Mário Faria tem 23 anos, mas já é um exemplo de superação. No natal de 2015 viu o mundo desabar aos pés com um cancro diagnosticado no fígado. Nada que tenha amortecido as ambições e os sonhos legítimos de um jovem adulto. O atleta natural de Barcelos arrepiou caminho. Não baixou os braços e saiu vencedor do jogo mais importante de sempre. 

Um ano depois, voltou a ter os caminhos da vida endireitados. Está a terminar a licenciatura em Desporto. Há dias conquistou o primeiro título da Universidade do Porto no futebol 7. Também joga pelo UD Vila Chã e treina os benjamins do Gil Vicente. Um currículo recheado de sangue, suor e lágrimas. E êxito. 

«Fica difícil ser visto nos campeonatos distritais»

A caminhada de Mário Jorge Pereira Faria no desporto e no futebol começou aos sete anos com as cores do Gil Vicente, o clube da terra natal. «Desde sempre me lembro de andar a jogar à bola com amigos na rua, na escola, no bairro da minha avó, em todo o lado. Por isso não foi um acaso, é uma paixão que já nasceu comigo e que ainda perdura», realça o jogador de 23 anos em conversa com a MF Total.

No futebol sénior saboreou duas divisões da Associação de Futebol de Braga (AF Braga). Começou pela Divisão de Honra, carregando ao peito dois emblemas de Esposende: o Vila Chã e o Forjães, pelo qual conquistou o primeiro título da carreira. Até que chegaram os pontapés na Pró-Nacional em pleno verão de 2015. Mário Faria cumpriu apenas noventa minutos pelo Santa Maria, antes de baixar na hierarquia do futebol nacional.

Regressou à Divisão de Honra, para chefiar a defesa do Roriz. «Por desconhecimento, a maioria das pessoas pensa que os campeonatos distritais não têm qualidade. São olhados com algum desprezo e desvalorizados. Para alguém que tenha maiores ambições, fica difícil ser visto. Enquanto no Campeonato de Portugal a possibilidade de ascender a uma segunda ou até primeira liga pode ser uma realidade, aqui fica muito complicado subir uma divisão que seja», lamenta, para depois destacar o nível competitivo do futebol praticado.

«Qualquer equipa pode ganhar ou perder com qualquer outra. Aliás, durante esta época tivemos uma fase de sete jogos sem vencer. Quebramos essa série com uma vitória em casa do campeão [Arões], por isso tudo pode acontecer», afiança, recordando a temporada que acabou de exercitar no Vila Chã. A equipa esposendense tinha a terceira média de idades mais baixa (25,15 anos), só atrás de Santa Maria e Vieira. Sinais de uma aposta vagarosa no talento jovem.

Mário Faria tem carreira feita no futebol distrital bracarense (Foto arquivo pessoal)

«Penso que neste momento estamos num processo lento de mudança de mentalidades. Com o sucesso das nossas seleções jovens, com a aposta maioritariamente ganha nos jogadores da formação e com a criação das equipas B, o jogador jovem com qualidade é cada vez mais valorizado. Por isso existe cada vez uma maior aposta nos jovens, da qual o nosso campeonato não é exceção», salienta o defesa central, considerando há um longo caminho para percorrer.

«Isso não quer dizer que a valorização da idade não exista. Bem pelo contrário! A experiência ainda é mais valorizada que a juventude, mas tem tendência para vir a perder força em detrimento de um conceito chamado qualidade», sustenta.

«Percebi que algo estava errado. Não restou pedra sobre pedra»

Recuando um ano, a vida corria de feição a Mário Faria. Senão vejamos: faltava-lhe um semestre para concluir a licenciatura em Ciências do Desporto; orientava os benjamins do Gil Vicente; e ainda arranjava tempo para envergar a camisola do Roriz. De repente, uma viragem de 180 graus. A tempestade batia à porta e o jovem barcelense foi obrigado a abdicar de tudo.

«Sempre fui uma pessoa muito saudável, ligado ao desporto e com cuidados de alimentação. No entanto, nos últimos dias do mês de novembro andava com uma tosse seca e estranha. Acabei por fazer uma série de exames em que me fui apercebendo que poderia ser algo complicado», revela. Era mesmo. O sistema linfático descontrolou-se. Suportou um cancro, quando Mário pensava tratar-se de uma sarcoidose. Em todo o caso, estava aí o jogo mais importante da sua vida.

«Na verdade, só recebi a notícia em janeiro de 2016. Estava em casa com o meu pai e a minha mãe chegou do hospital de Barcelos, onde já tinham falado com ela. Voltámos ao hospital e no caminho escorreram-lhe as lágrimas pelos olhos. Percebi que algo estava errado. Quando lá chegamos fomos para uma sala com uma médica, que nos pediu para sentar e ter muita calma», conta. A expressão «linfoma de Hodgkin» começava a entranhar-se nas cabeças da família Faria. 

