Mais longe e mais alto é uma rubrica do Maisfutebol que olha para atletas e modalidades além do futebol. Histórias de esforço, superação, de sucessos e dificuldades.
Aos 11 anos, João Vieira deu os primeiros passos no atletismo. O convite do clube de Rio Maior abria portas ao realizar de um sonho de menino, que nasceu anos antes, na madrugada de 12 de agosto de 1984, quando Carlos Lopes venceu a maratona.
João e o gémeo Sérgio embarcaram então num caminho que foram percorrendo primeiro juntos, depois separados. Agora, aos 43 anos, com mais de 30 anos de carreira, João Vieira consegue o seu melhor resultado, sagra-se vice-campeão do Mundo em Doha, no Qatar, e torna-se no mais velho medalhado de sempre em Mundiais.
Ao Maisfutebol, o marchador, que acorda a sentir-se como se tivesse 20 anos, contou o segredo desta medalha em condições tão difíceis, apontou para Tóquio e falou de um futuro em que a meta final ainda não está definida.
Falámos com João Vieira quando ainda estava em Doha, com o corpo e a cabeça já mais descansados depois daquela que diz ter sido «a prova mais difícil da carreira» e de ter conquistado uma medalha que sente «como se fosse ouro, porque não é todos os dias que um atleta consegue uma medalha de prata e ainda por cima sob estas condições climatéricas tão difíceis.»
«Muita gente sabia que se calhar não iria ganhar o melhor, mas o atleta que melhor conseguisse adaptar-se a estas condições de prova», contou o atleta do Sporting.
À partida para o Qatar, já todos esperavam condições adversas – por isso é que a prova foi marcada para começar à meia noite local -, mas o calor intenso que se fez sentir na maratona feminina na véspera da prova da marcha obrigou a cuidados redobrados.
«Estava bastante calor, muita humidade, e, sendo uma prova noturna, tive de tomar os cuidados todos desde o início para, no mínimo, conseguir concluir a prova. E foi isso que eu e a minha treinadora decidimos. Partir devagar para a meio da prova começar a andar mais rápido e atingir os lugares cimeiros», contou João Vieira.
«Para isso era preciso manter a cabeça bastante fria e estar muito calmo durante os primeiros quilómetros, ter paciência, para depois na segunda parte ser muito mais forte do que na primeira», explicou.
Com temperaturas acima dos 30 graus, mesmo de madrugada, deu para manter alguma parte fria? «Utilizei muito água gelada, muito gelo em cima da cabeça e do corpo. Tentei arrefecer o corpo o mais possível porque durante a preparação para esta competição fiz várias simulações em sala na Universidade de Coimbra para arrefecer o corpo o mais possível, para treinar estas condições», contou o marchador. E todo esse trabalho compensou.
«Por volta dos 40 quilómetros a humidade subiu bastante, mas aí já só faltavam 10 quilómetros, já estava na luta pela medalha e um atleta quando chega a essa altura já não está muito preocupado com isso», explica João Vieira, que até viu na sua idade uma vantagem para esta prova.
«No Qatar, jogou-se muito a experiência. Quem tivesse a cabeça mais fria, tivesse mais paciência, de certeza que teria melhor resultado. Uma coisa que os jovens muitas vezes não têm é paciência. Eu, por acaso, com esta idade, com muito trabalho por trás da minha treinadora, de um psicólogo e de um fisiologista de esforço, tenho essa paciência», disse o atleta, que mostrou como está a viver um bom momento.
«Este foi o meu melhor ano de sempre. Conquistei o Campeonato de Portugal, o bronze na Taça da Europa, fiz quatro vezes o mínimo para estar no Mundial e fiz três vezes 50 quilómetros nesta época. É muito bom. E com esta idade… é como se fosse um jovem.»
Mas, mesmo para quem se sente um jovem, 50 quilómetros marcha é muito violento, não é? «É uma prova exigente, mas fazer os 50 quilómetros muitas vezes não é o mais difícil. O mais difícil é toda a preparação para enfrentar. Fazemos muitos treinos de 40 quilómetros, muitos de 35, muito volume de treino de um dia para o outro e acusamos muita fadiga, muitas vezes mais fadiga do que a competir», explicou João Vieira, revelando: «Fiz à volta de 200 quilómetros semanais na preparação para esta prova.»
Nessa preparação, João Vieira contou com a mulher, Vera Santos, como treinadora o que torna o resultado «ainda mais especial».
«Há três anos que ela é minha treinadora e somos uma boa dupla. Para onde eu vou fazer recuperação ela também vai. Neste momento a minha filha também tem ido e esteve comigo o tempo todo na preparação, por isso, as coisas tornam-se muito mais fáceis.»
