Rui Miguel Tovar está no Maisfutebol com a rubrica LOAD " " ENTER. Para ler todas as semanas e saborear conversas por vezes improváveis com as principais figuras do futebol. Já sabe, basta escrever LOAD " " ENTER para entrar neste mundo maravilhoso de Rui Miguel Tovar. 

Eis o primeiro português a jogar um Liverpool-Tottenham, a grande final da Liga dos Campeões deste sábado

A ideia do Load “ “ Enter é começar em grande. Baahhhh, nem tanto. Só uns 165 centímetros de altura. Dominguez, o único craque dos iniciados do Benfica com direito a reportagem da RTP. Dominguez, o primeiro português a jogar em Inglaterra. Ainda e sempre Dominguez, o primeiro português a jogar um Liverpool-Tottenham, a final da Liga dos Campeões deste sábado. Encontramo-lo no Amuras Bar, cujo proprietário é Pacheco, ex-Benfica e ex-Sporting, como o próprio Dominguez. Apre, sempre ele, está em todas. No meio de tantos turistas ruidosos, Dominguez consegue ser o mais bem-disposto da marina de Lagos, o do sorriso mais xxl. Em grande, portanto.

Joga-se a final da Liga dos Campeões no sábado e tu foste o primeiro num Liverpool-Tottenham. Remember?

Como não? Isso foi em 1997, perdemos 4-0. Como jogou o Ginola, um gajo finíssimo, tanto dentro do campo como fora e com quem me dou altamente, eu fui mais banco, ahahahah. Entrei a meio da segunda parte. A nossa equipa era boa, atenção. Na baliza, Ian Walker. A central, Sol Campbell. No meio, Darren Anderton, da selecção inglesa, Steffen Iversen, David Ginola, John Scales. Mas eles, do Liverpool, vai lá vai: McManaman, Redknapp, Ince, Fowler, Riedle, Owen, Patrick Berger. O treinador era o Roy Evans, que, na altura em que eu ia assinar pelo Tottenham, tinha-me pedido para esperar um pouco. Havia interesse do Liverpool. E essa nem foi a primeira vez.

Então?

Quando estava no Birmingham, em 1994, eles andavam em cima de mim. Gostavam da maneira como tocava no berlinde, ahahahahah. Só tinha 20 anos e gostava de partir aquilo tudo.

Dribles e essas coisas todas?

Tudo a que tinha direito. Adorava correr e fintar. E isso em Inglaterra é do best, pela força maciça dos adeptos e pela construção dos campos de futebol.

Como assim?

Em Inglaterra, há campos de futebol. No resto do mundo, há estádios. Já joguei em palcos históricos, como o Jamor na final da Taça de Portugal. Até joguei a final da Taça de Portugal 1996, a do very-light, e aquilo estava a abarrotar. Só que não se sente a força humana como num campo de futebol em Inglaterra, com as bancadas mesmo próximas ao relvado. Quando nos decidimos por um arranque, a malta faz um bruá tão grande que nos motiva como nunca. Havia situações em que a bola vinha para mim, a malta animava e eu dava só um toque para libertar-me da marcação ou simplesmente acelerar o jogo num contra-ataque. Acto contínuo, a malta fazia ooooooh. Como quem diz, ‘então pá, não corres nem fazes truques com a bola?’

És assim desde quando?

16 Fevereiro 1974.

Ahahahahahah.

Nasci assim. Sou do Bairro Alto, Largo do Carmo. Joguei sempre na rua, com os meus amigos. As balizas eram o vão das escadas. Se a falhássemos, ia parar ao quartel e adeus bola. Os tropas ficavam com ela, nem davam hipótese. Então tínhamos de acertar na baliza a todo o custo.

Começaste onde?

No DDS, Desportivo Domingos de Sávio. Tinha uns 8 anos e o DDS fez treinos de captação. Lá foi o Zé, com os amigos do bairro. Sem o meu pai saber de nada.

Uiiii.

Quando fui aceite no DDS o meu pai teve de assinar uma carta para autorizar a minha ficha. Aí é que foi o cabo dos trabalhos, ahahahah. Nããã, nada de especial. Antes de assinar, ele só me perguntou ‘como é que vais para os treinos?’ À pendura do eléctrico, o 28 que ia para os Prazeres.

