Uns lembram-se do Fernando Mendes como júnior do Sporting, campeão nacional com Aurélio Pereira naquela final incrível dos 5-0 ao Braga em Leiria. Outros lembram-se do Fernando Mendes como único representante dos cinco campeões nacionais (Sporting, Benfica, Boavista, Porto e Belenenses). Nós lembrámo-nos de ligar ao Fernando Mendes do Boavista 1991-92, vencedor da Taça de Portugal (2-1 ao FC Porto), ilustre terceiro classificado da 1.ª divisão (à frente do Sporting) e digno actor principal da Taça UEFA (2-1 ao Inter, detentor do troféu). Ei-lo, Fernando Mendes de 1 a 11. Mais uns suplentes de luxo.

Estás pronto?

Vamos lá, amigo.

Número 1, Alfredo.

Dos maiores loucos que apanhei na vida, g’anda pancada. Ahahahahah. E um ser humano fantástico, do mais genuíno possível. Foi ele quem mais me ajudou no início do Boavista.

Porquê?

Por duas razões.

A primeira?

Eu era um menino de Lisboa, só conhecia a realidade de Sporting e Benfica. Este ‘só’ tem a ver com a diferença de temperamento, digamos assim.

Então?

Epá, a malta do Porto é diferente. Ponto. Falo do ponto de vista futebolístico. Tanto no Sporting como no Benfica, e estou a falar do meu tempo, atenção, os treinos eram só treinos. No Porto, seja Boavista ou FC Porto, o treino era um jogo a sério. Tens de treinar como jogas, senão... Tanto no Sporting como no Benfica, os jogadores iam de férias cada um por si. No Porto, seja Boavista ou FC Porto, e experimentei as duas realidades, a malta ia de férias grandes aos grupos. Juntávamos três ou quatro famílias e íamos por aí fora. Por isso é que insisto no Alfredo. Íamos de férias, juntos.

Onde?

Algarve, estilo Albufeira, Montechoro ou Vilamoura. Além disso, o Alfredo era um símbolo do Boavista e recebia todos os reforços cá com uma categoria. Um anfitrião de primeira. Mostrava-nos as instalações e dizia-nos como funcionava o clube. Ainda por cima, vivia perto dele.

Onde?

Ali no Foco, perto do Hotel Tivoli, pegado ao Estádio do Bessa.

Grandes amigos, portanto.

Das primeiras pessoas a amparar-me no Boavista.

E como guarda-redes?

Beeeeeem, nem fales: simplesmente extraordinário. Um craque.

Mas era de gritar?

Se era? Porra, ele enchia os pulmões e toma lá disto. Gritava muito, corrigia-nos sistematicamente, ninguém jogava descansado. E se errássemos, o gajo vinha direito a nós. A culpa era sempre nossa. E se fosse um golo fora da área? E se fosse do meio-campo? Esquece, a culpa era sempre nossa. Ahahahahah. Os guarda-redes são tramados. E especiais. Únicos, aliás.

E tu apanhaste o Damas no início.

Porra, o Damas até chapadas me dava. Uma vez, em Bilbau, bola para a área do Athletic e eu cabeceio para canto, apesar do Damas ter dito ‘é minha’. Mas só disse naquela fracção de segundo em que já vou de cabeça à bola. É canto e o Damas nada. Até estranhei. Nem um grito nem uma reprimenda nem nada. Bom, é canto. Bola para a molhada e o Julio Salinas tauuu, golo. É o 2-1, acho. Estou agarrado ao poste, como sempre nos cantos. E o Damas dá-me cá um estalo na cara que bati com a cabeça no poste. Até vi estrelas, acredita. Tipo cartoon, sabes? Ahahahahah. Porra, o Damas, que figura. Tanto ele como o Alfredo eram meninos para meter a malta em sentido. Seja por gritos ou por correrias na nossa direcção.

Imagino.

Não imaginas não, ahahahahahahah. Grandes.

Adiante.

É melhor é, senão. Ahahahahah.

