Na sexta-feira, Roberto Martínez escancarou a porta da Seleção Nacional a Samuel Costa, médio da geração 2000, natural de Aveiro e formado entre Beira-Mar, Gafanha e Sp. Braga. Em Espanha desde 2020, Samú tornou-se indiscutível, e até adorado, em Almería e Maiorca.

Para desvendar a essência que se esconde na pele morena, por detrás da barba rija e das tatuagens, e para interpretar o percurso ímpar do jovem de 23 anos – longe do mediatismo nacional – importa recuar até 2008, quando o centro de treinos do Beira-Mar ainda se localizava junto ao antigo Estádio Mário Duarte.

O Maisfutebol visitou a cidade de Aveiro, na procura dos testemunhos que espelham as diferentes fases de evolução de Samú Costa, enquanto pessoa e atleta, até ser referência em Espanha, um dos líderes do atual sétimo classificado da La Liga.

Filho de um internacional sub-21 – Zé Maria, extremo de emblemas como Freamunde, Ac. Viseu, Maia, Oliveirense e Águeda – Samú ganhou familiaridade com a bola nas margens da Costa Nova. Dotado de um pé esquerdo vaidosamente elogiado pelo pai, integrou a formação do Beira-Mar em 2008, aos 7 anos.

«Era um miúdo habilidoso, muito destemido e rápido. Era magrinho e alto. Fora do campo, era uma criança meiga e sempre energética. Pela idade, era, com naturalidade, um pouco impetuoso e impulsivo», relata, ao Maisfutebol, Ana Jorge, a primeira treinadora de Samú.

Ao lado de Afonso Sousa – filho de Ricardo Sousa e neto de António Sousa – Samú integrou uma equipa recheada de esquerdinos: «Acreditava no potencial a despontar em alguns meninos, caso mantivessem a educação, a humildade, e caso fossem bem orientados. O talento talvez não fosse evidente, porque jogavam contra miúdos mais velhos».

«Nunca tive uma equipa tão agressiva [risos]. Nas pausas do treino, a maneira de brincarem era darem rasteiras uns nos outros. A relva era fofinha, diga-se, não era sintética», recorda Ana Jorge, que ensaiou todos os pupilos nas várias posições, para contestação de alguns pais.

Uma vez que a treinadora encerrou o ciclo no Beira-Mar em 2009, a história de Samú foi acompanhada à distância.

A equipa orientada por Ana Jorge em 2008/09
Samú Costa e Afonso Sousa

Em todo o caso, vinca, há caraterísticas que se revelaram muito cedo no «meigo» Samú.

«Ainda consigo ver aquele menino, para lá das tatuagens e da barba. Continua raçudo. E lembro-me que preferia jogar pela esquerda. É um exemplo para a nova geração, porque trabalhou e evoluiu imenso», remata Ana Jorge, mergulhada na nostalgia.

Para despontar e vingar nos escalões de formação, Samú viveu fases antagónicas. Em 2013, face a divergências entre o pai e alguns responsáveis do Beira-Mar, o então adolescente seguiu para o Gafanha.

Meses volvidos, Dinis Resende, outrora defesa central, o «Sandokan», assumiu um capítulo determinante nesta história.

As tentações, hormonas e vontades

Amigo de Zé Maria – pai de Samú – pela «rivalidade» em muitas «batalhas durinhas», Dinis Resende ambicionou devolver o adolescente ao Beira-Mar, quando assumiu o cargo de diretor técnico da formação, a custo zero.

«O rapaz tinha uma garra única e uma tremenda inteligência posicional», começa por contar ao Maisfutebol.

Ainda assim, Samú, de 14 anos, já representava os juvenis do Gafanha. Ora, no comando dos sub-17 do Beira-Mar estava Zé Maria, nada interessado em misturar a parentalidade com as lides de treinador.

Não obstante, Dinis Resende assumiu a missão de ajudar este amigo.