E que tal a primeira época no DDS?

Primeira e única. Fomos campeões distritais. Ganhámos todos os jogos, menos um, com o Fofó. Era uma equipa do caraças, batíamos em todos.

E depois, segue-se o quê?

Benfica. Joguei lá dos 9 aos 18 anos.

Causaste furor?

A RTP, através do Orlando Dias Agudo, fez uma peça comigo ainda eu era dos iniciados. No fim-de-semana seguinte à saída da peça na televisão, estavam umas cinco mil pessoal no Oriental para ver o Dominguez.

Já eras Dominguez, só Zé ou...?

No Benfica, vê bem, chamavam-me Futre.

Hã, brincas.

Nada, a sério. Era mesmo, Futre.

E tu?

Na boa, adoro o Futre, a irreverência e a imprevisibilidade do drible. Ele e o Chalana, meu Deus, que senhores. Até me arrepiava de os ver a passar por toda a gente. Mas havia mais, atenção, via-os muito na Luz e em Alvalade.

Os jogos, dizes tu?

Ya, ia sempre ver os jogos. Até antes de jogar no Benfica. Levava-me o meu pai à Luz nas famosas quartas-feiras europeias. Foi lá que vi o Liverpool do Rush a dar uma tareia ou outra, ahahahahah. Curiosidade do arco da velha, joguei contra o Rush num Birmingham-Liverpool para a Taça da Liga inglesa. Ele já em fim de carreira, eu ainda bem no início. Até me besliquei todo. Quando comecei a jogar no Benfica, já ia à Luz com os meus amigos do Bairro Alto ou com a malta da equipa, como Kennedy e Hugo Costa. Nunca mais me esqueço: um dia, vi o Diamantino Miranda entortar o Laureta, do Porto, umas quatro ou cinco vezes na mesma jogada. Ainda Diamantino, estava lá no jogo com o Vitória quando ele se lesionou e falhou a final da Taça dos Campeões com o PSV. Era ele o capitão, um maestro da cabeça aos pés.

E Alvalade, dizias tu?

Também fui lá algumas vezes e ficava ali na Juve Leo. Olha, os 7-1 vi-os lá. Quando o Wando marca o 2-1, eu quietinho, caladinho. Brincas, não? Acabou sete, porra. Por outro lado, fui apanha-bolas naquele famoso 5-0 na Luz, em que todos os golos do Benfica ao Sporting foram antes do intervalo.

E a rivalidade Benfica-Sporting nas camadas jovens?

Tivemos um galo do caraças. Ganhámos sempre ao Sporting, dos 8 aos 18 anos. No último ano, perdemos o título nacional de juniores para o Sporting.

De quem?

Porfírio, Andrade e Poejo.

E tu nunca foste campeão nacional?

Lembro-me de uma vez. Juvenis, será? Acho que sim. O Porto não estava nessa poule final a quatro. Era Benfica, Boavista, Leixões, que eliminou o Porto, e o Sporting. Foi um luta renhida até ao fim. Na última jornada, os dois candidatos jogam entre si no campo número 2 da Luz. Ao Boavista basta-lhe o empate. Nós marcámos o 1-0 nos descontos. Golo do Alexandre, um rapaz que depois fez carreira na 2.ª B e 3.ª. A nossa equipa sempre foi boa e, às vezes, dávamos cada tareia. Lembro-me de um 28-0 nos iniciados B, por exemplo.

E os torneios internacionais?

Ganhámos o Torneio da Pontinha, espécie de taça europeia sub-16. Jogámos com Milan e Sparta Praga na fase de grupos e ganhámos ao Inter, na final. Uma vez, fomos à Venezuela, para o Torneio Simon Bolivar. Fui eleito o jogador revelação e já tinha dirigentes do Inter, com intérpretes ao lado, a tentar sacar o meu número telefone de casa, a morada e tal para iniciar conversações. Nesse dia, valeu a pronta intervenção do director Artur Monteiro. Lembro-me como se fosse hoje da sua intervenção, a afastar-me do gajo do Inter. Ahahahah. Aquilo no Benfica era curtido. Os treinadores, digo. Apanhei tantos e bons.