Paulo Sousa, 2.

Pequenino, com uma raça tremenda. Um bocado tímido. Mas só até ao momento em que nos conhecemos bem. Aí passou a ser atrevido. Um atrevido engraçado. Ahahahah. Abriu um restaurante extraordinário ao pé da Ponte da Arrábida. Que figura.

Samuel, 3.

Já o conhecia do Benfica. Aliás, fomos os dois da Luz para o Bessa e depois voltámos juntos para o Benfica, juntamente com o João Vieira Pinto, na era Ivic. Era um central tímido, já o era no Benfica, e um dos jogadores mais rápidos que apanhei na carreira. Jogava praticamente a líbero e era um dos garantes na defesa, porque o Manuel José dava liberdade para subir à vontade aos laterais, tanto o Paulo Sousa como eu. Era o Samuel quem nos cobria as costas.

Barny, 4.

Outro palhaço, no bom sentido. Muito autêntico, como o Alfredo. Um maluco saudável, como o Alfredo. E com uma ironia fantástica.

Fernando Mendes, 5. És tu.

Ahahahahah. Bem visto. A experiência no Boavista serviu-me para ganhar tudo e mais alguma coisa. Repara bem, acabámos essa época em 3.º lugar, à frente do Sporting e só a dois pontos do Benfica, e ganhámos a final da Taça ao campeão FC Porto. Foi uma época memorável. Para sempre. Na Europa, eliminámos o Inter: 2-1 no Bessa, 0-0 em Milão.

Quem marcaste no Inter?

Nem me lembro. Levámos um massacre nessa noite, ahahahah. Lembro-me é de quem marquei no Torino, na eliminatória seguinte.

Quem?

Lentini, rapidíssimo. Mas estava a borrifar-me para isso, queria era subir e fazer o meu jogo. Também isso contribui para adorar o meu tempo no Boavista. Pelos resultados e, claro, pelo convívio. Aquilo que passei foi maravilhoso. O estádio do Bessa à inglesa, o calor humano dos adeptos e as sandes de presunto numa taberna ao pé do estádio.

Uyyyy, isso é que é um hat-trick à maneira

Podes crer, amigo.

Falaste dos adeptos.

Eles só nos pediam duas coisas, ‘vocês têm de morrer em campo e honrar a camisola’.

Tavares, 6.

Emprestado pelo FC Porto, era uma pessoa mais séria. Não te dava confiança até o conheceres bem. Era um menino mais responsável. Aparentemente, ahahahahah.

Bobó, 7.

Fantástico, outro grande palhaço. Dos que mais brincava no balneário.

E em campo?

Um chaimite. Um poço sem fundo de força bruta, uma máquina com um ritmo altíssimo. E ele era daqueles que treinava como jogava, sempre agressivo na procura da bola. Era claramente um dos homens de confiança do Manuel José.

Marlon, 8.

Já o conhecia do Sporting. Era um brasileiro mais resguardado, menos brincalhão.

Ninguém se chama Marlon Brandão.

Ahahahahahah. Ninguém podia ter era aquele cabelo à Marquês de Pombal, com os canudos a cair nos ombros.

Ahahahahah. Ricky, 9.

Grande ponta-de-lança nigeriano. Aquele dia em que damos 5-0 ao Estoril e ele marca os cinco golos, ahahahah. Que touro indomável. E se não me engano, é o melhor marcador da 1.ª divisão [correcto e afirmativo, com 30 golos, 24 dos quais no Bessa].

E é o herói da Taça.

Poizéééééé. O Jaime Magalhães empata de livre directo e o Ricky desfaz o FC Porto, 2-1. Que festa.

Ele falava português?

Perfeitamente, ele vinha do Benfica, já estava rotinado com a nossa língua.

JVP, 10.

