Mais longe e mais alto é uma rubrica do Maisfutebol que olha para atletas e modalidades além do futebol. Histórias de esforço, superação, de sucessos e dificuldades

Rui Pavanito é um poço cheio de histórias.

Durante quase duas horas de conversa na escola que tem na Quinta do Conde, margem sul de Lisboa, o pugilista português mergulha por um percurso de vida com muitos assaltos ganhos e perdidos.

Assume que o boxe acaba por ser a analogia perfeita dos 40 anos que o BI acusa mas que não lhe condicionam o desejo de continuar a somar vitórias no ringue, depois no sábado passado ter-se sagrado campeão europeu de super-médios (76 kg) da World Boxing Union.

Rui «El Bombardero» Pavanito fez história ao conquistar o cinturão europeu após um combate curto diante do georgiano Ilia Chikovani, dez anos mais novo, e que terminou ao fim de dois assaltos. «O médico disse que ele tinha partido a mão direita. Talvez tenha sido quando me acertou no cotovelo ainda no primeiro assalto», conta o atleta português, confiante de que, independentemente do que acontecesse, acabaria sempre por ficar com o título.

«Ele bate com força mas eu estava preparado. Estudei-o bem e já estava a sentir-me à vontade quando ele desistiu. A minha estratégia era desgastá-lo nos primeiros assaltos porque ele entra sempre muito forte e também sabia que eu costumo crescer com o avançar dos combates.»

Após o combate de 28 de outubro e já com o cinturão nas mãos (foto: arquivo pessoal)

Ao todo, Rui Pavanito detém agora quatro cinturões, incluindo o de campeão nacional e o de campeão latino da WBC, organização formada em 1963 e onde se destacaram lendas como Muhammad Ali, Joe Frazier, Mike Tyson ou Floyd Mayweather.

«Agora preciso de ganhar mais dois combates para ter rating suficiente para poder disputar o título mundial. Espero que seja para o ano», perspetiva.

A ligação de Rui Pavanito aos desportos de combate começou quando tinha oito anos. Recorda que o bichinho pela luta começou a manifestar-se desde tenra idade. «O meu pai viu que eu era muito mexido e levou-me para o full contact. Os meus dois irmãos também foram comigo mas no final do mês o mestre disse que, apesar de sermos todos bons, eu é que tinha nascido para aquilo. Com 13 ou 14 anos já era cinturão negro.»

Entre os 16 e os 21 anos, Rui afastou-se do mundo da luta. Adolescência, hormonas em polvorosa e prioridades ao que se torna tão superficial uns anos mais tarde.

Há quase 30 anos numa demonstração de Full Contact em Sesimbra (foto: arquivo pessoal)

Muitos anos antes de ter recebido em Espanha a alcunha de «El Bombardero», Pavanito conciliou o boxe amador com o trabalho numa empresa de construção: começou numa pedreira na Arrábida, andou nas obras, tirou depois um curso de segurança e passou pelas discotecas e bares mais conhecidos da Grande Lisboa.

«A noite é uma escola de vida», aponta.

Para o bem e para o mal, concorda. Foi lá que se sentiu mais respeitado, mas também foi lá que se viu envolvido numa rede perigosa. «Eu e o meu irmão tivemos problemas com a justiça.»

«Que problemas?»

«Noite, agressões, bandidagem… enfim. Foram constituídos 12 arguidos: só eu e outro é que não fomos presos. O meu irmão mais novo apanhou quatro anos», diz com uma sinceridade desarmante.

Rui desfia o novelo de uma vida onde cabem várias. Para o provar, diz até que está a pensar escrever em breve uma autobiografia. Aos 40 anos, pasme-se!

A prisão do irmão e os problemas com a justiça trouxeram-lhe isolamento. Perdeu amizades, a escola de boxe ficou praticamente vazia e vieram os problemas financeiros.