Quem, por exemplo?

António Bastos Lopes, o Tobaló, ahahahahah. Depois, Nené, Arnaldo Cunha, Arnaldo Teixeira, a dupla Coluna e Ângelo.

Dupla?

Eles trabalhavam juntos e era só rir. O Ângelo sempre agitado, o Coluna sempre calmo. Às vezes, na palestra, até julgávamos que o Coluna tinha acabado de falar e já nos preparávamos para sair do balneário quando ele recomeçava a falar. Ahahahah, que dupla de ouro.

E nunca treinaste com os seniores do Benfica?

Treinar? Joguei com eles pá [Dominguez estica os braços, como quem diz tchan tchan tchan tchaaaaaaan]. Convocou-me o Eriksson, a mim e ao filho do Nené, ambos dos juniores. Fomos estrear o novo relvado do Olivais e Moscavide. O nosso guarda-redes era o Silvino, o avançado era o Mats Magnusson.

E então?

Entrei na segunda parte e dei lá umas arrancadas. A imprensa começou logo a chamar a atenção para o meu lado.

Espectáculo.

Ya, subimos aos seniores. Eu e mais cinco, entre Kenedy e Hugo Costa. Só que, depois, entrou o Ivic e só queria três de nós no plantel principal.

Ohhhhhhh.

Fui emprestado ao Sintrense e dei do cabo do menisco no 4.º jogo. Só voltei a jogar na época seguinte, novamente por empréstimo.

Onde?

Fafe.

Estamos em que época só para ter uma ideia?

1993-94. A meio dessa época, aparece o Birmingham. Esse período foi engraçado, porque passava a semana em Inglaterra e jogava aos domingos em Portugal. Ninguém desconfia, ahahahah.

Que aventuras.

Nem imaginas. No primeiro treino pelo Birmingham, estive a aquecer durante uns 45 minutos e eles, do Birmingham, nada de me chamarem para o meiinho. O meu empresário inglês tentava desvalorizar a situação e dizia-me ‘warm up, warm up’. E eu ‘i’m boiling’. E estava mesmo a ferver. Estava farto de andar de um lado para o outro sem bola nem agitação. De repente, lá me chamam para o campo. Na primeira jogada, tenho a bola, faço uma tabelinha, finto dois, vou à linha, cruzo e é golo. Corro para o meio-campo, queria mais, muito mais. E eles, os outros jogadores, a olhar para mim. Nunca me esquecerei desse momento freeze. Foram apanhados de surpresa. Marcou-se então um jogo a sério para mim.

E tu, com o Fafe?

Jogava na boa aos domingos. Mal acabava o jogo, ia treinar para o Birmingham.

E o tal jogo-treino?

Marcou-se uma vez, fui lá e adiado. Neve.

Ouachhhhh.

Na segunda vez, neve outra vez. À terceira é que foi de vez. Joguei, ganhámos 5-0 e fiz quatro assistências. Aquilo estava mais que feito, já só era uma questão de haver um entendimento com o Benfica. Que aconteceu, 5 mil para o Benfica, 5 mil para o Fafe.

E o Fafe?

Jogava lá, ainda. Quando tudo já estava mais ou menos acertado entre Birmingham e Benfica, fomos jogar ao Dragões Sandinenses. Entrei na segunda parte e estava 5-3 para nós quando há um lance de nítido penálti por falta sobre mim. O árbitro chega-se ao pé de mim e dá-me o amarelo por simulação. Bem, mas é que nem imaginas o pau que o central me deu. E o árbitro, amarelo. Enfim. Quando estou a voltar para o meu lugar, penso ‘isto vai mas é acabar hoje e pronto’. O árbitro ainda está a anotar o amarelo, eu toco-lhe no braço e mando-lhe a um sítio. Ahahahah. Vermelho, expulso. Acabou-se. Fui para o Birmingham. Mas isto não acaba aqui.

Oláááá, então?

No meio desse processo, há uma história hilariante com a tropa, o caso Isabel Queiroz do Vale.

O quê?

