Mais longe e mais alto é uma rubrica do Maisfutebol que olha para atletas e modalidades além do futebol. Histórias de esforço, superação, de sucessos e dificuldades.

Se falarmos apenas de medalhas torna-se simples contar a história de Lenine Cunha.

Em termos internacionais, o atleta de 37 anos já conquistou mais de 200. Duzentas e onze, para sermos precisos. 211. Du-zen-tas-e-on-ze.

Pronto. Talvez já tenha dado para entender.

Só que a história do «atleta mais medalhado do mundo» vai muito para lá das medalhas que ajudaram a eternizá-lo. E além disso, o número não deve ficar por aqui, não tivesse ele conquistado mais seis (!!) nos Mundiais de Atletismo de pista coberta para atletas com deficiência intelectual, ainda nem há duas semanas.

O menino que perdeu a memória antes de se tornar memorável

Persistência.

Essa é a palavra obrigatória para falar de Lenine. É algo que lhe vem quase desde o berço. Ou do batismo, vá.

Não é que os louros lhe possam ser atribuídos, mas até para ser batizado de Lenine - por uma família de ideais comunistas, está visto - foi preciso lutar. Mas a história é deliciosa e merece cada linha que ocupa neste texto.

«No dia do meu batizado, quando os meus pais e os meus padrinhos disseram que eu me ia chamar Lenine, o padre disse que com esse nome, não me batizava. Então, a minha família, muitos ligados ao mar como era normal na Afurada, ameaçaram bater-lhe. E o padre teve mesmo de me batizar, mas sob ameaça», começa por contar, sorridente, ao Maisfutebol.

Lenine teria então entre um e dois anos e, como é natural, não tem qualquer memória do episódio que lhe seria relatado pelos familiares.

Menos natural, porém, é a quase ausência de memórias da infância até aos 10 anos. E isso é culpa da meningite, a outra protagonista desta história.

A doença afetou Lenine quando este tinha apenas quatro anos e fê-lo perder a fala e o andar, tendo afetado ainda a visão e audição. Além de ter nublado as memórias dos anos posteriores.

«É fácil de resumir essa falta de memória: o avô que me criou morreu quando eu tinha sete anos e eu não tenho qualquer recordação dele», lamenta.

Contudo, as sequelas mais graves na vida de Lenine Cunha vão muito além da memória.

«A doença afetou-me sobretudo o lado esquerdo. Por exemplo, só vejo 10 por cento do olho desse lado. Mas o mais grave foram as sequelas intelectuais, que só quando entrei na escola foram detetadas», explica.

«Os professores perceberam que eu não tinha capacidade de concentração e era muito mais lento do que os outros meninos a aprender porque não conseguia memorizar. Por isso chamaram os meus pais à escola e foi na sequência disso que me foi detetada a deficiência, que fez com que passasse a ter aulas de apoio», continua.

Além desse apoio escolar, Lenine era acompanhado por terapeutas da fala e médicos, que a dada altura fizeram uma sugestão aos pais de Lenine que lhe iria mudar a vida.

«Como eu estava muito atrasado no desenvolvimento da fala e tinha dificuldades de socialização, os meus pais foram aconselhados a colocar-me num desporto que me obrigasse a interagir com um grupo grande de pessoas.»

Após uma curta passagem pelo andebol, seria a correr que aquele miúdo iria destacar-se.

«Na primeira prova em que participei, com uns oito anos, fui o melhor da minha freguesia, Canidelo, e fui representá-la nos Jogos Juvenis de Gaia», recorda.

O passo seguinte foi a integração no Clube Desportivo Candal, no qual começou por dedicar-se à marcha, especialidade na qual conquistou vários títulos regionais.

Só que apesar do relativo sucesso, Lenine fartou-se da marcha e procurou alternativas, sobretudo em atletismo de pista. Experimentou a velocidade e as provas técnicas – salto em comprimento, altura e triplo salto – e após um ano de adaptação, os resultados começaram a surgir.

Com idade júnior, e já a trabalhar com José Costa Pereira, treinador que até hoje o acompanha, Lenine sagrou-se campeão regional de juniores no salto em comprimento.

Primeiro passo rumo ao sucesso: derrubar o (próprio) preconceito

Com resultados em quase todos os escalões, quando, aos 15 anos, o treinador lhe falou da possibilidade de competir nos paralímpicos, a reação de Lenine foi de recusa imediata.

