Quando Paulo Fonseca chegou para dar um novo rumo ao Shakhtar Donetsk, ainda era difícil para muita gente imaginar o clube sem Mircea Lucescu. Foram 12 anos de reinado do experiente técnico romeno. Tamanho período temporal acarreta, claro está, processos enraizados que era preciso mudar. Paulo Fonseca trazia as suas ideias, não abdicava delas, mas precisava ganhar o grupo.

Há um exemplo que é paradigmático. O Shakhtar é uma equipa com muitos jogadores brasileiros, mas a maioria, claro está, é de nacionalidade ucraniana. «São muito direcionados para as questões físicas», explica o treinador. As pré-épocas eram praticamente passadas sem bola ao longo das primeiras semanas. Muita corrida à volta do campo para ganhar resistência física. Fonseca sabia que precisava mudar isso sem chocar.

«Nunca abdicando da essência das nossas ideias tivemos de nos adaptar. Eles faziam imensos quilómetros e nós também tivemos de lhes dar alguns quilómetros. Principalmente pela mentalidade deles. Imaginem o que é chegar e não dar algumas coisas que eles estão habituados? Fomos mudando as coisas lentamente», explica.

O sucesso chegou com o tempo. E com consequências. «Hoje, quando têm de correr, já não querem», brinca.

Paulo Fonseca tomou a palavra no Fórum dos Treinadores, que decorre na Universidade do Minho em Braga. Numa palestra em jeito de conversa, moderada por outros dois colegas de profissão: Carlos Dinis e Domingos Paciência. «Como ser campeão no estrangeiro», foi o tema. Fonseca, que vai bem lançado para o segundo título seguido, contou a sua experiência na Ucrânia, numa equipa abalada pela guerra e dividida por três cidades.

O Shakhtar é de Donetsk, mas, por causa do conflito, passou a sua sede para a capital Kiev e joga em Karkhiv, atualmente, embora já tenha jogado em Lviv. Resistir assim, é difícil.

«No último jogo que fizemos em Lviv tivemos 600 pessoas no estádio», contou Fonseca. Em Karkhiv, mais perto de Donetsk, os números sobem ligeiramente. Rondam os 10 mil, embora o estádio tenha capacidade para cinco vezes mais. O conflito levou a que algumas pessoas tenham trocado Donetsk por Karkhiv, aumentando o número de adeptos do Shakhtar na cidade.

Porém, as dificuldades financeiras que o país atravessa leva a que o futebol se torne acessório, sobretudo no estádio. Esse é um dos problemas identificados por Paulo Fonseca, já habituado a jogar em estádios despidos, exceção feita aos jogos grandes e à Liga dos Campeões.

Outro hábito são as viagens, constantes. Nos dias de hoje, na prática, o Shakhtar joga sempre fora de casa: «No último ano fizemos cerca de 125 viagens de avião.»

A sorte na Taça que lhe mudou a carreira

Voltemos, contudo, ao início. Paulo Fonseca emigrou porque sentiu necessidade. Palavras do próprio. Depois da passagem pouco feliz pelo FC Porto, do regresso ao Paços de Ferreira e do sucesso no Sp. Braga, tinha chegado a hora. A carreira, que começara nos juniores do Estrela da Amadora e tivera como ponto chave o salto para o Desp. Aves, pedia um desafio diferente.

Fonseca não esquece que chegou ao Aves, provavelmente, por capricho do sorteio da Taça de Portugal. «Nos escalões mais baixos nem sempre temos visibilidade. Tive a felicidade de em dois anos defrontar equipas da Liga, num deles o FC Porto», recordou. Estava no Pinhalnovense, na altura, e o trajeto na Taça apontou-lhe o holofote da fama. Fonseca não mais deixou que se virasse para outro lado.

Houve altos e baixos mas a certeza de que, em 2015, o caminho certo era deixar Portugal. «Ir para o Ucrânia não é normal mas era o Shakhtar», sublinha. Um de dois crónicos candidatos ao título, a par do Dínamo Kiev, que tinha terminado com a hegemonia do rival recentemente. A missão do português era recuperar o título. E conseguiu-o. A fase inicial, claro, foi a mais complicada.