«Nem por um momento cedi ou verti uma lágrima. Primeiro porque não tive nem quis ter noção da dimensão. Segundo, e mais importante, não queria que os meus pais me vissem sofrer. Eles ficaram muito abalados. Eu queria tudo menos isso», confessa o futebolista, cuja vida «parou simplesmente».

«Não restou pedra sobre pedra, como se costuma dizer. A partir do momento que percebi o que tinha, o meu pensamento foi: ‘Agora não há nada a fazer. Apareceu-me isto, tive azar, mas vou mostrar que sou forte e vou superar isto por mim e pelos que gostam de mim’», recorda, movido pela considerável taxa de sucesso de recobro.

Rastilhos de uma maratona «extenuante mentalmente»

Nos tempos de faculdade, Mário passava à porta do Instituto Português de Oncologia do Porto (IPO-Porto) como mero estudante. Depois, passou a entrar lá na condição de doente. Durante seis meses enfrentou doze sessões de quimioterapia. As dores começaram no corpo, mas evoluíram para a mente.

«Só com os tratamentos é que comecei a sentir-me pior. Pode parecer um paradoxo, mas é a realidade. Sinceramente, a parte física pesava mais no início. Apesar de até ter reagido bem, os três primeiros dias subsequentes a cada tratamento eram bastante agressivos. O cansaço acaba por apoderar-se de nós de forma natural. Já numa fase posterior, a parte psicológica começou a pesar mais. Na véspera do tratamento começava a sentir-me enjoado e sem vontade de comer, ao saber os dias que se avizinhavam», relata, recordando a maratona que tinha de cursar no IPO-Porto.

«Começava logo cedo com análises. Os tratamentos eram à tarde e duravam cerca de três horas. Estávamos sentados num cadeirão, numa sala em regime de ambulatório, com muitas pessoas à nossa volta a passar pelo mesmo. Alguns em estados muito débeis. Isso impressionava-me. Não era um tratamento doloroso no imediato, só horas mais tarde. Acima de tudo era extenuante mentalmente», lamuria.

Bravura? Ponham David Guetta e Zara Larsson a cantar em dueto

Perante cada obstáculo, Mário Faria mantinha uma postura inquebrantável. Alimentava crenças positivas num recobro eficaz. «Muito honestamente nunca fui abaixo. Claro que no início pensei o porquê de ter sido comigo. É normal, humano e legítimo, acho eu. Mas foi sol de pouca dura. Rapidamente pus mãos à obra. Sou muito perfecionista e acho que até aqui quis competir. Queria ganhar este jogo o mais rápido possível e de forma convincente. Gostava demasiado da minha vida e dos meus para deixar fugir tudo desta forma», sublinha.

O futebolista de 23 anos nunca caminhou sozinho. As forças provinham de histórias célebres sobre lutar e regressar ao jogo com sorrisos desenhados pelos lábios. Éric Abidal, que voltou a jogar futebol depois de ter derrotado um cancro no fígado, foi inspiração natural. Contudo, as referências do jogador barcelense estavam em casa, à distância de um simples abraço.

«Todos nós deveríamos gostar dos nossos pais. Eu amo os meus desde sempre. Mas o que eles fizeram durante o tempo em que estive mal foi incrível. A vida deles ficou igualmente congelada, como se a dor estivesse dividida por três. Assim ficava mais fácil de suportar», nota, valorizando o papel da restante família, dos amigos próximo e de «uma afilhada pequenina que dava forças para cá ficar a cuidar dela».

A família foi o suporte do jovem durante a cura do linfoma (Foto arquivo pessoal)

Por mais dificuldades que aparecessem no caminho, o futebol nunca saiu das cogitações. Era uma espécie de refúgio para menorizar o sofrimento diário. «Custava-me tanto não poder jogar que a única forma de atenuar essa mágoa era acompanhar tudo o que pudesse», assume. Tempo não faltou, simbolismo tampouco. Os quilómetros finais da maratona coincidiram com os derradeiros jogos das quinas no Europeu de França. Nas duas provas, a vitória surgiu ao fundo do túnel escrita em letras gigantes.

«O meu último tratamento foi dia 4 de julho. Por isso acabei por encarar o percurso da nossa seleção quase como uma analogia face ao que estava passar. Difícil, sofrido, mas no fim tudo daria certo. Eu sentia isso, tal como o mister Fernando Santos sempre sentiu que iriamos ser campeões europeus», compara, exemplificando a preponderância que o evento gaulês teve nas batalhas seguintes.

«Antes de todos os meus jogos tenho de ouvir a música oficial [«This One's For You», de David Guetta e Zara Larsson]. Tornou-se uma superstição e ainda hoje me arrepio e emociono. Dá-me força e faz-me lembrar que só o facto de estar ali já é fantástico!», frisa.