«Eu era ingénuo», começa por justificar. «Na altura em que ele me abordou nesse sentido, eu não gostei muito. Porque  ‘deficiente mental’ é uma expressão pesada. Fazia-me pensar em paralisia cerebral ou Síndrome de Down e não era assim que me via», continua.

Apesar de o técnico lhe ter explicado que na competição paralímpica havia muitos jovens como ele - «com dificuldade de aprendizagem, QI baixo, etc» - só quando viu pelos próprios olhos um estágio da seleção paralímpica é que Lenine teve noção da realidade.

«Só então percebi que eram mesmo miúdos como eu e nada daquilo que eu tinha imaginado. Por isso, depois desse dia, decidi fazer todos os testes nacionais e internacionais e comecei a competir como paralímpico», revela.

Já então, Lenine via o atletismo como algo indispensável na sua vida. O refúgio que encontrou para a crueldade com que teve de lidar desde muito novo.

«Apesar de no início ter sido complicado aprender os exercícios – tinham de me explicar tudo duas, três, quatro vezes – sempre me senti acarinhado no atletismo. Na escola sofria bastante, porque as crianças conseguem ser cruéis e muitos colegas chamavam-me burro devido às minhas dificuldades. Por isso, eu só via a hora de sair das aulas e ir treinar», confessa.

«No treino era um alívio: eu estava no meu mundo. E ainda hoje é assim», reforça.

Ora, a juntar a esse sentimento, na primeira prova internacional em que participou, aos 17 anos, Lenine Cunha bateu o recorde mundial de triplo salto e conquistou as primeiras de mais de duas centenas de medalhas internacionais. 

Era o impulso que faltava.

Entre o sonho e o choque de realidade em Sidney

Meses depois dessas primeiras medalhas, Lenine cumpriu um sonho que nem sequer tinha tido tempo para imaginar: participar nuns Jogos Paraolímpicos.

De Sidney, porém, além de um quarto lugar na prova de salto em comprimento, o atleta português trouxe uma lição de vida. Um choque de realidade.

«Só aí percebi a força do desporto paralímpico. A minha primeira prova internacional era apenas para atletas com deficiência intelectual. Mas ali vi coisas que me deixaram absolutamente emocionado», confessa.

«Eu queixava-me das dificuldades que sentia na minha vida, e vejo ali pessoas amputadas a lutarem pelos seus sonhos. E há um episódio que me marcou especialmente: vi uma prova de natação com várias atletas amputadas. Algumas só com braços, outras só com pernas; mas quem ganhou essa prova foi uma nadadora australiana que não tinha braços nem pernas e que só com o ondular do corpo conseguiu vencer as adversárias», relata, confidenciando: «chorei compulsivamente ao ver aquele momento».

Mas da Austrália, Lenine Cunha trouxe ainda mais. Na bolsa veio a certeza de que se queria passar a dedicar ao atletismo de corpo e alma. Uma convicção reforçada pelo facto de a decisão de ir aos Jogos Paraolímpicos lhe ter custado o emprego como ajudante de eletricista, numa empresa que não aceitou dispensar o funcionário para o efeito.

O escândalo espanhol ‘roubou-lhe’ os Jogos no auge da carreira

Dos Jogos Paralímpicos de Sidney, em 2000, resultou ainda uma mágoa causada por um escândalo provocado pela comitiva espanhola.

Isto, porque ficou provado que a equipa de basquetebol de Espanha se apresentou à prova com atletas sem qualquer tipo de deficiência cognitiva. Sem meias medidas, o Comité Paralímpico decidiu, por isso, banir as provas para esse tipo de deficiência dos Jogos de Atenas e de Pequim.

«Esse foi o período em que atingi o auge da minha carreira em termos de forma. Por isso custou-me que, em vez de castigar a Espanha, o Comité tenha decidido castigar todos os atletas pelo erro de um país», lamenta Lenine.

A proibição seria, contudo, levantada em 2012. depois de «exames e mais exames e mais exames» que todos os atletas foram obrigados a fazer para provar a incapacidade que os impede de lutar com as mesmas armas de outros desportistas.

E veio bem a tempo de proporcionar ao atleta português o ponto mais alto da carreira.

«A medalha de bronze que conquistei em Londres, num estádio olímpico completamente lotado, com 80 mil pessoas a puxar pelos atletas, foi o momento mais especial que vivi até hoje. É algo difícil de explicar por palavras», enaltece.

«Perdi a minha mãe e o meu mundo desabou»

Também difícil para Lenine é falar de tudo o que aconteceu em 2015, ano de uma perda que nenhuma medalha pode atenuar. É por isso a lutar contra as lágrimas persistentes que ele deixa claro o quão marcante foi esse ano.

