Rui Miguel Tovar está no Maisfutebol com a rubrica LOAD " " ENTER. Para ler todas as semanas e saborear conversas por vezes improváveis com as principais figuras do futebol. Já sabe, basta escrever LOAD " " ENTER para entrar neste mundo maravilhoso de Rui Miguel Tovar.

Tanti auguri a te, tanti auguri a te, tanti auguri a Milan, tanti auguri a te
. Parabéns a você, Milan. 120 anos de vida é muito jogo. A galeria de jogadores de indiscutível classe é ilimitada, como os bolas de ouro Rivera, Gullit, Van Basten, Weah, Shevchenko e Kaká. Também há os portugueses campeões italianos Futre e Rui Costa. Também há os treinadores Rocco, Trapattoni, Sacchi, Capello e Ancelotti. Também há o presidente Silvio ‘Caimão’ Berlusconi. Enfim, há de tudo e mais alguma coisa, com infinitos onzes ideais na história de um clube mais famoso por levantar Taças dos Campeões (sete). Num desses onzes, entrará certamente um avançado brasileiro chamado José João Altafini (na foto de capa com Amarildo), também conhecido como Mazzola pela semelhança física com o italiano Valentino Mazzola, tragicamente desaparecido no acidente do Grande Torino na colina de Superga, na ressaca de um jogo de homenagem ao benfiquista Francisco Ferreira no Jamor, em Maio 1949. Em dia de tanti auguri a Milan (que é como quem diz, todos os dias do ano), apanhámo-lo animado.

Pronto [à italiana].

Bom dia, é o Altafini?

Eu mesmo. De onde falas?

Portugal, Lisboa.

Ah boa, boa. Tudo bem por aí?

Tudo fino. E aí?

Tudo bem, obrigado.

Está onde, já agora?

Itália, Turim.

Sempre Itália, não é? Gosta mesmo disso, embora tivesse nascido no Brasil.

Itália é Itália. Estabeleci-me aqui bem cedo e gostei. Vivo com prazer. Adoptei Itália como minha pátria. Como te chamas mesmo?

Rui.

Então é assim ò Rui: cheguei cá aos 20 anos, do Palmeiras para o Milan, e depois nunca mais quis outra coisa.

Que tal o Palmeiras?

A história é simples: jogava no Estrela de Piracicaba, cidade onde nasci. Aos 16 anos, viram-me jogar e contrataram-me para o Palmeiras. Vivia dentro do estádio, sem renumeração. Pagavam-me alimentação e alojamento. Tudo correu bem desde o início e o Palmeiras foi campeão brasileiro em juniores.

Em que ano?

Isso é 1956. Subi rapidinho para sénior e daí para o Milan.

Assim, fácil?

Em 1958, o Palmeiras tinha uma proposta da Roma mas o Milan apareceu à última hora com mais dinheiro. O Milan bateu a nota e o Palmeiras liberou-me. Sabes o que fizeram com o dinheiro da transferência?

Nem ideia.

Contrataram 22 jogadores. E dos bons. De selecção. O Djalma Santos e o Julinho, por exemplo. Com esses craques, o Palmeiras foi campeão em cima do Santos do Pelé, em 1959. Ainda à conta do dinheiro da minha transferência, o Palmeiras construiu um ginásio ao lado do [estádio] Parque Antárctica.

E não era invulgar um brasileiro sair para o estrangeiro?

Não era frequente, de facto, mas acontece que o Brasil tinha sido campeão mundial em 1958 e eu estava lá. Adivinha a minha idade.

Não faço ideia.

19.

Só?

Dezanove. Comecei esse Mundial na Suécia como titular porque o Pelé estava machucado.

Uauuuu.

Na estreia, com a Áustria, marquei dois golos, o primeiro e o último na vitória por 3-0. Depois, joguei com a Inglaterra no primeiro 0-0 em Copas do Mundo.

O primeiro golo de Altafini (atrás do defesa da Áustria) no Mundial de 58

E?

O Pelé recuperou e eu saí no jogo com a URSS. Como ganhámos 2-0, passámos aos quartos-de-final. Aí, com Gales, voltei a jogar. Um-zero, por Pelé. Fiz um belo golo de bicicleta anulado pelo árbitro.

