Rui Miguel Tovar está no Maisfutebol com a rubrica LOAD " " ENTER. Para ler todas as semanas e saborear conversas por vezes improváveis com as principais figuras do futebol. Já sabe, basta escrever LOAD " " ENTER para entrar neste mundo maravilhoso de Rui Miguel Tovar.

O Algarve esconde alguns segredos. Como almaradona, o twitteiro mais assertivo/cómico do mundo e arredores. Como o Olhanense de Vasco Faísca, a equipa portuguesa mais goleadora da época 2019-20. Como o peixe frito com favas no café Atalaia, nas traseiras do Estádio José Arcanjo. Como Peter Star, a estrela maior de um fim de tarde em Olhão. O alfa abala de Faro para Lisboa daí a 45 minutos, a entrevista é em tempo recorde.

Lembro-me bem de si a marcar aquele golo em Alvalade.

Ahahahah, isso deu cá uma confusão.

Então?

O Braga já não ganhava em Alvalade há 12 anos. Nessa tarde, 1-0. Marcámos perto do fim. Era o Sporting do Carlos Queiroz, com Costinha, Oceano, Vidigal, Sá Pinto, Paulo Alves, Amunike. Quando acabou o jogo, o pessoal todo atirou-se ao Queiroz. Nas bancadas, quero dizer. Um ambiente mau, mau, mau para o Sporting. Devia estar a passar por uma fase daquelas [terceira derrota consecutiva].

Lembra-se do golo?

Claro que sim: jogada do Karolgan pela direita e eu só encostei, com a baliza aberta. Estava o campo todo enlameado. Mas todo mesmo. E havia poças gigantes de água. Anos 90, está a ver? Ahahahah. Isso está tudo no youtube, é ver para crer.

VÍDEO: o golo de Pedro Estrela em Alvalade (imagens RTP)

Já tinha jogado com o Sporting em Alvalade?

Eu joguei no Sporting.

Hein?

Um mês. Saí daqui de Olhão, do Marítimo Olhanense, para o Sporting. Fiquei lá um mês e voltei. Aquilo era difícil. Mais ainda para um gajo saído aqui da terrinha para chegar à capital. Era tramado.

Imagino. Esse Sporting tinha quem?

No meu quarto, Cadete, que é bom rapaz, e o Mário Fonseca, depois guarda-redes do Estoril. A equipa tinha Figo, Peixe, Paulo Torres, João Oliveira Pinto. Ahahahah, só personagens. O Peixe, se não me engano, também abandonou o Sporting para voktar à Nazaré. Saudades de casa. Só que ele voltou.

E o Pedro?

Quiseram que eu voltasse, mas o meu pai já não me deixou.

E aquele mês, que tal?

Ainda vi um jogo europeu em Alvalade, não me lembro bem com quem. Jogava lá o Negrete, isso lembro-me bem.

E os treinadores das camadas jovens?

No primeiro dia, o João Barnabé. Daí em diante, foi o irmão do Aurélio Pereira, o Carlos. Grande treinador, grande homem.

Voltou para Olhão e depois?

Assinei pelo Benfica.

Quêêêê?

Ahahahah, isso mesmo. Tinha uns 14 anos, assinei por duas épocas com o Peres Bandeira, chefe de departamento do Benfica.

E?

Nem sequer fui a Lisboa.

Quêêêê?

O meu pai escreveu-lhes uma carta a dizer que não havia condições de ir. As oportunidades que se perdem, já viu?

Duas oportunidades.

Pois, acontece.

Ficou por cá?

Olhanense, juniores e seniores.

Em que divisão?

Quatro anos na 2.ª B, uma na Honra. Joguei com o Rio Ave do Paulinho Santos, Bino e Rui Jorge. Já os conhecia de ginjeira quando os apanhei novamente no Porto.

E depois?

Fui para o Braga. No primeiro treino, ninguém me passou a bola. Tranquilo, sei bem como funciona o mundo do futebol. O treinador Manuel Cajuda levou-me a almoçar e perguntou-me o que eu tinha achado. Disse-lhe que estava lá para jogar e não para correr.

Ouchhh.

Ahahahah. O Cajuda começou a ver a sua vida a andar para trás. Ahahahah.

E esse Braga?

A lutar para não descer à 2.ª divisão. O presidente era o Nuno Cunha, um homem forte de bigode, construtor. Depois apareceu o João Gomes de Oliveira. O Braga daquele tempo estava lá por baixo e a maior parte da população era do Benfica. Agora tudo mudou. O clube cresceu e a própria cidade também. Vejo que os bracarenses são mais braguistas. No meu tempo, havia jogadores bons, muito bons.

Como quem?

Artur Jorge, um central rijo pá. Karoglan, craque, bom de bola. Esteve perto de assinar pelo Porto, só que já tinha passado os 30 anos e a transferência foi adiada. Quem foi para o Porto acabou por ser o Barroso. Mais o guarda-redes Rui Correia.

E a rivalidade com o Vitória, que tal?

Eischhhhh, Guimarães era do pior. Ahahahah, aquela malta era tramada. Uma vez, atiraram-me uma pedra que passou a centímetros da minha cabeça. Estava a andar ao lado do massagista José Mário. Isso foi já depois do jogo. Mas como é que uma pedra da calçada entra num estádio?

...

