«Mais longe e mais alto» é uma rubrica do Maisfutebol que olha para atletas e modalidades além do futebol. Histórias de esforço, superação, de sucessos e dificuldades.

Já alguma vez se imaginou a falar ‘tu cá, tu lá’ com um campeão do Mundo? Por aqui também não era essa a ideia.

Mas Euclides Gomes Vaz é tão simples que a coisa fluiu com toda a naturalidade.

Tendo em conta que falamos de um dos poucos jogadores de futsal que se pode orgulhar de ter vencido todos os mais importantes títulos da modalidade, sabemos que nem precisamos de dizer que aquele ‘Euclides’ é Bebé. O guarda-redes titular da seleção que conquistou o mundo no domingo.

Mas Bebé é também o jogador que o selecionador Jorge Braz diz ser ‘um exemplo de vida’.

E é ainda «o único campeão do Mundo que não é jogador profissional», como o próprio lembrou no momento em que a seleção foi recebida em festa na Cidade do Futebol. Ou o 'garçon' que serve à mesa num restaurante, como lembrou Ricardinho na véspera da final do Mundial que haveriam de conquistar.

Foi com todos esses ‘Bebés’ que o Maisfutebol se sentou à conversa. Foi assim que conheceu um pouco mais do jogador de 38 anos, mas sobretudo do homem. Do filho da dona Isabel. Do pai do Enzo, da Sofia e da Beatriz.

Do exemplo que se esforça por ser para os que o rodeiam, mas também para todos os que seguem a modalidade que abraçou por brincadeira aos 18 anos e que conquistou com muito esforço. Mas sempre de sorriso na cara.

Maisfutebol: Começando pelo berço: de onde vem a alcunha ‘Bebé’, Euclides Vaz?

Bebé: Desde miúdo, no bairro onde morava, eu era o mais pequenino do meu grupo de amigos. E como era o mais novo e também sou o caçula da família, o mais novo de oito irmãos, fiquei Bebé tanto em casa como fora de casa. Era o Bebé, o Bebé e ficou o Bebé até hoje.

MF: Como foi ser o mais novo de oito irmãos?

Bebé: Foi bom. Foi muito bom. Eu tenho consciência de que fui muito protegido pela minha mãe (risos). Sempre que estamos todos juntos, no Natal, por exemplo, eles fazem questão de dizer isso. E eu também tenho noção. E tudo o que precisava, como eles eram mais velhos e já trabalhavam, ajudavam.

MF: A ligação ao desporto vem deles também?

Bebé: Não, não. Nenhum dos meus irmãos fazia desporto. Sempre fui um miúdo muito ativo e desde os oito anos, quando comecei a jogar futebol 11, sempre gostei. O meu sonho era ser jogador de futebol 11, não era ser jogador de futsal. Sempre gostei de desporto.

MF: Começaste no Sporting.

Bebé: Sim, fui fazer um treino de captação e fiquei no Sporting. Os meus treinadores eram o falecido mister César Nascimento e o adjunto era o Nuno Naré, que está no Marítimo. Fiquei quatro anos no Sporting e costumo dizer que passei ao lado de uma grande carreira. Tive colegas como o Quaresma e o José Fonte, que conseguiram singrar no futebol, mas eu passei ao lado.

MF: Não passaste logo do futebol 11 do Sporting para o futsal.

Bebé: Não. Ainda fui emprestado pelo Sporting um ano ao Fofó [Futebol Benfica], depois parei um ano. Voltei a tentar a minha sorte no Sacavenense, onde estive três ou quatro anos e foi o último clube que representei no futebol 11, antes de começar mais a sério no futsal.

MF: Mas já ias saltitando entre o futebol e o futsal…

Bebé: Sim, mas de forma lúdica. Para me divertir. Sou da altura dos Jogos de Lisboa. Eu não treinava futsal, ia só jogar ao fim de semana. Havia domingos em que eu saía de um jogo de futebol 11 de manhã e ia jogar futsal à tarde. Mas era o futebol 11 que predominava na minha vida.

MF: Jogavas a lateral e extremo esquerdo, certo?

Bebé: Sim. Comecei como lateral-esquerdo no Sporting, no Sacavenense passei para extremo esquerdo, depois guarda-redes e terminei.

MF: Mas há aí uma história porque não querias ser guarda-redes.

Bebé: Exatamente. Eu não queria ser guarda-redes, queria era jogar à frente. No Sacavenense, comecei a jogar na baliza, depois fui jogar como extremo e fiz uma época muito boa, com vários golos. Mas na transição para júnior, o treinador não gostava de mim para jogar à frente e disse para eu ir para a baliza. E aí, não fiquei muito contente e não quis ir. Foi assim que terminou a minha história no Sacavenense e no futebol 11.

