Mais longe e mais alto é uma rubrica do Maisfutebol que olha para atletas e modalidades além do futebol. Histórias de esforço, superação, de sucessos e dificuldades.

«Para mim, o futsal faz sentido desde que nasci e, enquanto puder, vou continuar a jogar. Se as minhas pernas aguentarem, um dia vou ser noticia: ‘Mulher com 70 anos ainda joga futsal’», a garantia é de Carla Vanessa, pivot do Santa Luzia, da primeira divisão do Campeonato Nacional, e vice-campeã da Europa por Portugal. E basta conversar um bocadinho com ela para acreditar no que diz. A paixão pela modalidade, pelo desporto em geral, nota-se de imediato. A mesma paixão que lhe custa horas de sono para conjugar o trabalho na empresa têxtil com os treinos, mas que nem a faz pensar em desistir.

Falámos com a atleta uma semana depois do Europeu, uma semana depois daquilo a que as jogadoras da Seleção chamaram, em entrevista à FPF, «um intervalo na vida». Das jogadoras que representaram Portugal no primeiro Campeonato da Europa oficial, que se realizou em Gondomar, apenas Tânia (Lazio – Itália) e Jennifer (Burela – Espanha) são profissionais. Só elas podem dedicar-se exclusivamente à modalidade. Para todas as outras, o intervalo terminou e a normalidade voltou.

Carla Vanessa no Europeu de Futsal Feminino (foto José Coelho/Lusa)

«Sou costureira numa empresa têxtil e passo oito horas sentada à máquina. Não é que eu goste muito de estar sentada, preferia andar, nem era andar, preferia era jogar só, mas não é possível», conta Carla Vanessa, a rir, com uma sinceridade que lhe sai naturalmente.

E como é a normalidade? «Levanto-me muito cedo, às cinco toca o meu despertador. Por volta das 5:30 já estou na empresa, e trabalho até às 14:00. Depois ou faço um ginásio, ou há dias em que sou obrigada a descansar porque saio para treinar às 19:00 e volto a chegar já depois da meia noite… 00:15 por aí. Quando o despertador me diz que vou dormir 4:30 até me dá uma coisinha. Às vezes nem olho…», conta.

Três vezes por semana, faz os 50 quilómetros que separam a casa, em Famalicão, até ao clube, em Viana do Castelo. 100 ida e volta. E aos fins-de-semana, por vezes, ainda acumula os jogos com o trabalho. «É cansativo», admite.

A empresa facilitou a ida à seleção. «São muito meus amigos nesse aspeto e não tive que tirar férias. Tenho colegas que têm que gastar das suas férias para irem à seleção», explica. Mas Carla Vanessa também precisa de compensar horas depois. «Por exemplo, esta semana vou trabalhar na segunda-feira e terça das 6:00 às 17:00 e na terça-feira tenho que treinar, por isso quando chegar a casa só vou ter tempo de arrancar para Viana do Castelo. Vai doer.»

E nunca pensou em desistir? «Do futsal? Não!», garante com a maior assertividade que consegue. «É paixão! O trabalho não posso riscar porque preciso dele. O futsal… se calhar podia riscar, mas é o que mais gosto de fazer na vida. Sem futsal, não dava para mim», assegura.

Carla Vanessa já provou um bocadinho do que é ser profissional de futsal, em passagens por Espanha e Itália, «mas não correu assim tão bem». «Não há propostas aliciantes para irmos para fora, ninguém aposta muito… fazes o que gostas, mas às vezes não é suficiente para estares lá fora, longe da família. E depois tanto podem pagar como não pagar. Isso aconteceu comigo, infelizmente», recorda, mas faz questão de frisar: «Agora posso não ser profissional, mas continuo a jogar a sério. Não é isso que faz a diferença».

Carla Vanessa no Europeu de Futsal Feminino (foto FPF)

Internacional portuguesa em três modalidades, título em atletismo, e uma paixão pela canoagem

No regresso a Portugal, Carla Vanessa começou então a trabalhar, mas não parou de jogar, como faz «desde sempre». «Joguei a vida toda. Não me lembro de não jogar à bola.»

«A minha mãe diz que eu comecei a jogar à bola com as garrafas ou arrancava as cabeças das bonecas e jogava com elas. Depois comecei a jogar com os amigos na rua. Andava sempre a jogar na rua. E com 17, 18 anos ainda jogava na rua», recorda a atleta natural das Caxinas.

E é já desses tempos que lhe vem uma característica que lhe vale a alcunha «pontapé de canhão». «Sempre tive muita força no remate, desde novinha, mas é uma coisa natural, não resulta do treino. Dizem que é um jeito que eu dou no corpo porque chuto meia de lado e isso dá força à bola», explica.

Aos 10 anos, começou a jogar numa equipa de Vila do Conde. «Devia ser caso raro, mas era uma equipa só de meninas e tínhamos muitas jogadoras», conta.

Antes disso, a miúda que «não sabia estar quieta» já tinha sucesso noutro desporto. «Ainda tentei a ginástica, mas foi uma coisa muito passageira, entrei e saí. Depois fiz atletismo durante muitos anos antes do futsal. Fui campeã regional de salto em comprimento com nove anos.»

Entretanto apaixonou-se por outra modalidade «de que era capaz de fazer vida»: a canoagem. «Estive cerca de um ano, gostava muito e ia treinar para campeonatos nacionais, mas era impossível conciliar com o futsal e tive que escolher e acabei por ficar só com o futsal.»

