Mais longe e mais alto é uma rubrica do Maisfutebol que olha para atletas e modalidades além do futebol. Histórias de esforço, superação, de sucessos e dificuldades.

15 de janeiro de 2017 é uma data que Inês Henriques não vai esquecer. Nesse dia, a marchadora portuguesa viveu o momento mais alto da carreira, entrou para a história do desporto em Portugal e da modalidade em todo o mundo. Foi a primeira mulher a estabelecer um recorde oficial nos 50 quilómetros marcha, distância, até então, reservada apenas a homens.

Aos 36 anos, quase 37, com 24 anos de carreira na marcha, Inês não é mulher de fugir a desafios. Pelo contrário, gosta de os abraçar e, por isso, quando o treinador lhe disse que a Associação Internacional de Federações de Atletismo (IAAF) ia homologar o primeiro recorde do mundo feminino da distância, a atleta, que já fez «mais de cem provas de 20 quilómetros», agarrou a oportunidade.

«O meu treinador – que é meu treinador desde sempre, há 24 anos -, chamou-me e perguntou: ‘O que achas disto?’. Foi há dois meses e o tempo não era muito, mas, tendo em conta a minha longa carreira, aceitei logo», conta Inês Henriques ao Maisfutebol. Mesmo tendo a conversa sido via telefone, a alegria da marchadora é bem percetível.

«Eu gosto de desafios e ele sabe disso. Ao início pensei que ele era louco, mas eu também tenho a minha loucura. E para fazer isto faz mesmo falta um bocadinho de loucura», conta.

Nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, prova de 20 km

E não é para menos, já que foi o concretizar de um sonho. «Este era um objetivo que eu já tinha há algum tempo, para demonstrar que as mulheres também são capazes de fazer os 50 quilómetros. Havia muita gente a dizer: ‘Os 50 quilómetros não são para mulheres’. Mas eu consegui provar que nós conseguimos fazer 50 quilómetros, e fazer bem», conta orgulhosa.

Obtida a autorização para participar na prova de Porto de Mós, cujas distâncias de 35 e 50 quilómetros eram apenas para homens, Inês Henriques começou a preparação.

«O plano de treinos foi duro, mas eu fiz com tanto prazer, e com aquela motivação, que se tornou tudo mais fácil. Não me aborreço de marchar, adoro o que faço. Aquilo em que tive realmente mais dificuldade foi em andar devagar porque não podia ir ao ritmo das provas de 20 quilómetros», explicou.

«O máximo que fiz em treino foram 36 quilómetros. Correu tudo bem, a recuperação foi boa e então divulgamos que íamos tentar o recorde do mundo».

E Inês Henriques não conseguiu apenas ser a primeira mulher com o recorde oficial da distância, mas também bateu o tempo já existente, que era de 4h10.59, conseguido pela sueca Monica Svensson em 2007.

«Nós sempre quisemos fazer melhor do que o que já existia, mesmo não sendo oficial. E isso foi conseguido. Eu ia fazer 4h04, mas com aquela parte final fui perdendo muitos minutos. Quando faltavam 500 metros, olhei para o relógio, e pensei: ‘Deixa-te ir com calma para chegares à linha de meta, porque já conseguiste’».

E conseguiu em 4h08.25, mas esteve longe de ser fácil. «Esta distância é uma violência», admite, «mas é uma violência para homens e para mulheres», frisa. «Para mim, os últimos três quilómetros foram de uma violência tremenda. Já não conseguia andar direito. Nos últimos seis, começou a doer-me, mas os últimos três é que foram realmente muito difíceis».

No Rio de Janeiro

Até porque teve que lutar contra o que o corpo estava habituado a fazer. «A partir dos 25 quilómetros já estava no ritmo que pretendia e acredito que, se tivesse gerido a competição, provavelmente não iria ter tanto desgaste na competição e terminar melhor. O ritmo que eu estava a fazer era nove minutos mais lento do que nos 20 quilómetros e, sem querer, o corpo vai deslizando, estava a ser difícil controlar para andar mais devagar», explica.

Por isso, a palavra de ordem agora é «recuperar». «Vou fazer três semanas de altitude, e depois várias provas do campeonato mundial de 20 quilómetros». Mas os 50 quilómetros não ficam esquecidos. «Não fiz a marca de qualificação para o Mundial nos 50 km, que era igual à dos homens – 4:07:06 -, mas estamos a tentar o wild card que a federação pode solicitar por eu ser a recordista mundial. Acho que era um feito e que era importante estar lá uma mulher», afirma. E dá conta do apoio que lhe tem chegado para este novo desafio, para o qual também já acrescentou um objetivo pessoal.

«Tenho recebido mensagens de marchadoras de todo o mundo a dar-me apoio, a dizer que é importante que eu esteja no Mundial. Eu também queria, e queria tentar bater esta minha marca».

Inês ri-se quando lhe dizem que, visto de fora, parece que os atletas vão «mais ou menos a andar». «É mais ou menos a andar, mas há muita gente que, a correr, não nos consegue acompanhar», conta. «A minha média de ritmo é 4:58. Num tapete rolante é mais rápido do que 12 quilómetros por hora».