MF: Deixas o futebol porque te mandaram para a baliza e vais ser guarda-redes de futsal…

Bebé: Exatamente. Quando deixei o futebol, os jogos eram ao domingo. E era o dia em que eu tinha o culto na igreja. E pensei: ‘como já não vou ser estrela nenhuma, vou centrar-me mais na parte espiritual e vou jogar futsal no clube do meu bairro e fazer alguma coisa’.

MF: No ‘Grupo Excursionista Os Económicos’.

Bebé: Sim, fiz um ano n’Os Económicos e convidam-me para fazer as captações no Castelo, que tinha subido à primeira divisão. E depois fui do Castelo para o Sporting, onze anos no Benfica e agora Leões de Porto Salvo.

MF: No futsal, foste sempre guarda-redes?

Bebé: Sim, no futsal fui sempre guarda-redes. A baliza é mais pequena, comecei nos juniores como guarda-redes e fui sempre. Também não tinha muito jeitinho com os pés (risos). Tinha jeito para a baliza e fui até ao fim.

MF: O Jorge Braz disse na segunda-feira que eras um exemplo de vida. Como foi ouvir essas palavras e porque é que ele disse isso?

Bebé: (gargalhada) Para já, tenho de dizer que o mister Jorge Braz foi o treinador mais importante da minha vida desportiva. É um grande treinador, dos melhores do mundo, como eu até já tinha dito antes desta conquista. Mas além de treinador, é também um ser humano incrível. É um treinador com valores e princípios e é a prova viva de que podes ser um grande treinador e uma excelente pessoa. Há uma teoria de que não gosto que diz que tens de ser uma pessoa no desporto e no desporto és outra. Nada disso. Ele transporta os princípios e a educação que tem par o desporto. E é espetacular nisso.

MF: E porque és um exemplo…?

Bebé: A dada altura, quando saí do Benfica, muita gente deu como terminada a minha vida desportiva. Houve pessoas que me disseram: ‘tudo aquilo que tinhas para ganhar, já ganhaste. Sabes que agora não vais ganhar mais nada’.

MF: Davam-te como acabado.

Bebé: Isso foi uma coisa que me incomodou. Mas porque é que o facto de eu estar num clube que não é profissional me pode impedir de almejar algo? Então, cerrei os dentes e decidi trabalhar para manter o mesmo nível e continuar a ser opção na seleção. É por isso que o mister diz isso. Porque muita gente me dava como acabado, mas eu não me dei por vencido, fui à luta, trabalhei e ele diz que se viu obrigado a convocar-me. Viu-se obrigado a isso porque eu não desisti. Ele diz que eu sou um exemplo porque tenho uma capacidade de resiliência muito grande. As circunstâncias da vida muitas vezes deitaram-me ao chão, mas eu nunca desisti. E é esse legado que eu quero deixar, muito mais do que qualquer medalha.

MF: O exemplo da resiliência.

Bebé: Digo sempre aos meus colegas no Porto Salvo: se acreditas, luta. É o que digo também ao meu filho mais velho, que diz que quer ser futebolista: se queres ser jogador de futebol, a única coisa que tens de fazer é trabalhar; até podes nem vir a conseguir, mas vais ficar com a consciência de que fizeste tudo.

MF: Não ias ganhar nada, entretanto foste campeão da Europa e campeão do Mundo…

Bebé: (risos) Exatamente. Depois disso, ganhei os dois títulos mais importantes da minha carreira. Sem qualquer dúvida. Fui campeão da Europa de seleções e agora campeão Mundial. Que tem um sabor especial porque foi a jogar e com 38 anos! É incrível. Uma sensação indescritível e o reviver de um processo que valeu a pena. Valeu a pena!

MF: Imaginavas-te a jogar a este nível aos 38 anos?

Bebé: Não. Eu pensava: ‘quero acabar o mais cedo possível’. Hoje não digo que quero acabar o mais tarde possível, mas digo que me divirto muito mais a jogar futsal agora do que antes. Hoje, levo o futsal com uma carga emocional muito menor do que antes. Divirto-me muito mais e desfruto mais do futsal do que antes.

MF: Também será por sentires que não tens mais nada a provar?