«Sentia que o Samú tinha de ser aconselhado, dentro da sua “rebeldia” e adrenalina. Dizia ao Zé Maria que deveríamos acompanhar o filho, com calma, deixando-o dar passos firmes, a fim de se endireitar.»

«Fruto da juventude, os miúdos estão expostos a tentações. O desporto poderá ajudar à formação dos atletas, que, aos 14 ou 15 anos, têm aquela adrenalina, aquelas hormonas, com muitas vontades. O desporto poderá servir como uma segunda família, para que os jovens não se percam», argumenta Dinis Resende, entusiasticamente.

Um ano volvido, Zé Maria deixou o Beira-Mar, viabilizando o regresso de Samú.

Em simultâneo, Dinis Resende encerrou o ciclo na coordenação técnica dos «aurinegros», depois de exercer o mesmo cargo no Boavista.

Pausa, faixa bónus: o «Sandokan»

Dinis da Silva Gomes Resende, 57 anos, natural de Paços de Brandão, em Santa Maria da Feira. As mentes melhor oleadas recordar-se-ão deste defesa central, de facto semelhante à personagem «Sandokan».

Formado no FC Porto, edificou a carreira em clubes como Beira-Mar, Gil Vicente, Feirense e Académica, pendurando as chuteiras em 2004. Cinco anos volvidos, integrou a estrutura do Boavista.

Por lá, acompanhou talentos como Bruno Fernandes e André Gomes, além de protagonizar o recrutamento de Rochinha e de Samu Silva. Ao Maisfutebol, o «Sandokan» detalha que ajudou, com especial carinho, este médio, atualmente no Vitória de Guimarães, graças à proximidade e confiança com a família, conterrânea de Dinis.

Descrevendo-se como um «pronto-socorro», o antigo defesa acudiu o Beira-Mar durante a cissão entre a SAD e os adeptos, há dez anos.

«Havia diretores empenhados em terminar com a formação. Tínhamos equipas nos principais campeonatos e estaríamos a hipotecar o potencial de muitos jovens. Não havia dinheiro, mas reuni com pais, credores e empresas de transportes. Tudo se arranjou!»

«No fim dessa época saí, porque estava a custo zero. Ia todos os dias a Aveiro, foi desgastante e dispendioso. O Beira-Mar acabou por se endireitar. Foi mais um esforço por um clube ao qual devo muito da minha carreira enquanto jogador», termina.

Paulo Sousa, do Benfica, e Dinis Resende, pelo Beira-Mar

Entretanto, Samú cresceu

Em 2015, às portas dos 16 anos, Samuel Costa era anunciado como um «jogador à antiga» por Dinis Resende.

«Ao contrário do pai, o Samú já contava com uma boa capacidade física, com cabedal, puxando à mãe na altura. E manteve uma raça apaixonante, como já não se vê. Desde cedo fez lembrar o Paulinho Santos, o André, o Vidigal ou o Oceano. Em termos competitivos era já adulto», detalha.

Nesta aventura, Samú contou com a fiel companhia do pai, nas «duras» e nos abraços, nas noites a recuperar de lesões e no escalar de obstáculos. A carreira edificada a pulso contou com muitas lágrimas, conforme revela Zé Maria, também representante do médio.

«Aos 15 anos, o meu filho questionava por que motivo nunca havia recebido um convite para treinar nos clubes de referência, ao contrário dos colegas. Quando surgiu a oportunidade no FC Porto, aos 16 anos, aplicou-se, mostrou entrega e agressividade. Mas, não houve interesse. Esse momento marcou o Samú. E, agora, o FC Porto não tem um jogador como ele», começa por argumentar, em conversa com o Maisfutebol.

Avesso a entrevistas, Zé Maria fez do nosso jornal exceção, quiçá pelo nome do jornalista. E abriu o livro, fixando a narrativa num capítulo crucial: Sporting de Braga.