Pedi dispensa da tropa, só que não ma deram. Então fui para o quartel de Santa Margarida. Cortei o cabelo: pente 1 de lado, pente 4 em cima. Estava a escolher a roupa quando o oficial de dia, com o mancebo ao lado dele, parou à minha frente. Olhava-me e eu nada. Quando ele falou, foi hilariante: ‘O que é isto, Isabel Queiroz do Vale?’ Mandou o mancebo acompanhar-me ao barbeiro do quartel para fazer também pente 1 em cima. Ahahahah. E há mais.

Ainda?

Ya. Ainda no vai-não vai para o Birmingham, o meu empresário Chris acorda-me às seis da manhã. Estava a dormir no hotel mesmo ao lado do campo do West Brom. ‘José, tens aí as tuas botas?’ Tenho, porquê? ‘Sai pela porta dos fundos, encontramo-nos daqui a 15 minutos’. Todo ensonado, lá me levantei a custo e saí de fininho. Quando cheguei ao carro, ele ficou com o telemóvel e desligou-o. Fomos para o Blackburn, fazer um treino. Pormenor, o Blackburn treinado pelo Kenny Dalglish está a lutar para ser campeão inglês da Premier League.

E treinaste com eles?

Com os suplentes utilizados do último jogo e os suspensos. Estava lá o Colin Hendry, lembras-te? Um central escocês com cabelos compridos. Fiz-lhe duas cuecas e ele virou-me ao contrário, ahahahah. O adjunto do Dalglish só me dizia ‘só à paulada é que te tiram a bola’. Na viagem para baixo, o Chris fala comigo a sério sobre o futuro. O Birmingham, da 2.ª divisão, precisava de mim para o dia seguinte. De verdade, havia jogo no dia seguinte. O Blackburn jogava na Premier League e não se sabe se iria utilizar-me. Fomos para o Birmingham.

Não é no Birmingham que há uma mulher presidente?

Karren Brady. Ela não era presidente, e sim directora-geral. Às vezes, entrava pelo balneário dentro sem pestanejar para falar com os jogadores. Do que nunca mais me esquecerei é das palavras do meu treinador do Birmingham, um tal Barry Fry, muito porreiro. Sempre que ia entrar, segurava-me no ombro e dizia-me ao ouvido: "Son, enjoy yourself." Simplesmente: "Filho, diverte-te." Aquilo lá em Inglaterra é outra coisa.

Os adeptos?

Ya, os adeptos, a atitude, a promoção do jogo, os tais campos de futebol. Basta o exemplo do Boxing Day. Naquele dia [26 de dezembro], as famílias saem de casa para ir ao futebol e estou a falar de famílias inteiras: pai, mãe, filho, filha, avô, avó. E depois só em Inglaterra é que um campo com 30 mil pessoas faz tanto ou mais barulho que um de 80 ou 90 mil. Lá está, é aquela diferença de que falávamos há pouco. Eu ficava arrepiado sempre que partia para o contra-ataque. Aquele bruá deles assustava-me e «eles» eram os meus adeptos. Aquele som era tão ensurdecedor que nos levava a pensar que tínhamos marcado um golo quando na verdade apenas acabávamos de passar o meio-campo.

Sabes que ainda és o jogador mais baixo da Premier League?
Ya, sou mesmo baixinho, não sou?

Alguma vez experimentaste marcar um golo de cabeça?
Ahahahah, só uma vez. Nos infantis do Benfica, contra o Belenenses, numa final do Torneio da Pontinha. Ganhámos 2-1 e eu marquei o golo decisivo, no meio dos centrais.

Classe. Quanto tempo jogaste no Birmingham?

Ano e meio.

E o contacto com Portugal naquele tempo?

Nada. Até que [Dominguez interrompe e enche o peito, na brincadeira]

Até que?

Fui ver o Inglaterra-Portugal, em Leicester. Fui lá só para ver antigos companheiros do Benfica, como Kenedy e Hugo Costa. Acabou 0-0 e, no final, o seleccionador Nelo Vingada virou-se para mim ‘tu és aquele do Birmingham? Tiveste uma grande pontuação no jornal’. Ele estava a referir-se ao jogo da véspera, pelo Birmingham. Tinha partido aquilo tudo. A verdade é que tudo aquilo deu uma volta à minha vida, porque fui chamado para jogar com a Áustria, em Novembro 1994. Pouco tempo depois, eliminámos a Inglaterra no apuramento para o Europeu de Esperanças e, ao mesmo tempo, qualificámo-nos para os Jogos Olímpicos Atlanta-96. Ganhámos 2-0 em Santa Maria de Lamas, dois golos do Dani.

