Estórias Made In é uma rubrica do Maisfutebol que aborda o percurso de jogadores e treinadores portugueses no estrangeiro. Há um português a jogar em cada canto do mundo. Este é o espaço em que relatamos as suas vivências.


A história de Luís Paiva confunde-se com outras de inúmeros treinadores portugueses. De uma viagem pelo amadorismo em Portugal ao profissionalismo na longínqua Nova Zelândia, país que há mais de dois anos, é a casa de um jovem treinador.

«Um conhecido de um amigo meu mudou-se para a Nova Zelândia há uns anos e tornou-se responsável por uma associação do país. O meu amigo pensou em candidatar-se, mas acabou por não o fazer. Ao contrário dele, eu candidatei-me. Acabou por ser tudo muito rápido. Enviei o meu currículo no início de 2015 e em Março já lá estava», começa por contar, em conversa com o Maisfutebol.

A Terra da Grande Nuvem Branca tornou-se o destino ideal para a realização de um sonho. No baú das recordações ficam passagens por clubes como Boavista, Salgueiros e União Nogueirense, conciliadas com a profissão de docente de Educação Física em várias escolas primárias, na cidade da Maia.

«Quando estava no último ano da licenciatura decidi procurar um trabalho, algo em part-time que me permitisse, de algum modo, estar ligado ao futebol. Estava ligado ao scouting do FC Porto, através do projeto Visão 611 [atualmente inativo] e, através de um colega de curso, soube que o Boavista estava à procura de um treinador para a escola de formação que funcionava no Pasteleira. Fiquei com o lugar e aí começou o meu percurso. Entretanto, o Boavista fez um acordo com o AC Milan para a criação da AC Milan Scuola Calcio, com os treinos a terem lugar no Estádio do Bessa, e trabalhei três anos nessa academia. Após o fim do vínculo entre o AC Milan e o Boavista, fui treinar os sub-14 do Salgueiros. Antes vir para a Nova Zelândia, ainda estive seis meses com o Jorge Silva [ex-jogador do Boavista] nos seniores do União Nogueirense», relata.

 

Luís Paiva no início do seu percurso, no Boavista. 
 

Dois empregos, uma vida estável que não conduziu Luís Paiva ao comodismo. Muito pelo contrário. No início de 2015, decidi arriscar e rumar à cidade de Invercargill, cidade costeira no sul da Nova Zelândia. Eis os motivos, pelo nosso protagonista.

«Lecionava e tinha o futebol como segundo trabalho, por assim dizer. Depois de um dia de aulas, ainda tinha de ir treinar, já para não falar do tempo despendido ao fim-de-semana. É uma realidade como à grande maioria dos jovens treinadores em Portugal. O futebol sempre foi a minha paixão, muitas vezes era a prioridade, fruto da motivação que me despertava. Vi uma oportunidade de fazer o que adoro em regime de full-time, numa cultura desportiva completamente diferente e ao mesmo tempo continuar a crescer enquanto treinador.»

No pequeno país da Oceânia, Luís abraçou funções completamente distintas das que desempenhava em Portugal. O jovem técnico português é responsável pelo projeto Talent Pathway, «um programa que incide sobre o desenvolvimento direto ou indireto dos jogadores mais talentosos, além de dar formação aos treinadores locais». Portanto, um trabalho diferente daquele desempenhado nos primórdios da carreira.

«No fundo trabalho para uma federação. Em termos futebolísticos, a Nova Zelândia está dividida em sete federações: cinco na Ilha do Norte, duas na Ilha do Sul. A Federação mais a sul chama-se Football South e dentro do organismo principal existe a Southland Football. Trabalho para esse organismo que existe dentro da Football South», explica, antes de elencar as funções que desempenha.

«Ao nível de futebol de formação não treino nenhuma equipa, apenas coordenado. Dou formação a treinadores, sigo-os de perto e organizo competições. No que à formação diz respeito, os clubes neozelandeses vivem do voluntariado, ou seja, os treinadores são voluntários. A Federação para a qual trabalho oferece programas extras de aperfeiçoamento técnico e tático para os melhores jogadores desses clubes. Após o término da época dos clubes, há um torneio chamado Torneio da Ilha do Sul Torneio da ilha do Sul, disputado em várias cidades sulistas, no qual participam os melhores jogadores entre os 12 e 16 anos. Os participantes são selecionados pela Federação para a qual trabalho.»