Génio. Grande grande grande João Pinto. Craque, dos melhores portugueses de sempre. Apanhei-o aos 19 anos e já era pai, fooogo. Imagina só, pai. Naquela época, ele vinha do Atlético Madrid, onde as coisas não lhe correram bem. Foi remédio santo, o regresso ao Boavista. Jogou bem demais e saiu para o Benfica. Olho para ele naquele tempo, olho agora para o Bruno Fernandes e vejo semelhanças no que toca a jogar atrás do 9.

Casaca, 11.

O cérebro, o nosso capitão. Foi ele quem subiu à tribuna VIP e levantou a taça. Um líder nato e todos lhe tinham um respeito enorme pela sua postura. Ele respirava Boavista, porra. E depois era assim: se as coisas não estivessem a correr bem ou se estivéssemos demasiado excitados, ele metia água na fervura. O Casaca era mesmo o garante de estabilidade.

Manuel José, treinador.

Tenho uma dívida eterna de gratidão, porque foi o Manuel José quem apostou definitivamente em mim. Estreei-me com o Vitória FC, no final daquela época em que o Pedro Gomes substituiu o Toshack. Nesse Verão, o Sporting contrata o Manuel José ao Portimonense e ele dá-me a oportunidade de ser titular. Rui, só tinha 18 anos. Nessa época, ele foi como um pai para mim. Aliás, ele dizia-me que aturava mais coisas minhas do que do próprio filho.

Ahahahaha.

Quando o Benfica me meteu na lista de dispensas, o Manuel José quis-me logo e foi assim que aterrei no Boavista. Onde acabei por voltar em 1994-95, novamente com o Manuel José. Era um homem que sabia muito. Nesse Boavista 1991-92, jogávamos muitas vezes com três centrais. Um deles era o Nogueira, de quem não falámos.

Pois, ele não jogou na final da Taça.

Mas entrou, não? Lembro-me de o ver equipado à Boavista com a taça na mão. Sabes se jogou?

Não sei, vou ver (...) Entrou para o lugar do Marlon.

Bem me parecia.

Bem, estou a ver o banco de suplentes e vejo Carlos Manuel.

Carlinhos, grande Carlinhos. Dava-se à brincadeira, dava-te conselhos, era um fartote. Eu nem era uma pessoa fácil pela forma de estar, mas tinha-lhe um respeito... Todos tínhamos, hein?! O homem fez tudo no futebol e continuava a ser um homem simples. Olha esta história.

Conta.

Um dia, emprestou-me o carro para fazer Porto-Lisboa.

Não tinhas carro?

Tinha um Suzuki Vitara, aquilo era rijo como a porra. Não ia fazer um trajecto de auto-estrada naquilo. É que era uma viagem especial, ia levar a minha filha recém-nascida a Lisboa. Pedi ao Carlinhos e ele emprestou-me o seu Alfa Romeo 164.

Máquina. O Carlos, digo.

Ahahahahah.

Já falámos de todos, falta o presidente.

Valentiiiiim, uma das pessoas mais extraordinárias que apanhei na vida.

Ele era participativo?

Ai não? Claro que sim, andava a jogar com a gente no balneário. E depois dava-nos as célebres palmadas no peito. Digo-te uma coisa: chegava ali o dia 8 e o salário caía. Era certinho. O salário e os prémios de jogo. Tudo em dia.

Quanto era?

Tchiiiii, não me lembro. Só sei que dava para as férias.

Por falar nas férias, ganhaste a Taça pelo Boavista e depois?

Voltei ao Benfica do Ivic.

Que tal?

Só vi um treinador igual a ele.

Quem?

Jesus.

Igual como?

No autocarro, depois dos jogos, ele chamava-me lá à frente e começava a desenhar coisas num papel sobre marcações individuais. Fosse sobre o próximo jogo ou do que acabávamos de jogar. Era maníaco, vivia o futebol 24 horas por dia. No autocarro, vê bem. Só ele e o Jesus. Agora, o Ivic é o único que encurtou o relvado da Luz.

Ahahahahah.

Nunca vi, o homem tirou para aí uns dois metros. G’anda maluco.

Qual era a ideia?

Queria estreitar em largura para não ficarmos tão dispersos, ahahahah.