Rui Miguel Tovar está no Maisfutebol com a rubrica LOAD "" ENTER. Para ler todas as semanas e saborear conversas por vezes improváveis com as principais figuras do futebol. Já sabe, basta escrever LOAD "" ENTER para entrar neste mundo maravilhoso de Rui Miguel Tovar. 

África, África mãe. Casa, casa lar. Lar, conforto. Conforto, batuques. Batuques, selva. Selva, Jingabé. Jingabé, África, África mãe. O estilo inconfundível de Carlos Pinto Coelho, caricaturado por Herman José como Carlos Filinto Botelho no saudoso «Tal Canal», preenche-nos alegremente a memória.

Impossível não esboçar um sorriso com esses telejornais ficcionais dos anos 80. Até porque estamos presos nessa temática, com o arranque da Taça Africana das Nações. Vai daí, o primeiro ilustre convidado é Salif Keita.

Craque da cabeça aos pés, é o primeiro Bola de Ouro de África (1970) antes de aterrar em Portugal para se tornar o primeiro capitão estrangeiro do Sporting. A ideia de entrevistá-lo já vem de longe, muito longe. Mais ou menos desde maio 2009, quando o seu sobrinho Seydou Keita chega à final da Liga dos Campeões, pelo Barcelona.

Daí para cá, uma série de tentativas. Umas desesperadas, outras muuuito desesperadas. Até que se faz luz. Quem é o outro 9 do Sporting na era do Keita? Manuel Fernandes. Um whatsapp para aqui, outro para ali e já está. No dia seguinte, Keita está connosco ao vivo e a cores desde Bamako, capital do Mali.

Salif? (com sotaque francês, ah pois ééééééé)
Oui, c’est moi.

Parle ici Rui Miguel Tovar, journaliste portugais. Ça va bien? (ainda o francês macarrónico)
Bien bien, et toi?

(baaaaaaah, lá se vão os três anos de francês prò galheiro)
Et toi?

Bien bien, merci. Pouvez-vous poser quelques questions? (sem patinar uma única vez)
Bien sûr.

Comment êtes-vous arrivé au Portugal? (a dar tudo no google translator)
Queres saber como cheguei a Portugal?

Hein?
Queres saber como cheguei a Portugal?

Fala português?
Um petit peu. E castelhano, também um pouco.

Essa é boa, eu aqui a esforçar-me com o francês.
Ahahahahah. Se não entender bem português, fala francês.

Bien sûr.
Ahahahahah.

E então como é que chegou a Portugal?
Cheguei aí em Agosto. Assinei contrato com o Sporting um dia ou dois antes de começar a pré-época com o Valencia. Regressei a Espanha para fazer as malas e voltei a Portugal em definitivo.

Où habitiez-vous à Lisbonne?
Como?

(arghhhh, esqueci-me do protocolo) Onde vivias em Lisboa?
Não vivia em Lisboa, vivia no Estoril. Bela terra, cheia de casas simpáticas metidas em ruas estreitas. Foram grandes tempos. As viagens de carro para o treino eram sempre um prazer. Aquela estrada era super.

A Marginal?
Isso, isso. Lindo do princípio ao fim. Às vezes, apetecia-me parar a meio do caminho para tirar uma fotografia. Ou mergulhar na praia, ahahahah.

E o treino?
Esse era o grande problema, ahahahahah.

Que tal o Sporting?
Primeiro, adoro Portugal. As pessoas são muito simpáticas, atenciosas. Sempre o foram. No Sporting, o ambiente era do melhor. Havia almoços, jantares. Havia união, espírito de balneário.

Por parte de quem?
Pfffffff, tantos. Manuel Fernandes, Conhé, Laranjeira, Inácio, Manoel, o brasileiro, Da Costa, outro brasileiro, Baltasar, Fraguito. De repente, já disse quase a equipa toda. Ahahahah. Era uma equipa fortíssima. E, na verdade, sempre desejei conhecer o Eusébio.

Porquê?
Era o melhor jogador de futebol africano de sempre. Eusébio é africano, nasceu em Moçambique. Certo, jogou pela selecção portuguesa, mas é africano, acima de tudo. Sempre o admirei. Mesmo quando ainda jogava no Mali, nos anos 60. Aliás, os seus feitos chegavam a Bamako com facilidade. Adorava-o. A ele, Eusébio, mais Pelé e Muhammad Ali. O meu trio black power perfeito.

E conheceu o Eusébio?
Se conheci? Joguei contra ele, no Norte. Aveiro, será?

