«Mais longe e mais alto» é uma rubrica do Maisfutebol que olha para atletas e modalidades além do futebol. Histórias de esforço, superação, de sucessos e dificuldades.

Em Vila Nova de Gaia, há pouco mais de 25 anos, nasceram dois irmãos gémeos para o ciclismo. Os Oliveira. Além de Ivo, Rui. O último foi, há 11 dias, rei da Europa na pista: conquistou a medalha de ouro no scratch, a sua primeira dourada em elites. Sucedeu ao compatriota Iúri Leitão, com quem também somou um bronze no madison, em Grenchen.

É, não só, mas também graças a Rui Oliveira, que o ciclismo de pista em Portugal ganhou uma força que não se via nem há coisa de dez anos (o próprio também destaca o selecionador Gabriel Mendes neste processo). Mas os velódromos são (só) um «complemento». A sua praia é a estrada. Já correu duas Vueltas, estreou-se recentemente no Paris-Roubaix e é colega de Tadej Pogacar na UAE Team Emirates, que vai ter em 2022, além de Rui, Ivo e Rui Costa, João Almeida.

Dos inícios à boleia de uma família ligada ao ciclismo, a história do menino que chegou a praticar karaté e que, agora, só vê o auge na pista com a ida aos Jogos Olímpicos: esta semana, estão já aí os Mundiais (de dia 20 a 24). Na estrada, há ainda muito a correr para o vice-campeão nacional. Para pedalar e conquistar.

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O 7 de outubro trouxe uma das maiores alegrias à vida desportiva de Rui Oliveira. Ouviu o hino na Suíça, depois de pulverizar perante a concorrência europeia no scratch.

«Subir ao pódio e ouvir o hino nacional é o culminar de todo o esforço e trabalho de quando consegues uma vitória. Vês o trabalho e o esforço recompensados. Não há sensação mais especial. Eu ia tranquilo para o Europeu. Queria, principalmente, desfrutar e lutar por uma medalha, mas não ia com muita pressão. Consegui uma medalha de ouro, a minha primeira de elites. Já andava há procura há anos e, no madison, conseguir medalha com o Iúri, apesar de ter sido bronze, foi acabar com chave de ouro os Europeus, porque é disciplina olímpica. O Iúri já tinha conseguido uma medalha, o João Matias igual e fecharmos os dois com outra medalha foi espetacular para a seleção», atira Rui Oliveira, que protagonizou até um momento curioso após o bronze com Iúri. Culpa de uma chapada no capacete.

«Ele ainda estava muito cansado, incrédulo, com todas as emoções à flor da pele e eu estava ali a tentar acordá-lo e foi quando lhe dei uma palmada no capacete e a viseira caiu (risos). Foi um momento engraçado, fica para a história».

2021 está quase a terminar para Rui, mas há ainda há um objetivo importante: os Mundiais de pista, em França, de quarta-feira a domingo. É um dos quatro nomes da seleção. «Vou com a mesma ambição que fui para o campeonato da Europa. Vou tentar lutar por uma medalha. Será bastante difícil, mas é para isso que vou, tenho ambição. Estando a representar o país, vou fazer para que venha uma medalha para Portugal».

Isto num ano em que foi vice-campeão nacional de fundo – apenas atrás de José Neves – estreou-se no Paris-Roubaix e fez a sua segunda Vuelta, de onde saiu com um «amargo de boca» pelo segundo lugar numa das etapas. Por isso, só sente que lhe «falta aquela vitória» para a afirmação na estrada. «O ano foi positivo, a cada ano estou a evoluir, na estrada principalmente, é o que quero, porque sou ciclista de estrada e a pista é mais um complemento».

Do karaté até aos Merckx e a influência da família pelo meio

Rui Oliveira, tal como Ivo, praticou karaté quando era mais novo, mas as ligações familiares ao ciclismo rapidamente colaram ambos às duas rodas. Hélder Oliveira, o irmão mais velho, foi ciclista. O pai também chefiou uma equipa portuguesa.

Leões Cabanenses, Escola de Ciclismo Fernando Carvalho, Arca de Noé, Escola de Ciclismo Venceslau Fernandes, Bairrada e Bike Clube de Portugal (atual Kelly/Simoldes/UDO). Este foi o percurso de Rui em equipas portuguesas. Por isso nem chegou a ir (ainda) a uma Volta a Portugal. Em 2016, depois de dois anos sub-23 na Bike Clube, rumou à equipa norte-americana Axeon, liderada por Axel Merckx (filho do consagrado Eddy) e rampa de lançamento para talentos lusos: ali passaram Ruben Guerreiro, André Carvalho e João Almeida. «Tivemos ajuda do nosso agente, o João Correia, ele já tinha impulsionado o Ruben para essa equipa e depois de o Ruben ter mostrado que os portugueses são bons atletas e capazes de bons resultados, acreditaram em mais portugueses. Foi um lançamento grande para onde estamos», reconhece Rui, que não esquece o contacto único que teve com Eddy Merckx.