Ahhhhh, esse jogo. Lembro-me bem, à tarde.

Ya, podes crer. Solzinho à maneira. A Inglaterra com Beckham, Bart-Williams, Fowler. Só craques e, nós, 2-0.

Ainda jogavas no Birmingham?

Nessa altura, estava a começar no Sporting.

Do Birmingham para o Sporting, como assim?

É uma história engraçada. As minhas exibições começaram a ser faladas em Portugal e o primeiro a chegar-se à frente até foi o Benfica, através do Artur Jorge. O presidente era o Manuel Damásio, em negociação com a Parmalat e tal. Até tive uma reunião com o dirigente Francisco Colaço. E uma outra com o próprio Artur Jorge. Sabes o que ele disse?

Nem ideia.

Vais ser o meu Futre do Porto.

Futre, outra vez.

Sempre, ele está no meio de nós, ahahahahah. É o maior. Mas é isso, o Artur Jorge queria fazer uma equipa à volta de outro esquerdino.

E o Sporting, insisto.

Aí foi o professor Nelo Vingada. Connections com o Carlos Queiroz, ahahahah. Estava aqui em Lagos, quando o professor Queiroz ligou para a casa do meu sogro a dar luz verde para assinar o contrato na casa do presidente Santana Lopes, ali na Lapa. Eu estava na praia, na altura do telefonema. Quando cheguei a casa, fui notificado e liguei de volta. Disseram-me para vir nas calmas, sem pressa. Eu, nas calmas? Ahahahahah. Acho que fiz a viagem em duas horas. Acho, atenção. Sei que quando cheguei à Lapa, o Santana Lopes e o Queiroz também tinham acabado de chegar de Alvalade. Eles é que vieram nas calmas, ahahahah. A sério, sair da 2.ª divisão inglesa para um grande como o Sporting era uma honra.

E foi uma honra durante o tempo em que jogaste lá?

Então não? Aquilo era um ambiente espectacular. Para início de conversa, o doutor Fernando Ferreira ia para dentro do jacuzzi cheio de água vestido à maneira, com fato e gravata. Era um ritual, estilo semana sim, semana sim. Ahahahahah. Depois havia o Paulinho. Que personagem. O doutor Fernando Ferreira estava sempre às turras com ele, no gozo. Aquelas viagens de autocarro eram uma delícia. Quanto mais longe, estilo Chaves e assim, melhor. Ahahahahahah. Desportivamente, estreei-me nas Antas, com o Porto, para a Supertaça. Empatámos 2-2 e o Oceano acabou à baliza, por expulsão de Costinha numa altura em que tínhamos feito todas as substituições. Foi o melhor arranque possível. Estás bem a ver o que é um capitão assumir a cena e ir à baliza? Fooooogo, é preciso tomates. E o Oceano era o melhor. Capitão na verdadeira acepção da palavra. Craque da motivação, das palavras de apoio, de estímulo. E craque das broncas, também. Ahahahah. Já agora, craque das chamuças da dona Eva.

Hein?

Começámos a organizar almoços com todo o plantel, mas depois percebemos que isso era muito mediático e passámos a fazer as coisas mais dentro do balneário. Vai daí, havia dias em que o Oceano ligava à dona Eva, ali na Quinta do Lambert, e encomendava umas 100 chamuças feitas na hora. Alguém ia lá buscá-las e ainda as comíamos quentinhas. Lindo, lindo, lindo.

E o projecto Queiroz?

Era para ser de três anos, com o objectivo de ser campeão com um plantel jovem e português. Perdeu-se o campeonato dos 6-3, depois o seguinte e aqui em Portugal, já se sabe, não há muita paciência. Veio o Octávio, depois o Waseige, um belga, e, finalmente, outra vez o Octávio. Nesse caminho, perdemos a Taça de Portugal do very light e ganhámos 3-0 ao Porto, em Paris, para a Supertaça.