A filha do casal, com ano e meio, não esteve presente em Doha para ver a prova, mas acompanhou de perto. «Ela está em Portugal e viu-me a subir ao pódio. Estava a apontar para a televisão, para mim. Um dia vou contar-lhe que foi a primeira vez que os pais estiveram vários dias fora sem ela e o pai conseguiu um bom resultado. É uma historia feliz para todos.»
Outro «pormenor» que torna esta medalha «muito especial» para João Vieira é o facto de se ter tornado no mais velho medalhado de sempre em mundiais.
«É sinal de que vou ficar para a história do atletismo a nível mundial. É um orgulho bastante grande para mim. Como dizia um amigo meu: ‘cartão de cidadão é cartão de cidadão’. Em prova é igual para todos, desde o atleta de 20 ao atleta de 40 anos. Sinto-me feliz naquilo que faço, tenho prazer naquilo que faço, por isso é que aos 43 anos ainda ando aqui.»
Anda aqui e sem prazo para deixar de o fazer. «Há uns anos eu tinha posto como objetivo terminar a carreira no Rio de Janeiro, mas como nos Jogos Olímpicos anteriores tive de ir à mesa de operações e não treinei tanto, deu para fazer mais este ciclo. Neste momento eu e a minha treinadora já estamos a pensar em acabar Tóquio e fazer mais um ano ou dois... Enquanto conseguir potenciar o meu corpo para o rendimento desportivo, vou querer cá andar. Por isso, não sabemos quando me vou retirar.»
Para já, capítulo fechado em Doha e olhos postos noutra meta: «Estou só a descansar um pouco mais, e depois é pensar já em Tóquio 2020.»
E o que quer João Vieira alcançar no Japão? «Não costumo estabelecer metas muito rigorosas. Quando parto para uma prova é para fazer o melhor de mim. Isso muitas vezes tem acontecido, outras vezes não acontece.»
Em 32 anos de carreira, João Vieira já participou em quatro edições dos Jogos Olímpicos, 11 Mundiais (é o segundo atleta com mais participações na prova), seis Europeus, 11 Taças do Mundo e 12 Taças da Europa.
«O atletismo para mim e para o meu irmão nasceu de um sonho, que foi ver o Carlos Lopes em 1984 a ganhar uma medalha de ouro, e a partir daí foi o seguir desse sonho. Tivemos a felicidade de ter as qualidades para seguir uma carreira», contou João Vieira.
«Comecei com 11 anos no clube de Rio Maior. Primeiro a fazer corridas de rua, provas de corta mato, e comecei a fazer marcha com 13 anos. No distrito de Santarém precisavam de marchadores e eu e o meu irmão gémeo fomos os dois. Por volta dos 19 anos dediquei-me praticamente só ao atletismo e foi conseguir resultados a partir daí», recordou, apontando as dificuldades na fase da adolescência em conciliar o atletismo com as outras vertentes da vida.
«Não é fácil. A partir de uma certa idade deixei de ter muitos amigos porque não fazia noitadas, não ia para discotecas… há sacrifícios que os atletas têm de fazer. Esse foi um deles, o outro foi deixar de estudar aos 18 anos. Eu não era um bom estudante, era médio, e era difícil conciliar com uma vida profissional de atleta.»
A medalha de prata é o melhor momento da carreira? «Este foi um momento alto, mas tive outros como em 2013 um 4.º lugar nos Mundiais de Moscovo, nos 20 quilómetros - e agora este ano vou receber a medalha de bronze porque houve um atleta desclassificado por doping. As medalhas que conquistei no Europeu, uma de prata e uma de bronze. São esses os momentos mais altos da minha carreira», apontou João Vieira, que acrescentou depois: «Mas este é um ponto bastante alto e se calhar o meu melhor resultado de sempre.»
E qual foi o pior momento? «Foram os Jogos Olímpicos de Sidney em que estive presente e não pude competir por estar doente no dia da competição. Foi uma desilusão. Ainda por cima do outro lado do Mundo, na Austrália, onde eu tinha feito uma boa preparação, apesar de ser jovem. Eram os primeiros Jogos e eu queria participar, mas fiquei doente e tive de seguir os conselhos do médico», recordou.
«Nestes anos todos… nós não estamos sempre lá em cima. Vamos abaixo e voltamos a subir sem baixar os braços para enfrentarmos estas competições.»
E qual o segredo para se manter motivado e não desistir numa carreira já longa? «Sou um bocado teimoso a querer atingir objetivos e muito focado no que faço. E como tenho o apoio da minha treinadora e de outras pessoas que acreditam no meu trabalho, vou tendo o prazer de ir treinar todos os dias, como se fosse um jovem. Tem sido isto que me tem ajudado a poder continuar aos 43 anos.»