Bebé: (hesita) Não é por isso. Eu tenho um psicólogo desportivo, o Miguel Sá, e costumo dizer-lhe que o desporto é das poucas coisas em que toda as semanas tens de provar que és bom. O ‘mindset’ que tive de ter nesta fase final da minha carreira foi esse: diverte-te! Porque se te divertires, trabalhas e esforças-te para fazer as coisas durante a semana e ao fim de semana tens a cereja no topo do bolo.

MF: Levas o futsal de forma mais leve.

Bebé: Sim. Porque é que vou estar a jogar todo tenso, Há nervosismo, como tem de haver. Mas porque é que hei-de estar com medo de errar? O desporto é um jogo de acertos e de erros. Tal como a vida é um jogo de acertos e de erros. Eu vou errar muito e vou acertar. Desde que o meu saldo de acertos seja muito mais positivo do que o de erros, saio feliz e desfruto de tudo.

MF: Quão difícil foi decidir continuar a jogar quando deixaste o Benfica?

Bebé: Foi muito difícil. Eu pensei em desistir. Estive 11 anos no Benfica e a minha vida desportiva era o Benfica. Eu não conhecia outra realidade. O Ré, que joga comigo no Porto Salvo, diz que depois de eu sair do Benfica fiquei seis meses em depressão. E foram seis meses mesmo muito complicados.

MF: Foi um choque de realidades?

Bebé: Eu saí de uma realidade profissional para ir para os Leões de Porto Salvo que, depois do Benfica e do Sporting, é o melhor clube para se jogar futsal em Portugal. Porque é um clube que também dá todas as condições para jogar, é o que tem mais praticantes em Portugal. Mas temos consciência de que as realidades são completamente diferentes e eu tive muita dificuldade em adaptar-me à nova realidade.

MF: Como te convenceste?

Bebé: Mais uma vez, o Miguel Sá, meu psicólogo, teve um papel muito, muito importante. Lembro-me que numa das primeiras consultas que tivemos depois de mudar, ele disse-me: ‘Bebé, não tenhas dúvidas que todo este processo vai fazer de ti melhor atleta’. E hoje, olhando para trás, não tenho dúvidas de que ele tinha razão. E é por causa dessas situações que o mister Braz diz que eu sou um resistente e que eu luto contra tudo e todos. Essa foi mais um obstáculo que apareceu e que, juntamente com o Miguel Sá, a minha mulher, os meus filhos, a minha mãe e o Porto Salvo, eu fiz por ultrapassar. E a verdade é que sou muito mais feliz a jogar futsal do que anteriormente.

MF: Saíste totalmente da tua zona de conforto.

Bebé: Saí completamente. E não é fácil sair da zona de conforto. Duvidamos de tudo, pensamos que não somos tão bons como éramos. Mas é isso que digo aos miúdos: saiam da vossa zona de conforto. Quando saí do Benfica eu pensei: ‘já não vou conseguir’. Mas lutei, trabalhei muito. Acordava às 6h30 para ir treinar Cross Fit porque sabia que tinha de fazer mais alguma coisa para me manter no topo em termos físicos. E arranjei formas. Mesmo saindo da zona de conforto, se não arranjares desculpas, se arranjares soluções, tu chegas lá. Eu não desisti e acabei por conseguir. Hoje podia não estar a falar como campeão do Mundo, mas ia ter o mesmo discurso: porque trabalhei e lutei.

MF: Disseste que quando saíste do Benfica, percebeste que as coisas iam mudar. Estavas preparado para os sacrifícios que essa mudança ia trazer?

Bebé: Na altura não. Nem tinha noção. O meu afilhado, o Carlos Paulo [guarda-redes do Belenenses], disse uma frase que não me esqueço: ‘Bem-vindo ao futsal em Portugal. Isto é que vai ser o futsal em Portugal’. Porque aquilo que eu e ele tínhamos vivido, ele também jogou sete anos no Benfica, não é o futsal em Portugal. Ele disse-me: ‘Vais para um clube em que vais levar com 20 remates por jogo, quando no Benfica levavas seis ou sete’. Algumas dessas coisas é que me fizeram dar o clique e perceber que são realidades completamente diferentes. Por isso digo que não sei se consegui, mas fiz de tudo para ultrapassar essas adversidades.

MF: Já disseste que passaste a levantar-te de madrugada para treinar. Mas como passou a ser o teu dia-a-dia?