Só faltam as meias-finais e a final.

Que não joguei. O Vavá recuperou e o Feola [seleccionador] meteu-o a titular, mas fomos campeões do mundo pela primeira vez. Iniciámos uma conquista que continua a dar que falar. É um marco histórico do Brasil.

E o Mundial seguinte, em 1962?

Também joguei. Pela Itália.

Espectáculo.

Vou explicar-te: naquele tempo, o Brasil não convocava quem jogava no estrangeiro. Tanto assim é que o Julinho, o tal Julinho contratado para o Palmeiras com o dinheiro da minha transferência para o Milan, não foi ao Mundial-58 e ele seria titular de caras naquela equipa. Ele fazia e desfazia na Fiorentina. Foi campeão italiano em 1956 e era um craque como poucos. Mas estava em Itália e o Brasil não o convocou. Aconteceu o mesmo comigo em 1962. Jogava no Milan e não ia à selecção brasileira por estar longe. Bem, tinha 24 anos e queria jogar outro Mundial, como é lógico. Ainda por cima, o Milan tinha sido campeão nacional e eu tinha sido o melhor marcador do campeonato italiano. Não podia faltar ao Mundial, vero?

Pois, isso é que não.

Mas foi um Mundial em que saiu tudo errado e fomos eliminados ainda na fase de grupos.

Altafini (à direita)  no funeral do amigo Fachetti em 2006

Porquê?

Em parte, grande parte, porque os jornalistas italianos começaram a escrever que um Mundial no Chile nunca podia dar certo, porque era um país pobre e de prostitutas. Agora imagina só: Chile-Itália na fase de grupos no Estádio Nacional em Santiago. Aquilo não se jogou futebol. Foi pancada todo o tempo. Perdemos 2-0.

E jogou mais Mundiais?

Só esses dois, o de 1958 e o 1962.

No ano seguinte, em 1963, é campeão europeu.

Foi uma aventura e tanto. O Real Madrid tinha ganho as cinco primeiras Taças dos Campeões, depois o Benfica ganhou duas. A oitava edição foi do Milan, que tinha uma equipa digna.

O Altafini fez 14 golos nessa edição. Um recorde até Messi em 2012.

Não vá por aí. São duas competições diferentes. Repare, fiz 14 em 1963 na Taça dos Campeões, ele fez 14 em 2012 na Liga dos Campeões. Eu fiz nove jogos, ele muito mais. É incomparável. Não digo melhor ou pior, é diferente.

Como fazemos então?

Assim: eu sou o melhor marcador de uma época na Taça dos Campeões e os outros da Liga dos Campeões. Ninguém sai amuado.

E os seus golos ao Benfica na final de Wembley?

Ao meu grande amigo Costa Pereira. Foi o primeiro guarda-redes que vi a jogar de cabeça fora da área. Era destemido.

Amigo? De onde?

A minha estreia pela selecção brasileira foi com Portugal, em São Paulo [16 Junho 1957]. Entrei na segunda parte e marquei o 2-0: cruzamento do Garrincha e mergulhei de cabeça, rente ao chão. O guarda-redes era Costa Pereira. Sete anos depois, Milan-Benfica na final da Taça dos Campeões e eu dois golos ao Costa Pereira, o 1-1 e o 2-1 definitivo. Foi um dia glorioso.

Menos para Coluna.

Ahhh, pobre Coluna. Sofreu com uma entrada do Pivatelli e ficou coxo. Como não havia substituições, o Benfica jogou com dez a maior parte do tempo.

Pivatelli em cima do Coluna?

A táctica inicial pensada pelo nosso treinador Nereo Rocco foi jogar com o Benítez, um central peruano, em cima do Eusébio. Como o Benítez não conseguiu dar conta, o Rocco meteu o Trapattoni a cobrir o Eusébio. O Trapattoni era um médio espantoso. Jogava sempre na antecipação, sem recorrer à falta. E sim, o Pivatelli em cima do Coluna. Às tantas, o Pivatelli tem aquele lance com o Coluna, o Benfica fica reduzido a dez, o Trapattoni ocupa-se do Eusébio e nós saímos por cima. Marquei dois golos em que a defesa do Benfica também colaborou. Sabe a maior tristeza dessa final?

