Rui Miguel Tovar está no Maisfutebol com a rubrica LOAD " " ENTER. Para ler todas as semanas e saborear conversas por vezes improváveis com as principais figuras do futebol. Já sabe, basta escrever LOAD " " ENTER para entrar neste mundo maravilhoso de Rui Miguel Tovar. 

Taça Africana das Nações. Hoje e sempre. Vá, só até à final de 19 Julho. Na sequência de Keita e Madjer, apresentamos Hassan Nader. Ao contrário dos outros dois, nunca ganha a Bola de Ouro de África. Ao contrário dos outros dois, é melhor marcador do campeonato português (e pelo Farense, em 1994-95). Craque do além. Até das palavras.

Hassan, bom dia?

Bom dia, estás bom? (num português faz favor) Lembraste-te de mim, porquê?

Estive com o Tahar no outro dia e falámos de ti.

Olha, obrigado. Bem ou mal?

Ahahahahah, bem, sempre bem.

Ah bom, obrigado.

Estás onde?

Agora, agora? Casablanca.

Nasceste aí, não foi?

Nasci e cresci aqui, sim.

E como é que vais parar a Espanha?

Não é muito comum, na verdade. A maior parte dos marroquinos emigram para França. Só saí daqui para o Maiorca a convite do Zaki, lembras-te?

O guarda-redes de Marrocos no Mundial-86? Como esquecê-lo?

Ahahahahah, bom guarda-redes e boa gente. Ele era o titular do Maiorca, até chegou a capitão e tudo. Convidou-me. Quer dizer, falou de mim ao Maiorca e o negócio foi feito.

O que é que tinhas feito no WAC?

Tinha ganho dois campeonatos marroquinos, uma Taça do Rei e outra Taça Árabe, numa final com o Al Ahli da Arábia Saudita.

E a título pessoal?

Três vezes melhor marcador do campeonato.

Sempre foste avançado?

Desde pequeno. Aqui o futebol sempre foi um desporto popular, então jogávamos de manhã até à noite, antes, durante e depois da escola. Quer dizer, eu tinha de chegar a casa antes do meu pai.

Então?

Outros tempos. Naquela altura, era difícil um pai deixar o filho jogar futebol. E o meu pai, pura e simplesmente, não me deixava jogar. Por isso, tinha de chegar a casa antes do meu pai para ele não perceber as minhas actividades extra-curriculares.

Ahahahahah. E como é que deste a volta ao assunto?

Comecei a jogar numa equipa do bairro e fui marcando golos, golos e mais golos. Às tantas, tornei-me famoso no bairro. O meu pai ouviu falar do seu filho e interessou-se pelo fenómeno. Ahahahahah. Um dia, levou-me ao WAC Casablanca para treinos de captação.

Maravilha.

Nem tanto. O meu pai morreu pouco tempo depois e quase desisti do sonho do futebol. Fiquei só a jogar na equipa do bairro, embora houvesse gente que me quisesse levar para o WAC e outros dois clubes daqui.

E tu nem assim?

Nem assim, só queria o futebol de bairro. Até que aos 16/17 anos, lá aceitei voltar ao WAC Casablanca. Na primeira semana, treinei com os juniores B. Na estreia oficial, com o estádio cheio, marquei dois golos. Claro, comecei a gostar daquela envolvência. Meio ano depois, já estava a treinar com os juniores A. Marquei 36 golos.

Uauuuuu. E a equipa sénior?

Na primeira época, só fiz oito golos.

E depois?

Melhorei, muito. E dei o salto para o Maiorca.

Já conhecias alguma coisa do futebol espanhol?

A televisão marroquina dava o campeonato espanhol, um jogo por fim-de-semana. Também dava do alemão e inglês.

E tu gostavas de ver?

Claaaaaaro. Era fã do Rush, do Liverpool. Também gostava do Bayern, Benfica, Real Madrid e Flamengo. Pancadas, já sabes, não é?

E o Mundial-86, viste onde?

Aqui em Casablanca.

Mas já eras jogador?

Já, pois.

Hassan com a camisola do Benfica

E não foste convocado?

Não fui, só foram dois jogadores por equipa de Marrocos e eu não fui um dos contemplados do WAC. Também foram estrangeiros, óbvio.

Como quem?

Bouderbala [Sion] e Krimau [Le Havre].

Viste Marrocos-Portugal?

Claro que sim, ganhámos 3-1. Fomos a primeira selecção africana e árabe a passar a fase de grupos de um Mundial. E os jogadores foram bem recebidos pelo Rei Hassan II no Estádio Mohammed V. Estava cheio, cheio, cheio. Heróis naquele dia e para sempre.

E como era a tua vida em Maiorca?

Hábitos diferentes. Se ainda agora é assim, imaginas há 30 anos? Ahahahahah. Os jornalistas batiam muito nos jogadores e tive de superar as críticas iniciais, próprias de quem me desconhecia. Também contei com a ajuda do Zaki e ainda de um dicionário. Tive de aprender a falar espanhol para me fazer compreender e assim afastar algum do cepticismo à minha volta. Que o mundo da bola não é só golos e boas exibições.

Na primeira época, o Maiorca chega à final da Taça do Rei?

Foi, foi. Marquei três golos, um deles apurou-nos para as meias-finais.

Perderam com quem?

Atlético Madrid.

Uyyyyyy, com Futre?

Futre a capitão.