«Em 2015 perdi a minha mãe para o cancro. Perdi tudo, no fundo. Deixei de ter a minha melhor amiga, a minha maior fã, e fui-me completamente abaixo. O meu mundo desabou e estive um mês e meio sem treinar. Ia para a pista, mas dava uma volta e vinha embora», relata emocionado.

Mas foi a mãe, e as palavras que ela lhe deixou, que ajudaram Lenine a reerguer-se.

«Tive de reencontrar a minha motivação e foi nela que tudo começou. Na cama do hospital ela tinha-me pedido para eu não deixar de correr atrás dos meus sonhos e a fazer aquilo de que mais gostava», confidencia.

2015 foi também ano de Mundial, marcado para outubro, em Doha. A prova mais emotiva em que Lenine participou.

«Cheguei numa forma em que nem eu sabia que estava», assegura. O resultado foi a medalha de ouro mais significativa que alcançou.

«Quando subi ao pódio senti a minha mãe comigo e chorei compulsivamente», confessa.

Melhor atleta do mundo e uma marca especial

Depois de inúmeras conquistas, em 2017 o atleta de Gaia recebeu uma distinção da qual também muito se orgulha: a de melhor atleta do mundo, atribuída pela Federação Internacional para Atletas com Deficiência Intelectual.

O prémio, contudo, não o fez parar de procurar somar mais medalhas e, fez um ano precisamente nesta segunda-feira, Lenine Cunha conquistou a 200.ª medalha internacional. Parar por aí? Nada disso, nesse mesmo dia somou mais duas.

Lenine conquistou a medalha internacional número 200 no dia 9 de março de 2019Legenda

Mas se as 200 medalhas eram uma meta que ambicionava, neste momento deixou de buscar um número. «Serão as que forem. Os meus seguidores pedem-me 250, outros 300, outros 220, mas eu não tenho mesmo uma meta definida.»

As seis que trouxe da Polónia em fevereiro, contudo, não devem ser as últimas. Porque a persistência continua inabalável.

«Honestamente, as medalhas de ouro [triplo salto e de heptatlo] foram inesperadas para mim. Já não ganhava um ouro desde 2017, ano em que fui operado. E vencer esses dois títulos no primeiro dia da prova deu-me uma motivação extra para os outros dias. Foi mais uma prova de que a persistência dá frutos», orgulha-se.

Depois do título mundial de triplo salto e de heptatlo, há mais provas em vista e um grande objetivo pelo qual ainda corre este ano.

«Apesar das medalhas, ainda estou longe da minha melhor marca. E tenho até junho para alcançar o mínimo para aqueles que serão os meus últimos Jogos Paralímpicos», aponta, olhando de forma realista para essa prova.

«Se lá chegar, vai ser muito difícil lutar pelas medalhas. O nível está muito elevado, por isso ficar entre os finalistas, aos 37 anos, seria um bom resultado», assume.

Apesar de perceber que o fim de carreira se aproxima, Lenine Cunha não pensa nisso. Até porque os resultados não lho permitem.

«Enquanto for a Europeus e Mundiais e continuar a conquistar medalhas, não posso pensar em deixar. Só o poderei fazer quando os resultados deixarem de aparecer», aponta.

O futuro, esse, terá de estar ligado ao atletismo. A ideia é persistir, pois claro.

«O que vou fazer quando terminar a carreira? Ora aí está uma boa pergunta… à qual não sei responder», atira, embrulhado numa gargalhada. «Tenho de pensar nisso. Aquilo que sei é que gostava muito de treinar miúdos. E manter-me ligado ao desporto paralímpico, para poder passar a minha experiência», refere.

Porque o mais difícil, muitas vezes, é aceitar as quedas e encará-las como uma possibilidade de reerguer de novo. E Lenine, melhor do que ninguém, sabe o que é preciso para o fazer. Prova disso, é a forma como fala da doença que lhe revolucionou a vida.

«Eu vejo a meningite como um terrível acontecimento e uma feliz coincidência. Porque foi por causa dela que os meus pais me levaram para o desporto. E apesar das sequelas que a doença me trouxe até hoje, se não fosse ela, talvez nem fosse desportista e, muito provavelmente, não seria o atleta que me tornei. Nem teria vivido os bons momentos que vivi e que, no fundo, também foram consequência da doença.»

Artigo original: 09-03; 23h54