O futsal é o amor para a vida toda, mas, olhando para o registo de internacionalizações da atleta, encontramos jogos em três modalidades.

«A primeira vez que vesti a camisola de Portugal tinha 17 anos. Fui chamada para a Seleção Nacional de sub-19 em futebol de 11. Mesmo eu jogando futsal, não sendo a minha modalidade - nunca me puxou o bichinho para o futebol de 11 -, foi espetacular. Nunca mais me esqueço de que foi na Guarda contra a Polónia, ganhámos 1-0 e fiz uma assistência», conta Carla Vanessa, que viria a representar a equipa por 13 vezes.

Depois chegou a chamada à seleção de futsal, na qual já soma 46 internacionalizações e leva 31 golos marcados. E ainda houve oportunidade para integrar outra equipa, a de Futebol de Praia.

«Em 2016 recebi o convite da Federação para participar no Mundialito em Carcavelos e aceitei. Ficámos em segundo lugar», recorda, explicando: «Já tinha participado em jogos de futebol de praia nas Caxinas, mas nunca levei a sério porque correr na areia não é fácil.»

Vestiu a camisola portuguesa 64 vezes, mas a sensação é sempre a mesma: «É uma emoção, uma felicidade única. Eu olho para o símbolo e digo: «Meu Deus, onde é que eu estou?!».

E qual foi a reação quando soube que ia ao Europeu? «Nem consigo explicar… fiquei aos saltos, sozinha. Quem me vir deve dizer: ‘Esta pessoa não é normal’.»

«Não sei se perdemos, se ganhámos»

E voltamos então ao Europeu, disputado em Portugal, com a Espanha a levar a melhor na final. A que soube a medalha?

«Temos noção de que o nosso nome ficou para a história. Participámos no primeiro Europeu oficial da UEFA, o que é fantástico. Sinto muito orgulho no que fizemos e acredito que futuramente possamos fazer coisas muito mais bonitas», adianta, mas o resultado da final (derrota por 4-0) ainda está atravessado.

«Fiquei com o sentimento de que demos tudo, sabíamos que tínhamos qualidade para ganhar a final, só que houve coisas em que errámos. Temos noção da nossa capacidade e, se alguém me perguntar quem são as melhores da Europa, vou dizer que é Portugal.»

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Prata para Mulheres de Ouro".. Ainda não estou em mim..Parece que ainda não despertei do sonho.. Sinto tanta coisa cá dentro que nem sei se encontrarei maneira de deitar para fora.. Podíamos ter dado mais? Podíamos mas fica o sentimento de que de tudo fizemos para realizarmos o nosso Sonho, o sonho de todos nós. De tanta mas tanta gente para agradecer, Obrigado Familia, obrigado amigos e obrigado Portugueses! Obrigado a todos aqueles que nos fizeram sentir capazes, que nos fizeram acreditar, que nos arrepiaram com tanto carinho, com gestos, com gritos de incentivo. Peço desculpa pois não foi o resultado que queríamos, peço desculpa a todos que acreditaram em nos incansavelmente. Ás minhas guerreiras, essas representam o orgulho, representam a união e a força, a garra e a determinação! Orgulhosa de cada uma de vocês, que para mim são sem dúvidas, as melhores da Europa.. Obrigada Federação Portuguesa de Futebol.. Obrigado PORTUGAL "Acordar é que eu não queria " #Tudoporportugal 🇵🇹 #orgulhoimenso #meninasdeOuro

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Referências para as novas gerações

«A medalha não é da cor que queríamos e sinto um gosto amargo porque queria dar a vitória a Portugal, ainda por cima naquela final espetacular em frente ao nosso público mas, ao mesmo tempo, não sei se perdemos ou ganhámos», diz Carla Vanessa.

«Houve coisas muito bonitas, as pessoas aderiram, a divulgação que o futsal teve com este Europeu. Nisso, ganhámos», assegura a atleta.

Carla Vanessa no Europeu de Futsal Feminino (foto FPF)

«Quando eu era miúda, via o Ronaldinho Gaúcho e queria jogar à bola como ele, mas nunca tive referências femininas. Nunca disse: quero ser como ela… Agora acredito que somos inspiração para estas meninas que estão a crescer. Tive o feedback de meninas com sete, oito anos, que diziam: ‘Eu quero ser como tu, quero jogar como tu’. Claro que é uma sensação boa e não estamos habituadas a ouvir», explica Carla Vanessa.

«Somos uma referência para essa juventude, e até miúdas com 17, 18 anos, que me mandam mensagens. Eu tento sempre dar uma força a quem quer seguir, para que lutem sempre pelos seus objetivos», garante.

E falando de objetivos, quais são os da pivot? «Quero ganhar tudo. Eu quero ganhar tudo! Ser campeã nacional é das melhores sensações e claro que no futuro quero ser campeã nacional novamente e ganhar algo pela seleção seria para terminar a carreira…»

Terminar a carreira? Tem a certeza de que conseguia? «Não. [risos] Se eu conseguir, se as minhas pernas aguentarem, um dia vou ser noticia: ‘Mulher com 70 anos ainda joga futsal’. Na primeira divisão é difícil manter o ritmo, mas vou ter de encontrar um espaço para matar o vício depois. Tenho que continuar sempre a mexer.»

(Artigo originalmente publicado às 23:46 de 28-02-2019)