Siiiiiiim, claro. Um Beira-Mar-Sporting.
O Beira-Mar, isso mesmo. Empatámos 1-1, o golo foi do Eusébio. Isso ainda é durante a minha primeira época no Sporting, acho.

Ya, mesmo. É o último golo do Eusébio na 1.ª divisão.
Sério?

Hum-hum.
Maravilha. Sei que marcou, não me lembro como. Nesse dia, não marquei.

O Keita marca 13 golos em 10 jogos na primeira volta da época de estreia. Encaixou-se bem?
Muito bem. É como digo, o ambiente no balneário era sensacional. Estreei-me no dérbi, com o Benfica, em Alvalade. Ganhámos 3-0. Foi formidável. Os adeptos à nossa volta, sempre a puxar. Incrível. Adorei tudo. E era o Benfica campeão, com Bento, Toni, Shéu, Nené. Que equipa, hã? Foi o campeão.

O Keita ganha uma Taça de Portugal.
Verdade. Ao Porto, na finalísima. Mas isso já é a minha segunda época, em 1977-78.

E é o capitão de equipa?
Verdade, outra vez. Ahahahahah.

Sabia que foi o primeiro estrangeiro no Sporting?
Quoi?

Foi o primeiro capitão estrangeiro no Sporting.
A sério?

Hum-hum.
Não sabia. Ou não me lembrava. Nesse dia, no Jamor [diz o nome bem devagar, quase a soletrar], só o fui pela ausência do Laranjeira. Era ele o capitão. Ganhámos 2-1.

Quando falo do Keita a um jogador português do seu tempo, todos escolhem o mesmo adjectivo: elegante.
Ahahahahahah. Nasci assim, e agora?

Nada, acho muito bem. Sempre foi assim?
Desde que me lembro. Tem muito a ver com o ritmo africano. Digo eu. Há africanos fisicamente potentes, como o Eusébio. E há africanos mais franzinos, como o Milla. Mas são todos elegantes. Os movimentos do Eusébio eram divinais, deviam ser objecto de estudo. A elegância está em nós. Eu não fugia à regra.

Mas impôs-se com categoria: jogou em França, Espanha e Portugal. Não era muito comum.
Dei-me bem, isso sim. Nunca podemos avançar na vida, seja pessoal ou profissional, sem o factor sorte. Faz parte do dia a dia. Eu tive a sorte de colar-me bem cedo a uma bola de futebol e adaptei-me a essa realidade.

Começou a jogar aos quantos anos?
Muito cedo. Aos 16 anos, já jogava no Stade Malien e também na seleção do Mali. Fui aposta e saí-me bem.

Estreou-se na selecção aos 16 anos?
Bien sûr, jogámos com a Indonésia, em Jacarta.

Uyyyyyy, isso é Ásia. Très loin.
Também fui à China e à URSS.

Aos 16 anos de idade?
Oui.

Como?
O nosso governo [Mali] fazia questão de fazer programas de intercâmbio para os melhores de cada área, fosse desporto, arte, música, teatro.

Fantastique.
Os futebolistas foram daqui para a Crimeia. E, depois, Moscovo, onde vimos o mausoléu do Lenine na Praça Vermelha. Na China, visitámos a Grande Muralha.

Lembro-me de ir à China em 2001 com chineses a olhar para mim como se fosse um ET. Imagino um africano em 1963.
Ahahahahahahah. Ahahahahahah [Salif ri-se sem parar] Foi uma comédia. Eles seguiam-nos por todo o lado. Por curiosidade, apenas.

O regresso ao Mali, que tal?
Tive sorte. Lá está, a sorte. Primeiro, joguei no Stade Malien. Depois, Real [Bamako]. Ambas as equipas chegaram à final da Taça dos Campeões africanos. Quando estamos em equipas de nível superior e embaladas para o sucesso, tudo nos sai melhor. Aconteceu comigo, o avançado dessas equipas.

Era o orgulho da família, não?
Tinha sete irmãos e duas irmãos. Mais os meus pais. Mais o resto da família. Mais os vizinhos. Mais os amigos da rua. Mais os amigos da escola. Fui criado como uma criança normal. E, depois, quando os meus pais morreram, os mais velhos tomaram conta dos mais novos e os mais novos, como eu, dos mais novos ainda. Tudo tem a ver com tradição.

E os seus pais viram-no jogar?
Ao mais alto nível, não. Mas assistiram vezes sem conta à minha chegada a casa, quase à hora do jantar, todo suado e sujo, ahahahah. A minha mãe apoiava-me, o meu pai nem por isso.

A sério?
Hum-hum, c’est vrai. O meu pai só queria que eu estudasse para seguir uma carreira para toda a vida.

