«Mais longe e mais alto» é uma rubrica do Maisfutebol que olha para atletas e modalidades além do futebol. Histórias de esforço, superação, de sucessos e dificuldades.

Catarina sempre gostou de desporto.

E era apaixonada por um clube.

Como qualquer outra criança, no fundo.

Era muito pequena quando se iniciou na natação e no ténis. Mas quando experimentou o judo, aos 10 anos, o tal clube de sonho já pairava na cabeça de Catarina.

Um clube que era uma tradição familiar. De quase toda a família. E do avô Domingos. Foi muito por culpa dele que paixão foi crescendo. E também ganhava força naqueles dias em que ia pela mão do tio assistir aos jogos da equipa  de futebol.

Aos 13 anos, quando a evolução no tatami era tal que o pequeno clube de bairro já se tornava curto para o talento de Catarina, o sonho começou a ganhar cor. Aqueles primeiros treinos deixaram-na rendida e a ligação oficial não demorou a surgir.

Catarina tinha 14 anos e estava a viver o sonho.

Aliás, aos 25, a agora vice-campeã europeia de -48kg, continua a viver essa história de amor.

«A cidade de Coimbra e a Académica dizem-me tanto que sinto que o meu percurso só faz sentido aqui. Quando eu era miúda, a Académica era o meu clube de sonho. E hoje continua a ser o meu clube de sonho».

É a paixão que tempera as palavras que Catarina Costa troca com o Maisfutebol. Sobretudo, já se percebeu, quando o tema é a Académica.

Não há nada a fazer. Aquele símbolo com a sombra da «Cabra», a icónica torre do relógio da Universidade de Coimbra, podia ser o brasão de família, tantas as vezes que foi desenhado por Catarina como prenda para o avô Domingos.

«Tenho mesmo de dizer que é um orgulho gigante poder representar a Académica, não só a nível nacional como internacional», acrescenta.

Como se fosse preciso.

É fácil perceber que a paixão não diminui um milímetro. Mesmo que esta Catarina seja já muito diferente da menina que um professor desafiou a experimentar o judo, depois de a ver um dia jogar futebol no recreio da escola.

E é também de paixão que se pode falar quando o assunto é o judo.

Mesmo que a curiosidade que a fez entrar no tatami pela primeira vez se tenha transformado já numa explosão de sentimentos, aquele gosto que o judo lhe provocou ao primeiro contacto continua a ser aquilo que mais a move.

Entretanto, as referências dos tempos de menina tornaram-se amigos. Telma Monteiro. Jorge Fonseca. Joana Ramos. João Neto.

E João Neto tem um espaço mais especial. O antigo judoca, também ele de Coimbra, e que foi campeão europeu (2008) e venceu uma medalha de bronze no Mundial de 2003, é desde 2010 o treinador de Catarina Costa – que continua a trabalhar também com João Abreu, «Jocá», o primeiro treinador.

João Neto e Catarina Costa em 2012

Catarina Costa e João Neto chegaram praticamente ao mesmo tempo à Académica e têm crescido juntos.

«O João Neto ainda competia quando veio para a Académica e começou a acumular com o papel de treinador. Foi também por causa dele que logo nos primeiros treinos na Académica percebi que era um clube mais voltado para a competição. Os treinos eram mais intensos, treinava-se muito melhor e comecei a ter mais vontade de estar rodeada dos melhores», sublinha a judoca.

Esse convívio com os melhores surge desde muito cedo também na seleção, onde Catarina começou a ir aos 14 anos, numa experiência à qual atribui grande importância para o seu crescimento.

«Na seleção convivi com atletas de referência, que me ajudaram a perceber e moldar sobretudo a minha parte psicológica, a força mental», sublinha.

Prata para acabar com a maldição do quinto lugar

Apesar da juventude, o nome de Catarina Costa já se tornou familiar para quem acompanhe minimamente o judo. Afinal, ela é uma das melhores atletas internacionais da sua categoria há alguns anos.

A competir nos -48, a categoria de peso mais baixa, a judoca de Coimbra está desde 2019, de forma ininterrupta, no top-10 do ranking mundial.

Mas durante muito tempo, parecia haver uma maldição a persegui-la: o quinto lugar.

Foi esse lugar que alcançou no Mundial de 2018, nos Europeus de 2019 e também na estreia nos Jogos Olímpicos, em 2021.