«Se subirmos de divisão, serás o primeiro reforço da nova época»

Nove meses de martírio volvidos, Mário Faria regressou oficialmente aos relvados. Havia sorrisos a ofuscar o alívio inerente à retoma de uma forma de estar na vida. «Voltei a sentir-me em casa. Parecia uma criança cheia de felicidade quando tem um brinquedo novo. No início custava-me muito porque estive parado muitos meses e levei com medicamentos fortíssimos e agressivos para o meu corpo. Foi difícil recuperar, mas usufruí de todos os momentos. Cheirava a relva, tocava nas paredes do balneário… Tinha saudades de tudo aquilo e foi ótimo voltar», desabafa.

Facto é que o regresso ao futebol já estava acordado nos bastidores. O Vila Chã recuou no tempo e lembrou-se de já ter integrado um central alto e esguio no plantel principal. «Ainda antes de começar os tratamentos, o presidente Luís Garrido ligou-me. Estavam muito bem posicionados para subir de divisão. Disse-me que, caso isso se concretizasse, eu seria o primeiro reforço da nova época. O que dizer disto?», reflete.

O defesa central rubricou o regresso ao futebol em julho de 2016. (Foto UD Vila Chã)

A época 2016/17 originou avaliações mistas. A formação barcelense não saiu do último lugar da Pró-nacional e consumaram um célere regresso à Divisão de Honra. Para Mário, o desfecho prendeu-se com detalhes. «O Vila Chã tinha alcançado uma subida notável, ao estilo do título do Leicester em Inglaterra. Éramos, de longe, o clube com menor orçamento, experiência e quantidade de opções no campeonato. Disputámos praticamente todos os jogos até ao último minuto, mas vacilámos nos pormenores que podiam fazer a diferença».

Em sentido inverso, o defesa está nomeado para melhor jogador da prova, entre 26 jogos e um remate certeiro. «Talvez tenha sido a minha época mais bem conseguida e regular como sénior. Possivelmente a vontade com que vinha e a mudança de mentalidade ajudaram», destaca.

Glória universitária para coroar regresso à academia

Mário Faria teve um percurso desportivo quase sempre associado ao clube da terra. Pelo caminho envergou por três anos o emblema do Núcleo Desportivo «Os Andorinhas» durante três temporadas. Mas foi o Gil Vicente a abrir portas para uma carreira no futebol. Antes como futebol, agora como adjunto dos benjamins.

«Os miúdos ficaram supercontentes pelo meu regresso. Eu também porque já tinha saudades daqueles minis-craques. Fizeram-me algumas perguntas. Queriam saber o que tive concretamente, se estava bem e outras coisas mais difíceis de responder. É normal, são crianças e por consequência muito verdadeiras e inocentes», nota.

Ao mesmo tempo, o barcelense recuperou a matrícula que ficara congelada na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto. Voltou também a sentir as típicas complicações de quem caminha com livros e uma bola debaixo do braço. «Não foi fácil conciliar a faculdade com os treinos. Mas definimos, em conjunto com o meu treinador e os meus colegas, que só treinaria quinta e sexta-feira. À terça não conseguia mesmo», explica.

Além das aulas, era inevitável representar a maior academia do país no desporto universitário. Na penúltima semana de maio, Mário assumiu a braçadeira de capitão da equipa masculina de Futebol 7 da Universidade do Porto. Não podia ter sido melhor inspiração para os companheiros, que arrecadaram o primeiro título nacional universitário na modalidade.

«Sentíamo-nos favoritos. Fomos para Vila Real com uma confiança gigante na medalha de ouro. O treinador tinha-me ligado há dias a dizer que estava convocado. Perguntou-me se tinha disponibilidade e eu disse-lhe: ‘vou lá ganhar o título e despedir-me em grande dos campeonatos universitários’». Dito e feito. A Universidade do Porto derrotou o Instituto Politécnico da Guarda numa final decidida pelas grandes penalidades e fez história. Um triunfo baseado «na qualidade e no incrível espírito de grupo», defende.

Mário capitaneou a Universidade do Porto rumo ao título universitário de Futebol 7 (Foto arquivo pessoal)

Aos 23 anos, o estudante de Barcelos está quase licenciado em Ciências do Desporto. Um mundo do qual jamais pretende abdicar. «Gostava muito de seguir a área do fitness, trabalhar em ginásios e health clubs. Gosto muito dessa atmosfera de superação e motivação. Mais tarde, quando deixar de jogar, gostava de seguir a carreira de treinador. Gosto do treino, dos balneários e de ganhar e quero continuar ligado ao futebol», afiança.

Para já, importa viver cada dia com máxima dedicação. Sorrir a dobrar, sem nunca dar parte fraca. Mesmo atirando para o lado o papel de herói. «Um dia perguntaram o mesmo ao [Andrés] Iniesta. Disse que não fazia mais do que jogar por ele e pela equipa. Comigo é exatamente igual. Lutei por mim e pela minha sobrevivência. Se não fosse eu a fazê-lo, mais ninguém o poderia fazer. Claro que se puder ser um exemplo positivo, uma inspiração para alguém que esteja a passar por algo idêntico, ficarei extremamente orgulhoso e feliz».