Outra: fazia-se a Taça Amizade entre Braga e Vitória. Um dia, fomos lá ganhar. Acabou-se a Taça Amizade, ahahahah. Fala-se aqui do Farense-Olhanense. Aquilo no Minho é que é barra brava. Aliás, em períodos mais quentes e de resultados desfavoráveis, havia jogadores do Vitória que saíam de Guimarães para viver em Esposende. Era assim, tramado. Mais uma: última jornada do campeonato, acho 1996-97, e empatámos 0-0 em Guimarães. Ao mesmo tempo, o Salgueiros jogava em Faro, no São Luís. Se o Salgueiros ganhasse, ultrapassava o Vitória e ia à Europa. Nos descontos, penálti para o Salgueiros. Sobe o Abílio e falha o golo. Acabou 1-1 e o Vitória vai à UEFA. Foi uma alegria imensa.

Quando jogava no Braga, o Pedro vinha a Olhão?

Às vezes, de dois em dois meses.

Como?

Táxi.

Táxi?

Não havia outa hipótese. As pessoas falam do avião, mas já viu o que era ir de Faro-Lisboa, Lisboa-Porto e ainda Porto-Braga de carro? Para quê? Táxi é mais prático.

Quanto era?

300 euros, uns 60 contos.

Pagava em dinheiro?

Claro.

E o taxista?

Às vezes, ficava em Olhão. Rodávamos juntos o país, ahahahah.

Como é que fazia?

Acabava o jogo no domingo à tarde e apanhava logo o táxi, que já era de um amigo. Íamos por Vila Franca, umas seis horas de caminho. Chegava de madrugada, dormia e aproveitava a folga em Olhão.

No dia seguinte?

Ia de madrugada e chegava a tempo do treino da tarde, ahahahah. Era um esticão, claro.

E os Carnavais em Olhão, falaram-me aí de umas histórias.

Ahahahahahah, só aconteceu uma coisa bizarra, com o Mário Wilson.

Conte lá.

Foi uma brincadeira de Carnaval. Uns amigos meus pegaram nuns burros e andámos pela cidade durante a noite. De manhã, amarrei o burro ao pé do balneário e queria ir treinar. O Mário Wilson impediu-me, só lá voltei no dia seguinte. Ahahahah. Sem o burro, claro.

Quais são as suas memórias em Olhão?

Desde pequeno? A ver alguns adversários míticos no Estádio Padinha, como o Barreirense. Na baliza, o Neno. E também ia a Faro para ver o Farense do Paco Fortes. Vi o Benfica do Bento, Pietra, Shéu, Carlos Manuel, Diamantino, Magnusson. Esses jogavam à bola.

É do Benfica?

Só o admiti publicamente aos 26 anos, quando jogava no Braga. Ahahahah. Um dia, ganhei 3-2 na Luz. Era o Belenenses de Wilson, Filgueira, Marco Aurélio, Rui Gregório, Tuck. Saí com 2-0 para nós, até fiz uma assistência e tudo. Eles empataram 2-2 e nós fizemos o 3-2 pelo Rui Gregório. Foi nesse jogo que o Belenenses conseguiu a manutenção e o Porto foi campeão.

E mais e mais?

Assim de tardes engraçadas, lembro-me de um Braga-Campomaiorense em que passei os três dias anteriores sem sair de casa, doente, cheio de febre. Treinei 10 minutos, entrei como suplente e marquei o golo da vitória. Acabou 1-0. O Campomaiorense era treinado pelo Manuel Fernandes, com quem me cruzei no Santa Clara no ano em que fomos campeões da 2.ª divisão em 2001.

Mais uma experiência na 2.ª?

Também joguei na 2.ª pelo Belenenses. Ficámos em segundo lugar, atrás do Gil Vicente. E subimos, claro. Aliás, o 3-2 na Luz é no ano seguinte a essa época na 2.ª.

Grandes jogatanas.

Podia ter mais para contar, só que desanimei.

Então porquê?

No ano em que o Braga garante a Taça UEFA, resolvi sair. Sabe para onde ia?

Nem idea.

Racing, em Santander.

O que falhou?

Foi para lá o Porfírio.

Então?

O meu empresário era o Jorge Mendes.

O Jorge Mendes?

O. Esse mesmo. Assinei com ele no Porto, lembro-me como se fosse hoje. Naquele tempo, o Braga enviava-me cartas diariamente para renovar e o Jorge Mendes dizia-me para não renovar, que ia ter um clube para mim. Sabe onde fui parar?

Não.

Leça, treinado pelo Rodolfo Reis, depois Vítor Manuel. Jogavam lá Zé da Rocha, Constantino, Alfaia, Serifo. Apanhei o Ricardo Carvalho, ainda júnior. Bom rapaz, craque.

Do Braga para o Leça?

É a vida. O contrato era igual ao do Braga, mas queria mesmo era jogar em Espanha. Se fizesse dois anos no Racing, resolvia o meu futuro. Mesmo assim, futebolisticamente falando, conseguimos manter o Leça na 1.ª divisão.

E agora, o futebol?

Pelo que vejo, é diferente, tanto a vida dos jogadores como a dos clubes. Está tudo muito formatado, quase todos jogam o mesmo jogo, sem diferenças. No aspecto humano, a malta fica lá dentro do balneário uns dez minutos e depois sai de cena até ao dia seguinte. Antes, ficávamos no balneário a falar, falar e falar, organizávamos almoços, jantares. Havia mais convívio.