube continuasse. Não era possível continuar a termos aqui uma sociedade privada com fins lucrativos a utilizar o nome do clube, as instalações do clube, sem nada pagar. Não podíamos continuar a financiar uma entidade privada e, ao mesmo tempo, sermos desrespeitados dentro da nossa casa», prosseguiu Patrick Morais de Carvalho.

Dois clubes com o mesmo nome e com os mesmos símbolos, embora o clube reclame o uso exclusivo do emblema da Cruz de Cristo. «Só há um Belenenses. Não tenho dúvidas nenhumas se hoje no sorteio da Liga estiver lá o emblema do Belenenses, a Liga vai ter de responder por isso. A Liga está avisada, sabe que não há protocolo, sabe que é uma marca registada, sabe que o emblema é do clube. Portanto, se hoje no sorteio da Liga estiver lá o símbolo do Belenenses, a Liga terá de responder por isso», acrescentou o presidente do clube.

Rui Pedro Soares tem uma visão diferente sobre os símbolos do clube. «Nós somos o Belenenses, utilizamos os símbolos do Belenenses e vamos continuar a usar porque temos muito orgulho neles. O clube fundador passou os direitos à SAD fundada em 1999, doze anos depois estava falida, foi aí que a adquirimos. Tudo vai manter-se como até aqui», garantiu, por sua vez, o líder da SAD.

«Não existe Belenenses fora do Restelo»

A verdade é que, a pouco mais de um ano de comemorar o seu centenário [23 de setembro de 1919], o Belenenses está mais dividido do que nunca. O conflito já tem anos, mas o divórcio materializou-se nos últimos meses, mais precisamente desde novembro de 2017, quando o Tribunal Arbitral validou a extinção do Acordo Parassocial que permitia ao clube a possibilidade de recompra de 51 por cento das ações da SAD. A partir daqui, o clube colocou obstáculos à renovação do protocolo que definia as relações entre as duas partes, nomeadamente, que permitia à SAD utilizar o relvado do Restelo e também utilizar os símbolos e a marca Belenenses, além de proibir o clube de inscrever uma equipa sénior. Este protocolo perdeu a validade a 1 de julho e não foi renovado.

«É um ponto final, não existe Belenenses fora do Restelo. A Codecity [empresa maioritária na SAD] decidiu cortar definitivamente com o clube, decidiu fugir do Restelo. O que assistimos é que a Codecity, desde que aqui entrou, em 2012, começou a fazer a gestão da SAD como se tratasse de uma SAD unipessoal, com total falta de respeito pelo clube fundador, pelos direitos especiais do fundador que são conferidos por lei. Quando nos vieram dizer, em novembro de 2017, que ficávamos apenas com 10 por cento da SAD e que deixámos de ter a possibilidade de comprar outros 51 por cento, era isso que estava em cima da mesa, é óbvio que as condições que dávamos àquela sociedade não podiam ser as mesmas. Tentámos por todas as vias, até com comissões de adeptos, mas a SAD optou olimpicamente por fazer faltas de comparência sucessivas e por nunca se sentar à mesa para conseguir um acordo com o clube. Tentámos de todas as formas e fomos surpreendidos no final de junho com a fuga da equipa para o Jamor. No fundo o que a Codecity veio fazer era o que já fazia na prática. Havia aqui uma paz podre no Restelo, havia aqui um ar que era irrespirável e que fazia mal a toda a massa associativa, confundia os sócios. Fugiram com a equipa e cortaram definitivamente com o clube», insistiu Patrick Morais Carvalho.

«Clube abriu caminho para o despejo da equipa de futebol»

Mas para Rui Pedro Soares, o Belenenses que treina no Jamor continua a ser o mesmo. «A partir do momento em que adquirimos a maioria da SAD, deixámos de ter campo de treinos, passámos a ter de treinar fora. O Jamor é a nossa casa para treinar há cinco anos. As grandes diferenças vão ser quando começar a época e não para já. O processo é público. Houve uma execução, sem falhas, da parte da direção do clube, desde 2015, para que o desfecho fosse este. O clube fundador, do qual muito nos orgulhamos, prosseguiu um caminho, através da sua direção, de separação e despejo da equipa de futebol», esgrimiu.