E tu firme no Sporting?

Sempre.

Amigos aos montes?

Ahahahahah, já sei onde queres chegar.

Aquele trio é famosíssimo.

Malta fixe, para a vida. Ainda hoje já falei com o Dani, por exemplo. Tal como falo muitas vezes com o Oceano, o meu companheiro de quarto e fiel amigo. Trato-o por capita.

Não desvies a conversa pá.

Ahahahahahahah.

Tu, Dani e Sá Pinto. Lembro-me de uma história em que vocês foram modelos. 
Isso foi extrapolado. Participámos nessa passagem de modelos com autorização do Sporting e a pedido da Associação Abraço. Nós só desfilámos na parte final, com bolas de futebol. Não sei quantos meses depois, e para justificar uma derrota com o FC Porto em Alvalade que implicou o atraso na corrida ao título, é que os jornais escreveram que tínhamos sido modelos, que não devíamos fazer isto e aquilo. Enfim.

‘Tá certo, e aquela das bicicletas na Holanda?

Ahahahah. No estágio em Ooijerwick? É outra história mal contada. O professor Carlos Queiroz deu-nos a tarde livre e eu, o Dani e o Sá Pinto vimos ali as bicicletas, aquelas que têm uma cestinha à frente, as pasteleiras se não me engano, pegámos nelas e fomos dar uma volta. Aquela zona era um espectáculo de verde e sossego. Andámos e andámos. Quando chegámos ao hotel, o nosso tradutor viu-nos e comentou. O Queiroz ficou zangado connosco porque andámos muito de bicicleta em vez de descansarmos.

Pronto, está bem, passaste no teste.

Ahahahah. Ainda bem, estava com medo, ahahahahah.

E sais do Sporting porquê?

Era inegociável numa altura em que tinha clubes atrás de mim. A Lei Bosman tinha acabado de sair e tudo se tornou mais frenético, por assim dizer.

E depois?

Era inegociável e tal, só que recebo uma carta a dizer que a pré-época começa na quarta-feira. Em conversa por telefone com o Beto, achei estranho ele falar-me em segunda. E eu, na quarta? Liguei ao Oceano e ele pediu-me para esperar uns minutos. Quando me ligou de volta, disse-me que era mesmo assim: o plantel começava na segunda, eu só na quarta ‘Mas tu vais lá estar na segunda, como toda a gente’ Capita, sempre em grande. E lá fui. Ele defendeu-me até à última.

O que é que aconteceu?

Meteram-me na lista de dispensas. Foi uma época má, agreste. O Afonso Martins, por exemplo. Assinaram com ele por sete anos, via-Nancy, se não me engano, e depois dispensam-no sem mais nem menos. Bahhhhhh.

Recebias propostas?

Assim a mais séria foi a do Depor. Cheguei a apertar a mão ao Lendoiro [presidente], negócio fechado. O empresário era o Jorge Mendes, que já tinha metido o Nuno no Depor. Aliás, foi esse o seu primeiro negócio. Fechámos negócio por três milhões. O Sporting sim, de acordo. Pelos tais três milhões. No dia seguinte, já pedia quatro. Assim, não. O Lendoiro, claro, afastou-se do negócio. Lá se foi o Depor.

Apareceu o Tottenham?

Ya. O Roy Evans, treinador do Liverpool, ainda me pede para esperar antes de assinar, mas depois nada feito com o Liverpool.

E estás no Tottenham?

Yes sir.

Em Londres, à grande?

Tudo à grande. Como eu, ahahahahah.

Era fixe?

Muito fixe. O clube, o White Hart Lane, a atmosfera da Premier League e ainda a falta de estágios.

Como assim?

Não havia estágios no Tottenham. No dia de jogo, juntávamo-nos todos no hotel perto da hora de almoço, ouvíamos a preleção e íamos, cada um no seu carro, para White Hart Lane. Havia seguranças à porta, já à nossa espera para abrir-nos os portões e estacionar-nos os carros. Faltam duas horas para começar o jogo e já se notava uma movida espetacular. O pessoal sempre a apoiar-nos, saíam dos pubs para aplaudir. Que maravilha.