É aqui, por volta de 2010, que Rui Pavanito decide mergulhar com maior convicção no mundo do boxe, já para lá dos 30 anos e ainda com poucos combates profissionais. «Sabia que não podia continuar mais naquele mundo: se continuasse, ia preso. Refugiei-me e arrisquei tudo no boxe para ter a minha segunda oportunidade.»

Contra tudo e contra todos, garante. Aquele que hoje é apontado por muitos como o melhor pugilista nacional, só lamenta ter passado parte da vida a dar ouvidos a quem lhe disse que nunca conseguiria fazer vida do pugilismo.

Com o irmão, à esquerda, e Jorge Viegas (patrocinador), à direita

Ainda não o faz – só há quatro meses suspendeu, talvez provisoriamente, o trabalho como segurança – mas sente que deve aos resultados no boxe o aparecimento de outras oportunidades de trabalho. «Sempre me disseram que o meu futuro não podia passar por aqui e eu andei muito tempo a deixar-me guiar por isso. Só precisava de ter tido uma pessoa que investisse e acreditasse em mim. Como a avó do Mayweather que não permitiu que ele fosse trabalhar quando o pai foi preso ou a mulher do McGregor que o sustentou quando ele ganhava cento e tal euros por mês. Eles agora são milionários», constata.

Pavanito diz já não ter a ambição de enriquecer, mas não desiste do sonho de ter uma vida desafogada através do boxe. Apesar de já ter saltado muros gigantes – a juntar a tudo o que já foi referido, uma lesão grave num osso da cara afastou-o três anos dos combates e esteve outros quatro castigado por consumo de uma substância proibida quando até nem estava em competição - os 40 já chegaram e a falta de cultura desportiva, num país onde o futebol canaliza quase todas as atenções, também não ajuda.

«Noutro país sei que podia viver só do boxe, mas até o pessoal do ramo prefere ir ver um jogo de futebol do que um combate. Sou muito mais reconhecido fora de Portugal. Só para ter uma ideia, uma vez fui a Espanha e até a polícia quis tirar fotografias comigo. Eu e a minha equipa tínhamos os documentos no hotel e fomos mandados parar numa operação stop. Quando estavam a revistar o carro todo, um polícia veio lá de trás, disse o meu nome e fez uma grande festa. Parecia que estava a ver o Cristiano Ronaldo à frente. Quiseram logo todos tirar fotos.»

Da escola de boxe de Rui Pavanito, na Quinta do Conde, já saíram quatro campeões nacionais. «Têm aquilo que me faltou durante a maior parte da minha carreira: alguém que os oriente»

«El Bombardero» não sabe quanto tempo mais tem pela frente, mas sabe que a estrada está perto do fim. «Há um ano que faço acupunctura por causa de umas dores fortes que tinha e desde essa altura que estou muito melhor. O meu médico, Artur Morais, diz-me que posso chegar aos 45 anos nesta forma, mas não sei. Se eu ainda tivesse dez anos pela frente, e a fazer o que estou a fazer agora, tenho a certeza que um dia seria campeão do Mundo. Talvez tenha mais dois ou três anos. Sei que não vou ficar rico, mas ainda quero conquistar esse título, de preferência da WBC.»

Seria uma forma perfeita de prestar homenagem aos amigos que viu partir nos últimos anos e cujas memórias estão perpetuadas em fotografias espalhadas pelas paredes da escola de boxe. Entre elas há um lugar especial para Carlos Dias, antigo proprietário da escola que foi outrora um ginásio e que morreu há dois anos vítima de cancro.

Rui aponta-o como o seu «fã número 1». «Ele é que me abriu os olhos numa das alturas mais difíceis da minha vida. Acreditou sempre que eu tinha tudo para ser um dos melhores do mundo mas avisou-me que não podia deixar influenciar-me por pessoas negativistas. Dizia-me: “Quando o produto é bom, ele é sempre vendido. Faz o teu produto bom e ele vai ser comprado. Ainda vais a tempo”. Sou um homem de fé à minha maneira e ainda falo muito com ele.»