E sobre esse quinto lugar em Tóquio, Catarina confessa um sabor especial por uma razão muito maior do que qualquer competição: a avó Clara.

«A minha avó sempre foi uma das minhas grandes motivações. Faleceu no ano passado e foi uma lutadora: para me ver nos Jogos Olímpicos, aguentou-se e lutou contra a doença. E sempre teve um grande orgulho em mim», explica a judoca.

Voltando ao malfadado «quinto lugar», Catarina Costa explica que essa é uma posição que a acompanha há mais tempo.

«Isso já vinha de trás. Em juniores também tinha ficado em 5.º nos Europeus e Mundiais. Ficava sempre ali à porta das medalhas. Logo a seguir aos Jogos, no Open de Paris, também fui 5.ª, depois no Masters também. 2021, então, foi o ano dos quintos: foram cinco!», exclama.

Catarina Costa conquistou a primeira medalha internacional ainda com idade de cadete

Essa sina, porém, parece ter ficado para trás. Catarina Costa acabou com a maldição em 2022. E no final de abril conseguiu o melhor resultado da carreira em grandes competições.

«Abri o ano a ganhar o ouro no Grand Prix de Portugal, em Almada. E agora no Europeu meti na cabeça que tinha mesmo de acabar com esta história dos quintos lugares», começa por desabafar.

«Tinha noção que chegar à final seria o importante e foi esse o meu foco. Com muita antecedência, estudámos três ou quatro adversárias que sabíamos que quase de certeza eu ia enfrentar. Preparámos muito bem os combates e depois foi um alívio conquistar a medalha de prata», resume.

Força mental. Aquilo que Catarina Costa diz ter aprendido ao trabalhar na seleção com judocas que eram «referência», foi fundamental para terminar o que parecia ser uma malapata.

E uma semana depois de subir ao pódio em Sofia, a judoca continua sem consegui expressar bem ao que lhe soube aquela prata.

«Demorei alguns dias a assimilar que sou vice-campeã europeia. No dia da prova, o que me ficou foi a concretização de um objetivo e a felicidade por ver o trabalho recompensado», aponta.

Além do valor em si, essa conquista valeu-lhe a subida ao terceiro lugar do ranking mundial. Um feito ao qual Catarina Costa atribui também um grande valor.

«Tem um significado enorme. Comecei a competir em 2018 com um ranking muito mau. Era 114.ª ou 116ª do mundo. Acabei esse ano no top-16, que me valeu a ida ao Masters, que era muito restrito. Mas estar desde 2019 entre as dez melhores do mundo mostra que estou no bom caminho e que tenho sido muito regular», enaltece.

E mais: este terceiro lugar é, na prática, o segundo do ranking, uma vez que a segunda classificada, a kosovar Distria Krasniqi, mudou para a categoria de -52kg.

«Manter-me no top-10 ao longo de dois anos e meio, apesar de ter tido algumas lesões e resultados menos bons, tem muito significado. Mas ascender a este segundo lugar prova a minha consistência e é fruto do meu empenho e trabalho, do esforço do meu treinador, do clube que sempre investiu e acreditou em mim, mesmo quando eu tinha um ranking muito baixo», refere.

Agora, sem tempo a perder, a vice-campeã da Europa olha já para os próximos objetivos. O maior deles, o Mundial agendado para outubro, em Tashkent, no Uzbequistão. Mas também de olho já no início do ciclo olímpico.

«Vou fazer uma prova que já vai contar para o ciclo olímpico, que começa em junho. Mas tenho dois anos para procurar esse apuramento, por isso o foco da minha preparação é o campeonato do mundo», explica.

No quinto ano de Medicina… apesar de o judo ser a prioridade

Se percebeu cedo que queria chegar ao topo do judo, Catarina Costa decidiu o que seguir no Ensino Superior… à última hora.

«Só decidi mesmo na minha semana de candidaturas. Acabei o secundário com uma boa média, de 19, e usei estatuto de atleta de alta-competição. Comecei a ponderar Biologia, que era uma área de que gostava, mas não me imaginava a trabalhar nela. E depois, gostava da área da Saúde, e da possibilidade de estar ligada a uma profissão que me permitisse ajudar as pessoas. Isso era algo que sempre me tinha fascinado, por isso acabei por optar por Medicina», revela.