«Uma vez estávamos a fazer uns testes físicos na Bélgica, na casa do pai do Axel e o Eddy Merckx passou por nós. Começou a falar connosco, a perguntar como estávamos, como estavam a correr as coisas e ver ali uma pessoa que é, se calhar, a mais famosa do ciclismo mundial, e nós estando a crescer, é fenomenal e fica marcado para sempre».

«Adoro a estrada, mas a pista tem um lugar especial»

Estrada como foco no futuro. Pista no sucesso do presente.

Rui Oliveira tem somado medalhas em cima de medalhas na pista desde o escalão júnior e talvez por isso seja «difícil» escolher entre uma e outra. «Eu sou corredor de estrada e adoro estrada, mas a pista tem sempre um lugar especial na minha vida, porque desde pequeno que faço e conquistei grandes coisas, medalhas em campeonatos da Europa e do Mundo e isso deixa-te com outro sentimento para a pista. Ainda tenho o sonho de ir aos Jogos Olímpicos Paris 2024 e sem atingir esse objetivo na pista acho que não vou estar realizado», garante quem, por semana, chega a fazer cerca de 800 quilómetros a pedalar em treino.

«Na estrada são muitas horas em cima da bicicleta para ganhar o endurance, fazemos várias etapas de quatro a cinco horas todos os dias. Tem a sua parte de velocidade, mas na pista é totalmente diferente, a cadência na bicicleta, a rotação das pernas… são provas explosivas, o treino tem de ser direcionado para esforços curtos e intensos. Na estrada também fazemos isso, mas é para esforços mais longos», explica.

O amigo João Almeida e o «tranquilo» Pogacar

Tadej Pogacar, Rui Costa, Diego Ulissi, Fernando Gaviria, Matteo Trentin e companhia. Rui Oliveira está no meio de um elenco na UAE Team Emirates que promete ter protagonismo em 2022. Está ali desde 2019 e vai ter agora João Almeida como companheiro na equipa dos Emirados. Já travou algumas «guerras» com o caldense, mas é um grande amigo.

«Já corri com ele na Axeon, no meu último ano e no primeiro dele. Chegámos a fazer bastantes corridas e também pela seleção. Já tivemos aí algumas guerras (risos) dentro do pelotão, quando éramos mais novos, mas somos grandes amigos e apoiamo-nos bastante. Gosto de apoiá-lo e falo com ele, muitas vezes nada relacionado com o ciclismo. Vindo para Emirates, vai ser uma grande valia. Tem o talento que tem, é uma pessoa espetacular, juntando também o Rui Costa, pessoa cinco estrelas e que nos ajudou bastante. Acho que vamos ter um grupo fantástico», atira.

E Pogacar, de 23 anos, vencedor dos dois últimos Tour?

«Já não é preciso dizer o que ele é como ciclista, porque está aos olhos de toda a gente: o melhor do pelotão neste momento. Mas como pessoa é que mostra o que ele é: uma pessoa amiga, incrível de estar, calmo e de mentalidade vencedora. Está tranquilo a construir o seu patamar naturalmente. Se calhar é o líder que deveria ter toda a pressão e metem pressão sobre ele, mas ele não tem pressão a correr, está sempre com as suas piadas, sempre tranquilo e depois mostra tudo o que é na estrada, aquele guerreiro», partilha.

                                              Ivo Oliveira e Rui Oliveira juntos na UAE Team Emirates

«Paris-Roubaix? Horas loucas»

Antes dos europeus de pista e já depois do campeonato do mundo de estrada – onde foi o melhor português na prova de fundo – Rui foi pela primeira vez na carreira ao Paris-Roubaix, um dos cinco ‘monumentos’. Não terminou, mas viveu «umas horas loucas». Afinal, viu-se chuva e lama como há muito não se via no ‘Inferno do Norte’.

«Como ciclista, viver aquilo é simplesmente incrível. O Paris-Roubaix é das provas mais míticas no ciclismo. Acho que é das corridas que mais chama a atenção, é uma prova que tem anos e já não tínhamos um Paris-Roubaix com chuva e lama há 20 anos. Iniciar o meu primeiro e ser com lama, com chuva e viver esses pavês, apesar de não ter terminado… foram umas horas loucas e não se esquecem. Eu estava bem fisicamente, mas houve ali fases em que, devido a toda a lama e chuva, comecei a não ter tanta travagem na bicicleta. Afetou um pouco, depois também tive um furo, coisas normais num Paris-Roubaix. Não foi este ano que terminei, mas quero voltar para me vingar e terminar», conta.

Depois da Vuelta, Giro e Tour na mira. Com contrato até 2023 com a atual equipa e tendo 2022 já bem perto, Rui admite que gostava de «fazer outra grande volta». «Se estiver preparado para isso e se a equipa quiser contar comigo, seria um orgulho enorme. Para já ainda não falei nada do calendário com a equipa, será para breve. Mas o principal será continuar a ajudar a equipa nas principais corridas e gostava de estar bem na altura das clássicas».

Mas para já, mesmo, o foco é nos Mundiais. Depois de campeão da Europa, virá aí campeão do mundo?