A tal drinking culture?

Sabes que isso é mais presente nos adeptos, a tal questão dos pubs antes e depois dos jogos. A verdadeira drinking culture está na Alemanha. Quando nós chegávamos ao balneário depois dos jogos, já havia um monte de weissbier para toda a malta.

Alemaaaaaanha. Pois é, jogaste no Kaiserslautern.

Ya, e cheguei à final da Taça da Alemanha. Perdemos para o Bayern, what else? Ahahahahah.

Quem estava lá?

Craques do além: Klose e Basler, chegam?

Uau, claro que sim, mais que suficiente.

Djorkaeff.

Outro?

Weltmeister.

Santinho.

Ahahahahah, Weltmeister é campeão do mundo. A história tem a ver com o Andreas Brehme, o nosso treinador no Kaiserslautern. O gajo era bravo a treinar, os treinos eram puxadíssimos. O preparador físico dele era muito exigente e a equipa partiu-se. Oito jogadores não se aguentavam naquele ritmo de correr 12 km de manhã e outros 12 à tarde. Nós não éramos maratonistas. Nem queríamos ser. Eu fui dos que se partiram. Tinha problemas físicos. Uma vez recuperado num treino normal, o preparador físico dizia-me para correr de uma área a outra e voltar. Ou seja 300 metros. E para fazer esse exercício dez vezes. Acabava... Ou melhor, nem sequer acabava: ao sétimo exercício já estava novamente com dores. Uma vez, fui ter com o preparador mais o Brehme e disse-lhes que gostava de ser visto pelo médico da selecção alemã, o muito conhecido Müller-Wohlfarth, que eu conhecia bem porque já me tratara de uma hérnia inguinal, nos tempos do Tottenham. O Brehme ficou muito espantado e telefonou ao médico à minha frente. Fui visto por ele e o médico ligou ao Brehme à minha frente a dar-lhe na cabeça: como era possível ter desfeito o meu tendão de Aquiles. A partir daí, só joguei uma vez. No meu dia de anos.

E no meu, já agora.

Também és de 16 fevereiro.

Obviamente.

Ahahahahah, lindo. Pronto, joguei nesse dia e ganhámos ao Bayer Leverkusen do Ballack. Fui eleito o melhor em campo. Nunca mais joguei com o Brehme.

Porquê?

Boa pergunta. Sei lá, pergunta ao Brehme.

Então fazias o quê?

Treinava à parte. Djorkaeff.

Desculpa?

Com o Djorkaeff, treinava à parte com o Djorkaeff. Maus tempos, só te digo. A parte do treinar à parte. O Youri [Djorkaeff] é top. Uma vez, um miúdo adepto viu-nos a treinar em conjunto e chamou-o weltmeister. O Brehme, campeão mundial em 1990, pensou que era para ele e aproximou-se. O miúdo ‘não és tu, é aquele’ a apontar para o Djorkaeff. Beeeeeem, que cena.

Djorkaeff e Ginola, tens jeito para os franceses.

Dois gajos espetaculares, só te digo. Dou-me muito com o David [Ginola]. Craque, craque, craque. Gente fina. Meu companheiro de quarto do Tottenham durante três anos. Uma vez, vi-o marcar dois golos no mesmo jogo. Num dos golos, fintou dois adversários com o pé esquerdo e rematou com o direito. Logo a seguir, a mesma jogada mas esta com o pé direito a fintar e o esquerdo a rematar. Génio, génio.

Jogaste com mais génios?

O Dani. Porra, o gajo era genial. O toque de bola, a categoria de finalização, as bolas paradas, as arrancadas. Fazia tudo bem.

Adorava-o. Quando via o Kaká, lembrava-me dele. Fisicamente, digo. A conduzir a bola.

[Dominguez abana a cabeça] Mesmo, podes crer. Mas claro nunca me poderei esquecer do Romário.

Romário, onde?