Bebé: Levanto-me por volta das 6h30 da manhã para ir treinar Crossfit. Faço o treino das 7 às 8h da manhã, volto a casa, ajudo a minha mulher com os meus filhos, às vezes vou levá-los à escola e depois vou fazer as compras do restaurante: vou ao talho, à Makro, ao mercado para comprar frutas… depois sigo para o restaurante, limpo e faço as mesas, faço os últimos preparativos das sobremesas. Se for preciso, faço um ou doce que a minha mãe não tenha tido tempo para fazer, e faço todos os preparativos. Depois, a partir das 12h os clientes começam a chegar e sirvo às mesas. Eu sou o chefe de sala, sou eu que sirvo à mesa. Fico no restaurante até às 16h ou 17h, vou buscar os meus filhos à escola, levo-os a casa, dou-lhes banho e o início do jantar. Depois lancho e vou treinar para os Leões de Porto Salvo. Treinamos por volta das 20h30 até às 22h ou 22h30, depois chego a casa às 23h, janto e vou dormir por volta da meia-noite e meia. E no dia seguinte, repete-se. Não páro nem tenho um minuto de descanso. Há dias em que nem almoço, é sempre a correr. Mas faço-o com gosto, porque sei que daqui a um tempo o futsal vai acabar e eu quero dizer que aproveitei tudo o que tinha para aproveitar.

MF: É uma rotina pouco habitual para um desportista de alta competição.

Bebé: Sim (risos). O meu antigo treinador no Leões de Porto Salvo, o Rodrigo Pais de Almeida, perguntou-me: ‘Como é que é possível um garçon ser campeão do Mundo?’. Antes disso, o Ricardinho tinha dito que esta seleção tem um jogador que joga na segunda divisão e um garçon que serve às mesas. Porque é isso. Independentemente de o restaurante ser da minha mãe, ser nosso, eu não tenho qualquer problema em meter a mão na massa.

MF: E falas sempre com um sorriso desse trabalho?

Bebé: É um trabalho de que eu gosto. Estou com as pessoas e falo com elas. Conversamos sobre o futsal, sobre o Benfica, e passamos ali um bom tempo. O tempo parece que voa.

MF: Estás preparado para ouvir ‘senhor Comendador, traga-me um café, por favor’?

Bebé: (risos) Estou preparadíssimo. Preparadíssimo. Há clientes que me foram mandando mensagens durante o Mundial e eu já sei que vão brincar e dizer ‘tenho aqui um campeão do Mundo a servir-me’. Estou completamente preparado para isso.

MF: Este título mundial pode ajudar a que no futuro não haja mais jogadores não profissionais na seleção portuguesa de futsal?

Bebé: Eu espero que sim. E vejo que o trabalho que a Federação Portuguesa de Futebol está a fazer é para que o futsal possa ter essa evolução e haja um campeonato profissional de futsal. Acredito muito que daqui a uns anos vamos ter um campeonato profissional, ou pelo menos muito próximo. A Federação tem trabalhado muito nesse sentido, o que obriga os clubes a trabalharem também para isso. Sem darmos por isso, vamos ter uma liga profissional.

MF: Portugal foi campeão da Europa e do Mundo sem ter um campeonato profissional. Onde pode chegar quando tiver?

Bebé: Pode chegar ainda mais longe. O André Sousa tem uma noção melhor do que eu e disse-me que a geração que aí vem é das melhores de sempre. Eu comecei a jogar futsal com 18 anos, eles começaram com oito anos. Ou seja, são jogadores muito mais preparados do que eu era quando tinha a idade deles. Por isso, não tenho dúvida que a próxima geração vai atingir muitas finais de Europeus e Mundiais. Temos aí uma geração incrível, de jogadores muito, muito capazes.

MF: Na chegada à Cidade do Futebol após o título, andavas de um lado a perguntar ‘onde é que está o meu puto?’ O teu filho era a pessoa com quem querias festejar?

Bebé: Sim. Se há coisa que eu valorizo é que, mais importante dos que as medalhas, eu tive a presença dos meus filhos. Eles vão levar isto para o resto da vida deles. Quando eu era miúdo, a minha mãe não me podia ir ver os meus jogos. Ela estava a trabalhar porque tinha os meus outros irmãos para cuidar. E esta possibilidade que eu tenho de ser um pai presente e dividir esta alegria com o meu filho mais velho e com as minhas filhas tem um valor imenso. A minha mulher, os meus filhos, e a minha mãe, eram as pessoas com quem eu mais queria festejar. Porque foi com elas, mais o Miguel Sá, o Carlos Paulo, o Luís Casaca e o Lobão – treinadores do Porto Salvo – que eu passei todo este percurso e que me ajudaram. Eu adoro o processo, não adoro só o resultado. Porque sinto que se valorizarmos o processo, o final vai ser sempre bom.