É um problema, a memória. Quando nos cruzamos com Dasaev, a nossa cabeça entra automaticamente no Euro-88. A selecção da URSS é um fenómeno imperdível, com jogadores fortíssimos a praticar um futebol associativo. Até se diz futurista, do ano 2000: Dasaev na baliza, Bessonov, Kuzntesov, Khidiatulin e Rats na defesa, Aleinikov, Zavarov, Mikhailichenko e Litovchenko no meio mais Belanov e Protasov no ataque. É um sonho. O sonho de Lobanovski, o seleccionador. O sonho de Dasaev, o capitão.

Dasaev, tudo bem? [entusiasmadíssimo, a praticar o castelhano]
Apanhaste-me, tiveste sorte [pouco entusiasmado].

Então?
Não atendo números estranhos [muito pouco entusiasmado].

Ai o meu número é estranho?
351 é de onde? Não é de Espanha e falas castelhano.

Portugal.
Ahhhhhhh [nada entusiasmado].

Tudo bem? [mais que entusiasmado]
Tudo, e tu? Queres o quê mesmo?

Quinze minutos do seu tempo.
Quinze?

...
[silêncio]

...
Desculpa as minhas anteriores respostas curtas. Não sou de falar, muito menos ao telefone, e estou já cansado de dar entrevistas. Passei a vida a dar entrevistas, entendes?

Claro que entendo, mas isso é só porque o Dasaev é um guarda-redes global, icónico. Acabou a carreira em que ano?
1991.

Lá está. Já se passaram quase 30 anos e estou a ligar-lhe de São Petersburgo para saber da sua carreira.
São Petersburgo?

Estou aqui, sim. Liguei-lhe desde Moscovo e nada.
Como te disse, tiveste sorte neste telefonema: estava com o telefone à mão e atendi.

Posso começar?
Ya, ya.

Quando é que se sentiu verdadeiramente um guarda-redes de topo?
Quando entrei na seleção da União Soviética.

Quando?
1979.

Porquê essa sensação em 1979?
Quando cheguei ao Spartak Moscovo, com 20 anos de idade, vindo da equipa da terra [Volgar Astrakhan], as pessoas disseram-me ‘Não tens qualquer hipótese, o Prokhorov é o nosso guarda-redes’.

E?
Ganhei o meu espaço no Spartak, depois de um jogo treino com uma equipa búlgara. Goleámos 12-1 e sofri um golo do meio-campo. Subimos à primeira divisão nessa primeira época, em 1977. Dois anos depois estreei-me na seleção. Dois anos depois, em 1981, estava a jogar com o Real Madrid na Taça dos Campeões. No ano seguinte, fui o primeiro dos meus três Mundiais.

O Espanha-82
Ya, ya.

Que tal?
O nosso jogo de estreia foi com o Brasil.

Já vi esse jogo, o Dasaev faz lá uma defesa impressionante a um remate do Zico.
Lembras-te?

Ya, ya.
Já nem me recordava dessa defesa. O Zico era especial, como o Sócrates. Ganhámos ao Brasil no Maracanã, num particular, em 1981 ou 1980. Foi especial [é a primeira derrota de Telé Santana e a única até ao 3-2 da Itália no Sarriá]. Dessa vez, em Espanha, é um remate à queima-roupa, da marca do penálti, e eu defendo. É uma das minhas melhores defesas.

Top 5
Top 3.

E as outras?
Uma no Euro-88, também no jogo de estreia, com a Holanda. Ganhámos 1-0. O Gullit cabeceia, eu defendo por instinto e a recarga é do Wouters.

E depois?
Fiz outra defesa [oláááááá, o homem anima]. Parecia milagre, muito parecida com uma defesa ao Papin no México-86. Defendi a bola em cima da linha. Empatámos 1-1.

Entre o Euro-88 e o Mundial-86, qual a maior tristeza?
Sinceramente? O Mundial-86. Estávamos lançados, tínhamos uma equipa perfeita. O Lobanovski teve o mérito de juntar todo um continente imenso chamado União Soviética, com jogadores de Kiev, Moscovo, Tbilisi, Minsk e por aí fora. O Dìnamo Kiev tinha levantado a Taça das Taças nesse ano, um festival ao Atlético Madrid, sabes?

Três-zero?
Ya, ya. Os jogadores do Atlético ganhavam três mil dólares de prémio pela vitória, os do Dínamo 500. O treinador do Atlético era o Luis Aragonés. Lembro-me bem dele uns anos depois, quando o Spartak Moscovo foi jogar um torneio em Espanha. Ganhámos ao Atlético e jogámos tão bem que os adeptos aplaudiram-nos durante e depois do jogo. O Aragonés estava furioso e chamou soviéticos aos espanhóis.

Falava do México-86.
Aquela derrota com a Bélgica está atravessada. Ainda hoje. Perdemos 4-3, após prolongamento. O Belanov marcou três golos e sofri quatro golos, uns muito estranhos. Foras-de-jogo. Digo eu. O ambiente no balneário era [silêncio]

[silêncio]
[silêncio]

Era o quê?
Isto, silêncio. Ninguém se mexia, ninguém falava. Ninguém esperava, foi um choque. No autocarro, a mesma coisa. Se adormeci às cinco da manhã já foi muito bom. Quando chegámos a Irapuato para recolhermos as malas e voltarmos para casa, nem imaginas o nosso espanto.