A escolha recaiu, portanto, num dos cursos mais exigentes, que lhe dará acesso a uma das profissões de maior responsabilidade.

E só esses fatores são suficientes para perceber quão dura é a tarefa para alguém que vive entre duas áreas tão exigentes como o desporto de alta competição e a Medicina.

Mas nada que assuste a jovem de 25 anos. O essencial é definir o rumo e conciliar a dedicação e organização a cada uma das áreas.

«Apesar de ter de faltar algumas vezes por causa dos estágios e das competições, neste momento o foco principal não é a medicina, é o judo. Sou atleta a tempo inteiro, toda a minha vida é feita em função da exigência dos treinos, o descanso, o sono e a alimentação. Por isso, a data para acabar o curso não está definida».

Ainda assim, Catarina Costa, que se desafiou a fazer cada ano do curso em dois, está no quinto ano do curso da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra.

Ou seja, o judo nunca foi entrave para nada. Bem pelo contrário. A exigência da alta competição ajuda a judoca na hora de trocar o tatami pelos livros.

«Desde muito nova que estou habituada a organizar a minha vida em função dos treinos. Essa base foi-me ajudando a equilibrar melhor as duas vertentes. Acredito que o judo me dá a disciplina que é necessária para conciliar duas coisas tão difíceis», explica.

«Mesmo quando não estou com cabeça para me concentrar no estudo, tenho a disciplina para perceber que tem de ser e faço-o. Além disso, a competição ajuda-me a lidar com momentos de stress, como exames ou apresentações. Ajuda-me a gerir a ansiedade porque tenho de lidar com momentos de pressão e tensão no meu dia-a-dia de atleta», acrescenta.

E no meio destes dois mundos, qual das Catarinas sente mais pressão: a judoca ou a estudante de medicina?

«As pessoas não acreditam quando digo, mas já há alguns anos que deixei de sentir pressão a combater. A pressão que sinto é a que me coloco. Não me deixo afetar pela pressão externa», introduz.

«Tenho mais pressão num exame. No judo, sei que me preparo muito bem para os combates. Enquanto nos exames, às vezes sinto que não estou no máximo, porque não consegui estudar como queria, por exemplo. E aí entra a minha pressão, o não conseguir fazer as coisas como queria».

E aproveitando a sua experiência, a estudante deixa uma sugestão: utilizar o exemplo do que aconteceu durante a pandemia para facilitar a tarefa dos estudantes com estatuto de alta-competição.

«Durante a pandemia, com as aulas online, consegui acompanhar as aulas todas. Estive a assistir a aulas em França, ou Abu Dhabi, por exemplo. E foi a primeira vez num ano que não faltei a nenhuma aula. Infelizmente, essa possibilidade não vai continuar a existir, o que é uma pena porque o modelo estava a funcionar bem», lamenta.

E apesar de ter ainda alguns anos do curso pela frente, a futura médica aponta o caminho que tem delineado. Apesar de ressalvar que esse não é mesmo a sua preocupação neste momento.

«Para já, quero desfrutar enquanto atleta. O tempo de uma carreira desportiva é curto. Isto termina em poucos anos e depois tenho a vida toda para exercer Medicina. Só o futuro dirá, mas poderei ficar ligada através da medicina desportiva. Para já, é isso que está no meu horizonte», revela.

«Sempre quis ser um exemplo para os mais novos»

Ora, com a carreira de judoca ainda bem longe da reta final, Catarina Costa ainda não pensa muito no que fará quando deixar de combater. Contudo, obviamente, sabe que quer ficar ligada às suas paixões.

E até vai ouvindo umas «bocas» de vez em quando de João Neto.

«O meu treinador diz-me muitas vezes. ‘Depois, quando fores treinadora, ajudas-me’. E acho que ele não está muito enganado», diz, sorridente.

«Sei que quero ficar ligada à Académica e dar o meu contributo para as novas gerações. Não sei se isso vai passar por ser treinadora ou estar na direção, por exemplo».

Aquilo que a jovem judoca sabe com toda a certeza é que gostava que os mais novos olhem para ela e encontrem no percurso que tem trilhado uma referência.

«Gostava de servir de exemplo para os mais novos. Não sei se foi pelo que senti quando comecei a ir à seleção, mas sempre quis servir de inspiração para os mais pequenos», revela quem já sente que isso acontece no dia-a-dia.