Zé Maria, conhecido como «o baixinho», foi extremo do Recreio de Águeda

Do Palmeiras ao triunfo sobre o FC Porto

Uma chamada da Gestifute – agência de Jorge Mendes – convocou Samuel Costa para o Sp. Braga-U. Leiria de juniores. A recuperar de uma contratura, o jovem aveirense participou na derrota dos «Guerreiros». Em todo o caso, estava dado o passo para a carreira profissional.

«No regresso, o telemóvel tocou e disseram-me que o Samú deveria estar em Braga no início da semana. Sabia que seria quase impossível, porque a mãe sempre priorizou os estudos, a mentalidade mais correta. Sabemos que, em milhares, apenas um ou outro miúdo dá jogador profissional. Mas, o Sp. Braga fez pressão e acabou por acontecer», recorda Zé Maria.

Ora, naquela manhã de segunda-feira, o colégio de Esgueira não viu Samú. E os colegas não o veriam até à semana seguinte.

«No domingo, de novo pelos juniores, mas contra o Gil Vicente, inaugurou o marcador, aos cinco minutos. Depois, aconteceu tudo muito rápido e assinámos contrato», acrescenta.

Samú Costa e o pai, Zé Maria

No Minho, o médio representou o Palmeiras – equipa satélite dos juvenis – antes de acumular créditos nos juniores, sob tutela de Artur Jorge. E foi pela mão deste treinador que a estreia na Liga se proporcionou, em julho de 2020, na derradeira jornada.

Na receção ao FC Porto (2-1), Samú rendeu André Horta, ao intervalo, fazendo parelha com João Palhinha no setor recuado do miolo.

«O Artur Jorge foi fundamental na carreira do meu filho. Mas, sei que o Ruben Amorim também lhe daria essa oportunidade, uma vez que o convocou para um jogo com o Sporting, em fevereiro», prossegue Zé Maria, sempre de coração a ferver.

Em contra-corrente, nas semanas seguintes, surgiu a carta para o futuro: «Disseram-lhe que era bom, mas que não teria margem de evolução em Braga. Mas, reservaram uma mais-valia para a futura transferência».

«É muito querido em Almería»

Em agosto de 2020, com 19 anos, Samuel iniciou a campanha pelo futebol de «nuestros hermanos». Intocável no Almería, a princípio orientado por José Gomes, o médio totalizou 40 jogos, vendo a promoção à La Liga escapar nas meias-finais do play-off.

Um ano volvido, a festa foi rija. De novo com 40 partidas, Samú galvanizou os «rojiblancos» para o topo da II Liga.

Em estreia na elite de Espanha, Samuel foi esteio numa temporada exigente, com a manutenção assegurada na derradeira jornada, com um ponto de diferença para a linha de água.

De 2022/23 há uma memória ímpar, o jogo 100 pelo Almería, na receção ao Barcelona, em fevereiro de 2023. Ainda que suplente, o médio saltou do banco para segurar um precioso triunfo (1-0).

«Quando se fala do percurso do Samú, o Almería merece uma homenagem, porque lhe deu a oportunidade de jogar e de se afirmar. O meu filho é muito querido em Almería, o que para mim supera qualquer estatística e ranking», atira Zé Maria.

Mas, a vida de atleta não se faz apenas de jogos e números. Quem era Samú nesta fase, em Espanha, longe de casa?

«A carreira constrói-se de baixo para cima. Antes de chegar ao topo, há que crescer, sofrer, ganhar caule e maturidade. Tudo isto influenciou a postura dele, também enquanto jogador», reitera o pai do médio.

A vontade de Aguirre e a confirmação de Samú

No verão de 2023, o médio participou nos quatro jogos de Portugal no Europeu de sub-21. Tal cartão de visita reforçou o interesse de um mediático mexicano: Javier Aguirre. Então a treinar o Maiorca, o experiente timoneiro exigiu a contratação de Samuel Costa.