Porquê?
Os mexicanos receberam-nos em massa, completamente histéricos. Alguns até choravam. Foi comovente. E foi pena, digo-o outra vez. Gostava de ter jogado contra o Schumacher.

Ai era
Aprendi muito com ele.

Como?
No meu tempo, o guarda-redes era guarda-redes por instinto. Sabia sair-me dos postes e lançar a bola para lá do meio-campo. Sabia lançar-me às bolas rasteiras e a meia altura, mas tinha o meu estilo. Ninguém me ensinou, aprendi no futebol de rua. Quando digo ninguém, é ninguém do futebol. O meu pai educou-me nesse campo, com exercícios específicos. Dos 14 aos 15 anos, cresci 14 centímetros. Mais adulto, também aprendi muito com os outros guarda-redes, de vê-los a treinar e no aquecimento. E tomava notas. Eu e o Beskov [referência incontornável do futebol da URSS, como seleccionador de Yashin e então treinador do Spartak]. O Schumacher foi o que mais me ensinou, os seus treinos eram muito físicos.

Qual era a sua especialidade?
Lançar ataques com a mão. Simplesmente escolhia o alvo e atirava a bola o mais depressa possível. Sempre. Sem demoras. Agora o futebol mudou muito e os guarda-redes também.

Então?
Agora atiram-se mais para o chão e perdem tempo. Na minha altura, era apanhar a bola e lançá-la no imediato.

Foi isso que convenceu o Sevilha a contratá-lo?
Boa pergunta. Era uma imagem de marca, os meus lançamentos para lá do meio-campo.

Qual a diferença entre Moscovo e Sevilha em 1988?
As diferenças sociais e culturais foram brutais.

Saiu do Spartak porquê?
Saí por razões económicas e financeiras. Fui ganhar seis mil francos. Ganhei mais experiência. Desportiva e, sobretudo, pessoal. Ainda hoje vou a Espanha uma vez por ano.

Assinou por quantos anos?
Três.

Era quase um alien quando aterrou em Sevilha, não?
Já havia movimentações de outros soviéticos, como Zavarov e Aleinikov na Juventus, por exemplo. Ou Mikhailichenko na Sampdoria. Mas sim, aterrei e foi uma movida.

Também carregava o nome Dasaev
Ya, ya. Fui eleito o melhor guarda-redes do mundo nesse ano de 1988.

Dois anos depois, só fez um jogo no Mundial-90.
Perdemos 2-0 com a Roménia.

E depois?
O Lobanovski mudou-se para o Uvanov.

Ah foi? Pensava que tinha sido o Chanov.
Esse era o suplente do Uvanov. Eu já nem fui para o banco com a Argentina e os Camarões.

Porquê?
Mister Lobanovski, tens de lhe perguntar.

E você, perguntou-lhe?
Perguntar-lhe? Ao Lobanovski? Noooooo. Foi um homem avançado para o seu tempo e não lhe guardo qualquer rancor. Ele decidiu mudar e basta-me aceitar. Tão simples quanto isso. O Lobanovski era um visionário. Era sério, sim, mas era um visionário e empurrou-nos para a frente. Era como um pai para nós. O Belanov, por exemplo, tinha um cão chamado Lobanovski.

O Belanov, Bola de Ouro em 1986?
O Belanov que me marcou dois golos num Dínamo Kiev-Spartak Moscovo e foi logo chamado por Lobaonski para a seleção.

Como eram os treinos?
Corridas na floresta e muita bola no campo. Éramos muito fortes.

Porquê então a ausência no Euro-84?
Fomos mal eliminados por Portugal, tal como naquele jogo com a Bélgica no Mundial-86. Há dias em que nem tudo corre bem. Bastava-nos um empate em Lisboa e fomos perder com um penálti.

Jordão.
Lembro-me, claro. Ele nunca tirou os olhos da bola: determinado, remate colocado. Enganou-me. Nada a dizer, Portugal chegou às meias-finais desse Europeu. Antes, na qualificação, 5-0 aqui em Moscovo.

No Euro seguinte, o de 1988, a URSS foi o auge. Futuro de 2000, diziam.
Houve jogos incríveis, como o 3-1 à Inglaterra do Robson. E o 2-0 à Itália. Por acaso, também faço aí uma defesa boa.

Boa?
Ya, ya. Remate do Giannini. Ainda havia 0-0.

Acabou 2-0.
Mira, jogámos sem o Belanov. Estava tocado e o Lobanovski preferiu poupá-lo para a final.

Era assim, poupá-lo para a final?
Sabíamos que a Itália tinha um futebol rico, talentoso, muito latino. Mas nós éramos realmente fortes. Potentes, digo. Nessa noite, que jogo glorioso. Dominámos sempre, uns 70 por cento de posse de bola [68, na verdade].

E você lá atrás a ver tudo
Ya, ya. Já chega para ti?

Só mais esta: se voltasse atrás, o que faria
Não sofria aquele golo do meio-campo no 12-1. E assinava pela Juventus.

Como?
A Juventus quis assinar comigo, só que a oferta do Sevilha era melhor.

A Juventus, Juventus? De Itália?
Ya, ya. Eles queriam três da URSS: eu, Zavarov e Aleinikov. Adiós.

Adiós.