Para Rui Pedro Soares, o regresso ao Restelo é apenas uma questão de tempo. «É inevitável. É a nossa casa. Qualquer equipa do mundo não fica contente por não poder jogar na sua casa. O ano passado fizemos 26 pontos no Restelo e 11 fora do Restelo. Além de toda a tristeza, para nós e para a massa associativa, há um prejuízo desportivo absolutamente evidente. A nossa reação é igual à de qualquer pessoa que, às tantas, se visse privada de utilizar a sua casa», contou. No entanto, pelo menos esta época, a equipa da SAD vai mesmo ter de jogar todos os jogos no Estádio Nacional. «Esta época é impossível voltarmos. Tivemos de indicar o estádio onde íamos jogar até 30 de junho e já indicámos o Estádio Nacional», contou.

«Vamos ao inferno, mas vamos voltar»

Quem vai jogar no Restelo será a nova equipa sénior do clube que já está inscrita nos Distritais de Lisboa. «Com certeza. O Belenenses vai jogar no Estádio do Restelo, é esta a sua casa desde sempre. Não há Belenenses fora do Restelo, pode haver outra coisa qualquer, mas Belenenses não há. Não vai haver dois Belenenses, isso é impossível», insistiu Patrick Morais Carvalho que fala num ano zero para o clube, recordando outro episódio marcante na história do Belenenses. «Há 50 anos o Estado português roubou ao Belenenses as Salésias, que era o melhor estádio de Portugal. Na altura, em Portugal toda a gente pensou, o Belenenses acabou. Sabe qual foi a resposta dos sócios? Aqui onde estamos, em cima de uma pedreira, construímos o estádio mais bonito de Portugal. Agora vamos fazer o mesmo, os sócios do Belenenses vão dar essa resposta. Vamos ao inferno, vamos estar fora durante quatro ou cinco anos, mas vamos voltar», assegurou.

Se Patrick Morais Carvalho diz ter os sócios do seu lado, Rui Pedro Soares também espera poder contar com o apoio dos adeptos no arranque da época. «Estão ali uns adeptos [a ver o treino] que têm mais de 50 anos de sócios. Temos vindo a ter uma procura dos nossos lugares anuais acima do que estávamos à espera. Há muita tristeza, mas também se está a gerar o sentimento de que os adeptos não vão abandonar a equipa. A equipa vai continuar a representar o Belenenses e a defender o nome do Belenenses onde esse nome foi feito e criado, que foi a jogar contra os maiores de Portugal. Vamos ter aqui uma época inesperada a jogar fora de nossa casa. Vai ser uma época que vai exigir de todos mais esforços e estou convencido de que os adeptos também vão estar empenhados e com mais esforço para apoiar esta equipa porque ela merece», defendeu.

O máximo representante da SAD está convencido, aliás, que a equipa da SAD vai acabar por voltar ao Restelo. «O clube e a SAD têm uma ligação umbilical. Não sei quanto tempo isto vai durar, mas tenho a certeza que a equipa vai voltar ao Restelo. Vai haver um momento em que, da parte do clube, vão ser criadas as condições para receber a sua equipa no Restelo. Como vai ser o processo até lá? Não sei dizer, mas não me surpreendia se fosse em breve», destacou.

Enquanto esse dia não chega, Rui Pedro Soares vai gerindo plantel, procurando, entre compras a custo zero e vendas, assegurar um saldo positivo que permita pagar o «aluguer» do Estádio Nacional. «Em 2015, depois do Belenenses ter estabilizado, subido de divisão e de ter jogado na Liga Europa, o doutor Patrick Morais considerou que o clube já estava em condições de receber a equipa. Achou que não estava em 2012, mas em 2015 já estaria. Com o tempo a vontade do doutor Patrick Morais em gerir esta equipa vai ser cada vez maior porque a equipa vai estar cada vez melhor, mas nunca o vai fazer», atirou ainda Rui Pedro Soares.

Mas para Patrick Morais de Carvalho o corte com a SAD é definitivo. «Não precisamos de investidores. Com os contratos com as televisões que há hoje em dia, não são precisos investidores. Neste momento, não há mecenas em Portugal, os mecenas são os contratos televisivos. Neste momento, com os contratos televisivos, todas as SAD são viáveis. Vamos estar fora quatro ou cinco anos e digo ainda bem, porque nesta altura o futebol português está irrespirável. Queremos acreditar que quando voltarmos já se vai respirar de outra forma no futebol português», referiu ainda o presidente.

A verdade é que vamos ter dois Belenenses em campo na próxima temporada, um na Liga, outro nos Distritais. Um que vai jogar no Jamor, outro que vai jogar no Restelo. Qual é que vai ver?