«Nunca acreditei em omeletes sem ovos»

Ao longo destes 24 anos, Inês Henriques esteve em quatro edições dos Jogos Olímpicos: Atenas 2004, onde foi 25ª classificada; Pequim 2008, como atleta suplente; Londres 2012, onde conseguiu o 15º lugar; e Rio 2016, onde ficou em 12º.

«Sou uma atleta com algum talento, porque se não tivesse, não teria chegado onde cheguei, mas muito do que conquistei foi fruto de muitas horas de trabalho. Às vezes erro pelo excesso. Tenho tentado conter-me porque muitas vezes não dava o devido descanso e o descanso também faz parte do treino. Nunca acreditei em omeletes sem ovos e só acredito que as coisas se conquistam com muito trabalho. Isso foi-me incutido pelos meus pais», explica.

«Lembro-me de ser miúda e ver os meus colegas a pararem para brincar e eu ter pensado: ‘se não estiver a treinar não estou a enganar o meu treinador, estou a enganar-me a mim própria’. Nos primeiros tempos, o meu treinador até me proibia de ir treinar todos os dias porque eu treinava demasiado. Desde que me lembro, fui sempre muito aplicada», recorda.

Começou no atletismo aos 12 anos, «nas corridas», numa altura em que Susana Feitor tinha sido campeã de juniores. «Havia um grupo grande de marchadores e eu fui experimentar a marcha. Experimentei outras disciplinas, mas não me estava a ver ali. E na marcha fiquei».

Inês Henriques com Susana Feitor

A irmã também foi para o atletismo, «mas só quis o desporto como lazer». «Eu senti-me satisfeita com o que fazia e continuei», conta Inês.

Garante que sempre conseguiu «conciliar a vida normal de um jovem com o atletismo». «Fiz as minhas noitadas, mas tinha responsabilidade e sabia quando podia e quando não podia».

E também não descurou a escola. «Isto tem uma durabilidade e nós temos que acautelar o nosso futuro. Quando entrei para o ensino superior, fui fazendo por objetivos. Demorei 10 anos a concluir a licenciatura de enfermagem porque ia lá três meses por ano».

Em 2014, Inês Henriques terminou a licenciatura em enfermagem. «Por opção, até ao Rio de Janeiro decidi não começar a trabalhar. Mas agora quero começar porque quero que as pessoas me vejam também como a enfermeira Inês».

Inês Henriques em Inglaterra

Sem trabalhar, a marchadora tem conseguido viver do atletismo. «Desde 2016 tenho-me mantido no projeto olímpico, só saí em 2008, quando fui aos Jogos suplente, e no ano de 2009 estive fora da preparação olímpica. Estou no nível 3, tenho a bolsa mensal [900 euros] que me dá dinheiro para fazer os estágios, suplementação, algum material. Não recebo nada do meu clube, aliás, eu é que ainda pago cinco euros por mês. E tenho um apoio do Complexo desportivo de Rio Maior, que me dá um apoio anual, que não é nada de especial, mas vai ajudando. Depois o resto do rendimento vem de participar no circuito mundial, em que no final do ano a IAAF tem prémios monetários e eu tenho estado sempre nos cinco primeiros. Mas às vezes não é fácil», admite.

Em 2015, numa altura em que «tinha um apoio da federação, mas ainda não estava no projeto olímpico», teve que ponderar bem o que fazer. «Esse ano foi muito complicado. Eu queria ser atleta, boa aluna, e tive que pensar se valia a pena continuar. Não queria estar dependente dos meus pais. Já em miúda comecei na apanha do tomate para ganhar o meu dinheiro para comparar as minhas coisas. Desde os 12 anos que sou eu que compro a minha roupa, claro que aos 25 anos queria ser independente», conta.

«Agora tem estado mais ou menos estável, mas se não tivesse ficado nos 18 primeiros nos Jogos Olímpicos, ficava sem a bolsa olímpica, ficava quase sem dinheiro. É um stress extra para os Jogos. ‘Se alguma coisa falhar, fico sem bolsa, sem nada, e tenho mesmo que ir trabalhar’», explica.

Os companheiros de treino são todos mais novos do que os 24 anos de carreira de Inês Henriques. «O mais velho tem 22 anos», conta a marchadora, que não vê na idade grande inconveniente. «2016 foi a minha melhor época de sempre, aos 36 anos, quem diria! E como é uma distância grande, falta a vitalidade, mas vamos adquirindo experiência. Para fazer os 50 quilómetros, a minha experiência foi fundamental», garante.

E foi esse momento, o de cortar a meta nos 50 quilómetros, o ponto alto da carreira? «Foi. Foi um misto de emoções, nem consigo explicar. Chorei imenso por conquistar este sonho, este objetivo, por saber que era um momento que ficava na história de Portugal e do mundo. Estávamos à espera que o impacto fosse grande, mas foi ainda maior. Tive o prazer de ser felicitada pelo Presidente da República. Não é para todos. Recebi mensagens de todo o mundo. Este é o melhor momento, estou a desfrutar, e depois é voltar ao trabalho porque a luta continua».