«Disse-o à minha frente e estou muito grato a Aguirre», valida Zé Maria.

Samú Costa e o pai, Zé Maria

Neste emblema das ilhas Baleares, Samú posicionou-se entre os totalistas em Espanha, com 34 jogos na La Liga e outros cinco na Taça. De recordar que o Maiorca apenas caiu na final dessa prova, nos penáltis, ante o Ath. Bilbao, duelo no qual Samú disputou os 120 minutos.

«Roberto Martínez esclareceu que este não é um jogador desconhecido, até porque o meu filho cresceu nas seleções de formação. Talvez seja surpresa para alguns portugueses. O Samuel lamentava não ter uma oportunidade pela Seleção Nacional. Em Valladolid, no final de setembro, lembrei-o que o trabalho seria recompensado», revela Zé Maria.

Por isso, muitas lágrimas caíram há uma semana: «O Samú estava com os colegas de equipa aquando da convocatória. Ligou-me e chorei. Há que continuar».

Dedicatórias de «Quinas» ao peito

Misturando o «nervo do pai» e a faceta «introvertida da mãe, mais comedida» – descrição de Dinis Resende – Samuel Costa poderá servir como exemplo aos mais novos, conforme indicaram Ana Jorge – no princípio desta reportagem – e Roberto Martínez, na sexta-feira. Essa é, de resto, uma certeza para Zé Maria.

«Quero que o meu filho continue a crescer e que ajude muitos miúdos a sonharem. E há um selecionador, de formação, do qual não me esqueço. O Filipe Ramos disse ao Samú que ele seria profissional, pelo mérito do trabalho, independentemente dos clubes que representasse. Vão encontrar-se na Cidade do Futebol! É bonito», exclama, emocionado, Zé Maria.

Antes do término da conversa com o Maisfutebol – a quem abriu uma exceção para entrevista – o pai de Samuel Costa anota um esclarecimento.

«Tem muito orgulho em ser de Aveiro e em ter representado o Beira-Mar e o Gafanha. Ainda guarda as camisolas, as fotografias e as amizades, e reconhece todos aqueles com quem trabalhou», detalha.

Por fim, Zé Maria revela uma dedicatória – pelo menos uma – que Samú prestará de «Quinas» ao peito: «A minha filha Salomé jogava no Beira-Mar e recusou um contrato profissional pelo Sporting, quando tinha 16 anos. Por azar, meses depois, sofreu uma grave lesão nos ligamentos cruzados do joelho e deixou o futebol».

Na memória, e a um mês de completar 24 anos, Samuel Costa levará outras pessoas cruciais no seu trajeto, como a mãe, o avô materno que jogou no Ac. Viseu, a treinadora Ana Jorge, o «Sandokan» e os amigos de Aveiro.

Em simultâneo, novos pilares são edificados por Inês Salvador e pelo filho Mateo, nascido há menos de um ano.

Por detrás da barba e das inúmeras tatuagens, há um médio – desde infância aguerrido e perspicaz – que acumula sonhos, um dos quais pintados de vermelho e verde. De sangue a ferver – não é ao acaso que em Espanha é conhecido como «carniceiro» ou «louco» – Samú Costa totaliza nove jogos na presente edição da La Liga, sempre a titular e apenas substituído na receção à Real Sociedad (88m).

De nome cravado na elite espanhola, o jovem aveirense aquece o ímpeto para a estreia pela Seleção Nacional, reencontrando alguns camaradas dos sub-21, como Francisco Conceição, João Neves, Pedro Neto e Tomás Araújo.

Nestes dias de estágio na Cidade do Futebol, Samú deverá encontrar renovados motivos para provar o talento na PlayStation, assim como para debater sobre os líderes de Fórmula1, MotoGP e ténis.

Samú Costa na chegada à Cidade do Futebol para o estágio da Seleção Nacional