Mas o Keita chegou a estudar direito, certo?
Sim, nunca me deslumbrei com o futebol. Gostava de o jogar e ganhava dinheiro com isso, mas a parte dos estudos sempre esteve muito presente em mim. Quando cheguei a Saint-Étienne, perguntei aos dirigentes se podia prosseguir o curso de Direito iniciado em Bamako. Eles indicaram-me uma universidade e lá fui.

Jogador-estudante?
Ahahahahahah. Comme si comme ça. Mais jogador que estudante.

Mal chegou a França, deu espectáculo.
O táxi, não é?

É das histórias mais hilariantes da história. Vrai?
Imagina, eu tinha saído à pressa do Mali porque o ambiente já se tinha tornado insuportável para mim.

A que nível?
Os adeptos já me assobiavam a cada toque na bola.

Porquê?
Primeiro, tínhamos perdido a final da Taça dos Campeões africanos em Abidjan [4- 1 após prolongamento]. Depois ia transferir-me para o Saint-Étienne.

E?
Eles simplesmente não queriam. E impediram-me de sair do Mali. Só que saí. So queria sair dali, respirar ar saudável. E saí. Pela porta atrás [belo português, sim senhor ò Salif]. Fui para a Libéria e, daí, para Paris. Aterrei em Orly e pedi um táxi para Saint Étienne.

Uyyyyyyy.
Ahahahahahah.

Quanto custou?
Uyyyyyyyy.

Ahahahahahahah. A sério, diga lá.
Mais de mil francos [1060, diz o museu do Saint Étienne].

Chegou lá e marcou uma época.
Marcámos, toda a equipa. Foi um plantel especial, com um treinador inspirador.

Quem?
Albert Batteux. Quase um pai para mim. Abraçou-me desde o primeiro dia e isso deu-me força. Deu-nos, aliás. Porque fomos tricampeões franceses em 1968, 1969 e 1970. Mais, em 1970, também ganhámos a Taça de França.

É esse o ano da primeira Bola de Ouro africano?
Oui, foi em 1970.

Ganhou o Salif?
Íamos jogar em Bastia para o campeonato quando recebi a notícia. Deram-me o prémio e pronto. Nada de transcendental, como agora.

Qual o seu melhor jogo em Saint Étienne?
Para falar verdade, um 3-0 ao Bayern Munique para a Taça dos Campeões. Mal saiu o sorteio, toda a gente falava no favoritismo do Bayern. Que se tornou mais que evidente com o 2-0 em Munique. Em França, 3-0. É meu, o 3-0 muito perto do fim, mas o que interessa é que passámos um obstáculo dificilímo.

Em 1970-71, marca 42 golos. Por incrível que pareça, não é o melhor marcador do campeonato francês.
Foi uma época gloriosa, sem dúvida. Lembro-me de jogos em que tudo me saía bem, de marcar quatro ou cinco golos. Um dia, marquei seis e goleámos 7-0. O melhor dessa época foi o Skoblar, do Marselha. Marcou 44.

E juntou-se ao Skoblar no Marselha, não foi?
Verdade. Entrei em conflito com o presidente Roger Rocher, do Saint-Étienne. Já estava cansado de ser enganado.

Como assim?
Ganhávamos todos mal. Só que os africanos ganhavam menos ainda que os franceses e já não podia tolerar mais aquilo. Então saí para o Marselha. Na estreia, marquei dois golos ao Saint-Étienne e dedico-os ao Rocher.

Uh la la la.
Era novo e estava frustrado. Se fosse hoje, não o fazia.

Depois jogou em Espanha.
Valencia. Até comecei bem, só que vinha de épocas com muitos golos e abrandei o ritmo em Espanha.

Porquê?
O futebol espanhol era superior ao francês. Isso notava-se nas competições europeias, em que as equipas espanholas chegavam invariavelmente mais longe do que as francesas. Como os defesas das equipas espanholas eram superiores, havia menos golos. Mas foi uma boa escola de aprendizagem. Fui treinado pelo Di Stéfano.

Di Stéfano, Eusébio. Só falta o Pelé.
No.

No, o quê?
Não falta o Pelé.

Então?
Joguei com ele.

Com o Peléééééé?
Um misto Marselha-Saint Étienne vs Santos. O Pelé era algo de extraordinário. Ainda hoje, 50 anos depois, o é. Um jogador fora de série. Já o disse há pouco: Pelé, Mohamed Ali e Eusébio.

Do que sente mais falta em Portugal?
Do calor humano. E da feijoada. Saudade. Maravilha.

Obrigado Salif, grande abraço.
Abraço a todos.