No ano transato a Southland Football criou um clube para potenciar os crescimento dos jogadores da região, com Luis Paiva a assumir o papel de treinador, função que continua a intercalar com o projeto Talent Pathway.

«O clube foi criado para possibilitar o crescimento dos melhores jogadores seniores da região. O clube chama-se Southland United e compete a nível regional. Dessa forma, os jogadores podem competir num nível condizente com as suas aspirações. A competição abrange metade da Ilha do Sul. A maioria dos jogadores que agora estão a disputar o campeonato nacional começaram por aqui», realça.

 O futebol na Nova Zelândia ainda está em desenvolvimento, sendo ainda um desporto sazonal, ou seja, as competições oficiais decorrem entre março e setembro. Algo impensável no Velho Continente. Luís recorda um episódio insólito para nos elucidar sobre a forma como o futebol ainda é encarado num país que esteve às portas do Mundial2018.

«No primeiro fim-de-semana de maio há uma tradição aqui Duck Shooting, a abertura da época de caça aos patos. Tínhamos jogo marcado para sábado e na véspera do jogo chega ao clube a informação de que as equipas não jogar por falta de jogares. Inicialmente, achei que era uma espécie de brincadeira. Depois, contaram-me que os jogadores tinham pedido folga para esse fim-de-semana para irem dar uns tiros. O jogo acabou por ser adiado. Aqui os jogadores não têm sentido de responsabilidade ou o profissionalismo que é exigido na Europa. Este tipo de coisas são sagradas e quem chega de forma tem de se adaptar», rememora.

Apesar deste episódio, Luís considera que o futebol vai acabar por se tornar no principal desporto do país, em detrimento do rugby.

«O futebol já é o desporto com maior participação a nível nacional até aos 12 anos e penso que daqui a um ano o mesmo vai acontecer em idades compreendidas entre os 13 e os 16 anos. A nível sénior não será tão fácil. Atualmente já se começam a sentir os efeitos do futebol na sociedade. Há ligas mais competitivas, mais discussão em torno da modalidade, maior destaque dado pela comunicação social e transmissões televisivas dos jogos da divisão principal», destaca.

«O futebol vai-se tornar numa modalidade praticada durante o ano inteiro, à semelhança do que acontece na Europa. Vai ser aplicado o critério de promovidos e relegados nos campeonatos nacionais. Ao mesmo tempo, está em construção um projeto que tem como objetivo acompanhar os melhores jogadores entre os 14 e 16 anos, em concentrações regulares de forma a potenciá-los para se tornarem elegíveis para a seleção nacional de sub-17», acrescenta.



Pese embora a mudança radical que viveu, Luís Paiva recorda que a adaptação foi fácil. Nas palavras do próprio, a Nova Zelândia é um país bastante acolhedor com pessoas de uma simpatia desconcertante. Em suma, um país que se revelou uma excelente surpresa.

«Confesso que não foi nada difícil. Por tradição, os portugueses adaptam-se com facilidade e depois, a Nova Zelândia é um país bastante acolhedor, com uma qualidade de vida acima dos padrões normais, o que acaba por facilitar. Além disso, as pessoas do Sul são de uma simpatia inacreditável. No início chocou-me, admito. A língua acabou por ser a parte mais desafiante, porque apesar de falarem inglês, o sotaque é diferente daquilo a que estamos habituados.

As saudades da terra natal são naturais mas ultrapassáveis, ao contrário dos regimes alimentares, com o bacalhau, tão típico das gentes lusitanas, à cabeça.

«Não sou uma pessoa saudosista. Claro que às vezes tenho saudades de alguns hábitos portugueses e das pessoas que me são mais queridas… A grande maioria do tempo estou tão absorvido pelo trabalho que as saudades acabam por ser disfarçadas, por assim dizer. Aqui sente-se alguma influência asiática, sobretudo ao nível da alimentação. Faltam-me os pratos tradicionais portugueses, como o bacalhau, por exemplo. Quando vou a Portugal trago», refere.

Pese embora o clima instável que acaba por condicionar o seu quotidiano, Luís está confortável num «pais lindíssimo» e não pensa em regressar. Os planos para o futuro estão reservados ao longínquo país no outro lado do mundo, onde a qualidade do treinador português é, como em tantos outros, amplamente reconhecida. 

Quiçá, num futuro próximo, seja visível o dedo de Luís Paiva, em patamares superiores do futebol da Nova Zelândia.