No Vasco da Gama. O gajo era especial. Top, top, top do mundo. Até marcava golos com a barriga. Chamava-lhe general. A malta adora-o e respeita-o imenso. Ele, no Vasco, tinha os seus horários: nunca jogava fora do Rio de Janeiro e só ia aos treinos de conjunto de quinta-feira, mas cumpria dentro do campo, com golos. Alguns deles de cabeça. Sabes porquê? Além do jeito para o futebol, ele tinha cabeça. Ou seja, sabia estar fora do campo: quando íamos jantar em grupo ou a um aniversário de um amigo, nunca o vi a beber álcool ou a fumar e isso faz toda a diferença.

Continuo no Brasil. Aquele 3.º/4.º lugar dos Jogos Olímpicos.

Eischhhhhhh. Nem me fales, fomos abalroados: 5-0. Cuidado, antes do primeiro, falhei dois golos na cara do Dida. E atenção a esse Brasil, com Roberto Carlos, Aldair, Flávio Conceição, Juninho Paulista, Bebeto e Ronaldo fenómeno. Eles queriam mesmo o ouro. Que nunca tinham conseguido. Só agora no Rio, em 2016, é que acabaram com a maldição. Viajaram para os EUA com a ideia fixa no ouro e são eliminados pela Nigéria na meia-final. Quando nos apanharam para o bronze, ficámos queimados. Ahahahahahah.

Nas meias-finais, é Nigéria-Brasil e Argentina-Portugal, certo?

Ya, essa Argentina era também fortíssima. E perdeu a final com a Nigéria, com golo do Amunike nos descontos ou lá o que foi. Espectáculo.

E Portugal perde quantos?

Na fase de grupos, 1-1 com a Argentina. É o jogo em que o Simeone lesiona o guarda-redes Costinha. Entra o Nuno, titular a partir daí. Na meia-final, eles foram mais fortes. Dois-zero. Marca o Crespo, que é um fora de série. Essa Argentina é um portento, repito: Ayala, Sensini, Ortega, Simeone, Claudio López, Crespo. Na baliza, Bossio.

Tu jogaste?

Comecei esses Jogos Olímpicos no banco e depois saltei para a titularidade, precisamente com a Argentina. Joguei a extremo-esquerdo.

Quem era o lateral-direito?

Za-ne-tti [Dominguez mete a mão direita lá no alto]. Jogador especial, mas nem imaginas o trabalho que lhe dei nessa tarde. Corri tanto tanto mas tanto que o gajo só devia desejar que parasse. Só para veres: acabou o jogo e os representantes da Nike USA ofereceram-me um contrato de quatro anos.

E a selecção principal?

Estreei-me num jogo histórico, em Viena, com a Áustria. Golo do além do Paulinho Santos. Ahahahahah.

Paulinho Santos, claro. Jogada individual.

Mete individual nisso. Que jogada impressionante. E logo o Paulinho ahahahahah.

Que tal o Paulinho?

Ouve, impecável. Foi o meu companheiro de quarto.

Nãããããã.

A sério. Comparo-o muito ao Freund, alemão com quem joguei no Tottenham. Campeão europeu pelo Dortmund e mundial pela Alemanha. O Freund era amigo de todo o plantel e também era amigo das famílias de todos os jogadores, treinadores e dirigentes. Era mesmo um gajo à maneira, sociável. Dentro de campo, mau como as cobras. O Paulinho era igual. Gente boa, simpática, sempre com piadas na ponta da língua. No campo, era aquilo que se sabe. Porra, até doía. Ahahahah. Nesse dia, em Viena, foi ele o herói. E num jogo tremido, estávamos a perder 1-0. Qualificação para o Euro-96.

Espera lá, esse é o jogo do Oliveira.

Ya [Dominguez parte-se a rir como nunca], a frase ‘vai lá para dentro ensinar a esses nazis como é que se joga à bola’. [Dominguez continua a rir-se a bandeira despregadas, é um regabofe constante] É uma frase para galvanizar, dar pica. Nada demais, a malta é que faz um alarido sempre de tudo o que é insignificante.

A tua última internacionalização é em Wembley.

Ya, 1-1 com a Inglaterra. Eu, o Sá Pinto e o Paulo Alves fabricámos o 1-1 numa jogada rápida de contra-ataque. Foi lindo, lindo. Isso e ouvir o hino, claro. Aquilo dá-te pele de galinha.