«Quando acabo os treinos, muitas vezes há miúdos ali no pavilhão que mostram ter admiração por mim. Vêm falar-me, sabem o meu nome e isso deixa-me feliz. Porque eu faço isto também pela geração que aí vem. Estou cá também para os ajudar porque quero que encontrem no judo uma segunda família, que sintam que vai fazer parte da vida deles e que os ajude a crescer enquanto pessoas», explica.

E há mais uma ideia bem clara na cabeça da jovem conimbricense e academista.

«Quero também mostrar às gerações mais novas que é possível ser-se atleta de alta-competição longe dos grandes centros. Mesmo que eu tivesse uma proposta para sair, não o faria. A menos que a Académica deixe de ser em Coimbra, acho que nunca vou mudar de clube. Quero ficar na Académica para sempre», finaliza.

Quem disse, afinal, que é preciso uma despedida para se viver o encanto de Coimbra?

Catarina Costa com Jocá, o treinador que a acompanha desde criança

OUTROS «MAIS LONGE E MAIS ALTO»
O sonho da bicicleta começou nas Caldas e tem meta nas grandes voltas
Aos 17 anos era top mundial, aos 31 diz que o melhor está por vir
Patrícia Esparteiro: uma campeã no karaté a preparar o adeus em casa
A portuguesa mais rápida de sempre só arrancou aos 24
A menina do Sabugal que ajudou o Nun’Álvares a fazer história contra o Benfica
O milagre luso nos Jogos Olímpicos que começou numas férias de Natal

O ‘Special One’ dos dardos: «Vou tentar jogar até de muletas ou bengala»
Cresceu no Benfica, voou ao deixar o ninho e está às portas do céu
Um nome maior do badminton português voltou ao topo do mundo
Prata mundial entre mortais, piruetas e investigação oncológica
Nadar, pedalar e correr: o triatlo no sangue dos irmãos Batista
Vicente: nome próprio de 12 ouros e três recordes do mundo aos 16 anos
Rui Oliveira: um campeão na pista com os Jogos Olímpicos como meta
«Deram-me como acabado quando saí do Benfica: cerrei os dentes e fui campeão do mundo»
Nuno Borges: dos estudos e do ténis nos EUA até ao sonho no Estoril
Há um ano pensou desistir, a resiliência valeu-lhe o bronze no Europeu
Zicky: o menino da Guiné que foi do rinque ao Sporting e à Seleção
Auriol Dongmo: a portuguesa de coração que fugia de casa para lançar
O cinturão negro de Karaté que chegou a melhor do mundo no andebol
Recorde com 23 anos e bilhete para Tóquio após paragem na carreira
Só queria jogar com Nuno Gomes no Benfica, agora é a melhor do mundo
Há um ano jogava no Benfica e na seleção, agora sonha com informática
Rochele derrubou o racismo e agora quer medalha olímpica no judo
«É muito bom acordar de manhã e poder dizer que sou campeão da Europa»
Guerreiro: o cowboy de Pegões fez-se rei da montanha no Giro
O filho e neto de ciclistas que teve de passar o ano para ganhar a Volta
Vilaça «enfrentou» tubarões e crocodilos para chegar ao topo do mundo
O campeão que trocou as rodas pelas lâminas em busca do sonho Olímpico
Edu Sousa, o jovem guardião português que brilha no futsal espanhol
Gustavo Ribeiro, o miúdo lançado para o topo do mundo por uma prenda de Natal
«Transformei numa profissão o estilo de vida por que me apaixonei»
Recordista nacional venceu a Covid-19 e agora sonha com os Jogos Olímpicos
«O andebol foi diminuindo no meu coração e a medicina aumentando»
Quando outros ventos falham, é o sacrifício e amor à vela que os move
«O meu pai está a cumprir o seu dever de salvar vidas»
«O auge do MotoGP é ser campeão do Mundo e eu quero chegar lá»
«Sinto o sonho dos Jogos Olímpicos a fugir-me por entre os dedos»
Resistiu à doença, derrubou o preconceito e conquistou o mundo
Bruno Torres: no topo do mundo, mas com os pés bem assentes na areia
Leva uma «carreira a solo na vida», mas voa de recorde em recorde
O pai fez história no Benfica, o filho brilha no FC Porto e na seleção
«A minha perna esquerda vale ouro, a direita é só para subir degraus»