«O Lucescu treinou o Shakhtar durante doze anos e com resultados. As coisas estavam demasiadamente enraizadas. Era um desafio muito aliciante mas muito difícil», descreve.

De qualquer forma, deixa uma certeza: «Aquilo que sou no Shakhtar é o que era no Paços ou no Sp. Braga. Sou praticamente o mesmo treinador que era em Portugal.»

É o tal efeito camaleão, sem abdicar dos princípios.

O mercado, as equipas fechadas e o inverno castigador

Cada país tem as suas especificidades e o seu futebol, mas a Ucrânia será um bocadinho mais diferente dos demais. As épocas, por exemplo, têm, praticamente, dois períodos de pré-temporada. É a clássica e obrigatória pausa de inverno.

Foi a primeira vez, naturalmente, que Paulo Fonseca contactou com esta realidade. «Dezembro, janeiro e fevereiro é praticamente impossível treinar na Ucrânia. Aliás, este ano continua a nevar muito nesta altura», sublinhou. A solução passa por estágios no estrangeiro, passa fugir da neve e das temperaturas negativas e atacar a fase decisiva da temporada, além das provas europeias, se for o caso.

Não é o único problema, claro. Há o mercado, muito limitado, ou os rivais que abdicam de atacar. Paulo Fonseca considera que a Liga ucraniana não é muito diferente das demais na estrutura: duas equipas disputam o título, um grupo reduzido tenta chegar às provas europeias e o resto luta para não descer. O problema está, porém, neste último grupo e na forma como se apresenta em todos os jogos.

«As equipas que lutam pela permanência não são ao nível das que lutam pela permanência em Portugal. O nosso campeonato é mais competitivo nesse ponto. O nosso contexto na Ucrânia é muito difícil: as equipas praticamente abdicam de atacar, jogam com 11 jogadores no meio campo defensivo», explica. Isso leva a «jogos praticamente iguais».

Ora, Paulo Fonseca diz que o Shakhtar não tem outro remédio, perante este cenário, do que apostar no futebol de posse, à procura de espaços. O que obriga a mudar o chip quando o desafio é da Liga dos Campeões e coloca outras questões: «Com o Man. City ou a Roma o contexto de jogo é completamente diferente e isso obrigou a treinar outros momentos, como a transição também. Quando há aceitação e abertura as coisas são mais fáceis.»

Quanto ao mercado, qualquer olhar que nem precisa ser muito atento deteta a forte influência brasileira. Mais obrigação do que opção, de início, e agora uma aposta convicta.

«Se quisermos contratar em Espanha, Itália e Inglaterra não conseguimos. Os jogadores não querem ir para a Ucrânia. E o Shakhtar até oferece melhores condições financeiras, mas não se sentem aliciados pelo campeonato. No Brasil é mais fácil atrair jogadores porque vêm à procura de entrar na Europa e ter visibilidade. O Shakhtar tem scouting permanente no Brasil e poder financeiro para contratar. O jogador brasileiro tem demonstrado que se adapta bem à Ucrânia. Tem tido tantos casos de sucesso que o presidente continua a achar que é o caminho. Fazem a diferença, tenho de confessar», diz Paulo Fonseca.

Esse ponto faz com que o que poderia ser outro problema se dilua: a comunicação. Fonseca fala português quase sempre, porque grande parte do plantel entende-o logo. Para os ucranianos há o tradutor. «É a minha sombra», brinca o português.

Os frutos do trabalho de Paulo Fonseca não chegam, apenas, em forma de títulos. Também há o crescimento que os jogadores vão tento. Sem vaidade, mas com confiança, Fonseca considera que os jogadores evoluíram desde que chegou.

«O Facundo Ferreyra, este ano, tem 27 golos e nos anos que antecederam fazia 10 ou 11 golos. O Shakhtar hoje cria mais oportunidades e para um avançado é ótimo», explica.

E isso traz consequências, também, porque há quem esteja atento: «Há jogadores que têm evoluído muito e alguns tenho a certeza que vamos perder este ano: Ferreyra, Bernard ou o Ismaily, que para mim é dos melhores laterais esquerdos na Europa. É um processo natural. Tem a ver com a visibilidade que tivemos na Champions, é natural. É a vida de um treinador.»