Qual?

Bem, marquei dois golos, mas a camisola e os calções desapareceram num instante com a invasão dos adeptos. Das meias e das chuteiras, nem sei.

Sempre tem as imagens de televisão para recordar.

Até nem são muitas. Agora carregamos num botão e gravamos tudo. Naquele tempo, custavam os jogos passar em directo na televisão.

Também chegou a uma final europeia com a Juventus.

Era o tempo do Ajax do Cruijff [1973], superior. Estamos a falar de uma época do futebol poesia.

Altafini jogou na Juventus de 1972 a 1976

Ai é?

Sim, claro. Os anos 60 e 70 viveram-se com muita intensidade, os jogadores pensavam mais na bola do que em dinheiro. Defino esse tempo como o futebol-poesia.

Era mesmo poético, até para um avançado?

Sei onde queres chegar e tem piada porque ainda falava disso a um amigo meu no outro dia: ao longo da carreira, coleccionei 48 pontos na cabeça. Um dia, numa jornada europeia com o Dínamo Bucareste, um defesa abriu-me a testa e saturaram-me com 14 pontos. E ainda diziam que fugia ao contacto físico.

Ai era, isso já não sabia.

Dizia-se isso e a verdade é que se quase sempre fui de evitar o contacto físico. Para quê? Prefiro estar a 100% do que a 70 ou 80, não é? Diziam o mesmo do Paolo Rossi e, olha, ele meteu seis golos nos últimos quatro jogos do Mundial-82. Agora, uma coisa é certa: às vezes, desaparecia do jogo. Do jogo todo. Eclipse total. Porque sim, porque os defesas cobriram-me bem. Quando acordava, uma semana depois, marcava. A minha média na Serie A é boa, orgulho-me dela. E mesmo a jogar, tenho um registo curioso: ainda hoje sou o segundo não-italiano com mais jogos na Serie A, só atrás do Zanetti.

Jogou quantos anos na Serie A?

Uns 18: sete no Milan, sete no Nápoles e quatro na Juventus.

Que tal?

Uma vez, acabámos em segundo lugar. E fomos sempre à UEFA. Foram tempos interessantes.

Dezoito anos é muito. Acabou com que idade?

Acabei aos 41 anos.

A sério?

Na Suíça. Saí de Itália aos 37 e fui subir o Chiasso à 1.ª divisão suíça.

Maravilha. E nunca lhe passou pela cabeça continuar a carreira como treinador?

Baaaah, nem por isso. É dos lugares mais ingratos no futebol. Andei muito no futebol para saber que lidar com 20 cabeças é preciso uma paciência infinita.

É dos lugares mais ingratos. Quais são os outros?

Digo-te só mais um: guarda-redes. Já reparaste que a relva nem cresce direito na área da baliza? A culpa é de quem? Insisto: guarda-redes é uma posição único e tramada. Nunca à baliza, só ao ataque.

Obrigado Altafini, não lhe roubo mais tempo.

Obrigado eu.

Abraço, Coniglio. É assim?

Ahahahah. Coniglio, sabes o que é? O animal. Coelho.

Ahhhh, faz sentido. Porquê coniglio?

A primeira vez que ouvi foi durante a transmissão radiofónica do Santos-Milan para a Taça Intercontinental. Procura aí o nome do jornalista: Nicolò, com acento grave no último ó, Carosio. Como o Santos jogou a mil, com muita agressividade, eu fiquei fora dessa batalha, plantado entre os centrais do Santos, longe do foco da dureza. Das poucas vezes que a bola foi lá à frente, eu corria sozinho. Dessas vezes, o Nicolò disse que parecia um coniglio. Gipo Viani, o director-desportivo do Milan nesse tempo, estava a escutar o relato em Milão e ouviu que perdemos por culpa nossa. Mal cheguei a Milão, foi coniglio para aqui e para ali. Ficou.

Boa boa. Mil obrigados, Altafini.