E que tal?

Era dos melhores do mundo porque driblava em movimento. Ainda me lembro bem do apoio frenético dos adeptos do Atlético, atrás de uma das balizas: Paaaaaaaaulo Paaaaaaaaaaulo. Só viam Futre à frente.

E porque é que foste para o Farense?

Antes, tive uma oferta do Boca Juniors. Um vizinho meu era argentino e dono de uma pizzaria. Tinha ligações com o Boca e dizia-me 'vais ser o primeiro jogador de cor a jogar no Boca'.

Eiscchhhh, isso era espectacular.

Era, mas também era muito longe. Início dos anos 90, estás a ver? Não, não, recusei.

E foste para o Farense?

Já conhecia Portugal através do WAC, sabes? Fui jogar ao Bonfim, com o Vitória, e ainda visitei a Madeira pela selecção marroquina. Nessa viagem pelo WAC, fomos ao Estádio da Luz e tirei uma fotografia debaixo da águia, ahahahah. Quando entrámos no relvado, disse a um amigo meu 'imaginas-me a jogar aqui com o estádio cheio?' e ele 'nunca se sabe'. Há coisas incríveis.

A verdade é que tudo bateu certo.

Sim, é verdade. Em Faro, experimentei algumas dificuldades com a língua. Até me chamavam o espanhol, ahahahah. Queria tanto falar português que misturava um pouco de francês com espanhol, ahahahah.

Tens jogos guardados na memória?

Muitos. Uns bons e uns maus.

Como, por exemplo?

Olha, um Farense-Porto em que fui expulso. Mal começou o jogo, vi um amarelo. Depois há um penálti claro do Aloísio e o árbitro dá-me outro amarelo.

E o título de melhor marcador?

Vinte e um golos, à frente do Domingos, do Porto, e Marcelo, do Tirsense.

Nunca tiveste propostas além da do Benfica?

O Sporting foi o primeiro clube a interessar-se por mim. Na véspera de um Farense-Sporting, visitei o hotel do Sporting para dar um abraço do Naybet e o Queiroz manifestou-me interesse. Só me pediu para esperar um pouco. Nesse entretanto, veio o Porto. Só que acabei por assinar pelo Benfica. Estava no fim de contrato com o Farense e renovei. Assim, dava dinheiro a ganhar ao Farense.

Isso foi na ressaca do Mundial-98. Grande golo à Holanda.

Ahahahah, obrigado. Foi um golo à portuguesa: abertura do Tahar para a direita e o Hadji meteu a quinta antes de cruzar rasteiro. Tac tac tac, eu encostei.

E o Benfica?

Benfica é Benfica. Sabia o que era um clube grande, já tinha estado no WAC. Tinha os meus planos: ganhar o campeonato português e revalidar o título de melhor marcador.

O que falhou?

Na primeira época, o primeiro adversário foi uma lesão: inflamação da cartilagem e fiquei afastado cinco meses dos relvados. Na segunda época, tive problemas com o Autuori e os golos do Donizete também complicaram.

Voltaste ao Farense?

E bem, gostei do regresso. O problema foi aquele golpe administrativo duro. Nunca esperava que o Farense chegasse aquele ponto, vítima de má gestão. Mesmo assim, guardo logicamente o melhor do Farense. Ainda por cima, fui homenageado na despedida, com a presença da federação portuguesa e ainda da câmara de Faro, que me entregou uma medalha de ouro por mérito desportivo. Inesquecível, esse dia e os outros todos. Com o Farense, vivi tudo: qualificação inédita para a Europa, descida de divisão e título de melhor marcador. Tudo com o apoio dos adeptos do Farense, que ainda hoje continuam a ir aos jogos em grande número.

Deves ter apanhado centrais bem duros, não?

De duros, Jorge Costa, Aloísio e Mozer.

Vocês, do Farense, tinham o Paixão?

Ahahahah, o bicho. Também havia Luisão e Miguel Serôdio. Não facilitavam, nem nos treinos. O que sofri com eles, nem imaginas. Mas eu também não facilitava com a minha raça.

Por falar em raça, e o Paco Fortes?

Paco, grande Paco. Uma história engraçada com ele, antes de um jogo com o Beira-Mar em Aveiro, para o campeonato. O meu filho ia nascer a um sábado e o Farense ia para cima nesse dia. Disse ao Paco que só ia depois do nascimento do meu filho. E o Paco a espumar da boca, louco pela minha intrasigência. 'Vocês, marroquinos, são todos doidos varridos'. Ahahahahahah.

E então?

O Farense foi para Aveiro sem mim e o meu filho nasceu às 15h25. Vi-o e só segui caminho depois. Cheguei à meia-noite a Aveiro e joguei a titular no dia seguinte. Marquei um golo e tudo, ahahahahah.

Mais um para a colecção.

O guarda-redes mais engraçado para marcar golos era o Preud'homme. Passava-se completamente. Ouvia-o lá ao longe a dizer 'marroquino de merda'. Era só rir. O Preud'homme, ahahahahah, gente boa.

E o Farense, em matéria de guarda-redes?

Todos bons. O Rufai era um espectáculo, depois houve Lemajic e Mauro Aurélio. Grandes, grandes.

E o teu filho joga cá em Portugal?

Um deles joga, no Olhanense. Agora está aqui ao meu lado a abanar a cabeça. Diz que falo mal português. Já viste a minha sorte?