«Mais longe e mais alto» é uma rubrica do Maisfutebol que olha para atletas e modalidades além do futebol. Histórias de esforço, superação, de sucessos e dificuldades.

Nas últimas semanas, Lorene Bazolo desligou-se das notícias.

O conflito armado na Ucrânia tomou conta de todos os noticiários e ela, que aos dez anos teve de fugir de uma guerra civil, quer manter essas recordações bem longe.

Apesar de garantir que ultrapassou o trauma, as recordações do que viveu vão ficar para sempre e a atleta do Sporting prepara-se para representar Portugal nos Mundiais de pista coberta que se disputam em Belgrado a partir de sexta-feira.

Aos 38 anos, Lorene vive o melhor momento da carreira e diz que, pela primeira vez, vai para uma grande competição com o único propósito de desfrutar.

Aquilo que tem feito desde 2021 dá-lhe esse direito. E ânimo para isso.

Afinal, no último ano Lorene bateu três vezes (!!!) o recorde nacional dos 100 metros; tornou-se também a mais rápida de sempre a cumprir os 200m, melhorando uma marca que tinha mais de 25 anos; e já neste mês de março juntou a esses o recorde dos 60 metros, marca que tinha também quase um quarto de século.

Nada mau para alguém que só começou a correr aos 24 anos e que até aos 30, quando trocou o Congo Natal por Portugal, baseava a sua corrida… no talento.

É, por isso, de superação que fala a história daquela que é a portuguesa mais rápida de sempre. História que ela aceitou partilhar na primeira pessoa com o Maisfutebol na véspera de partir para os Mundiais na Sérvia.

«Fiquei sem recordações de infância, a minha casa foi destruída por canhões»

Natural de Brazzaville, capital do Congo, Lorene Bazolo nasceu no seio de uma família com fortes ligações ao desporto.

O pai, congolês, era diretor de uma universidade de desporto, enquanto a mãe, natural do Benim, trabalhava no ministério do desporto.

Assim sendo, desde cedo os três filhos do casal foram iniciados prática desportiva.

«O meu pai praticava judo e aikido e levou-nos para o judo a mim e aos meus irmãos. Eu comecei aos cinco anos no judo», começa por contar Lorene, assumindo que o talento para o desporto lhe parecia inato.

«Na escola também fazia desporto e nas aulas tinha sempre nota máxima. Tinha talento e os professores vinham-me buscar muitas vezes para ir representar a escola, mesmo noutros deportos. E ganhava quase sempre, mesmo sem treinar», orgulha-se.

Tudo na vida de Lorene Bazolo parecia, assim, indicar que ela faria carreira desportiva. Mas as coisas não foram tão fáceis como o cenário traçado até aqui fazia prever.

Ao longo da conversa com a atleta, torna-se óbvio que a força mental é o ponto forte da velocista que representa o Sporting desde 2014 e se tornou portuguesa em 2016.

E é impossível dissociar esse poder mental da guerra civil que, por volta dos 10 anos, lhe mudou a vida e adiou a afirmação desportiva.

«O Congo teve duas guerras civis e eu vivi uma. Tivemos de fugir e a nossa casa acabou destruída por canhões. Tudo o que tínhamos ficou queimado e por isso não tenho recordações da minha infância, como fotografias. Tivemos de construir uma casa nova e a nossa vida voltou a começar do zero», revela.

Apesar de ter ficado sem recordações palpáveis da infância feliz até então, as lembranças mais dolorosas permanecem até hoje.

«Lembro-me bem de fugir. Nem sabíamos para onde ir e isso durou alguns meses. Quando as coisas acalmaram, voltámos a Brazzaville e foi quando vimos que a casa estava destruída», acrescenta.

Esse cenário transporta-nos imediatamente para a realidade vivida neste momento na Ucrânia. E é então que Lorene nos confidencia que tem fugido dele como pode.

«Fico muito triste com o que está a acontecer e tento não ver muito sobre o assunto porque lembra-me do que eu já vivi. E não gosto de tocar nessa ferida», explica.

Oito anos longe do desporto não lhe apagaram a paixão

Com a ferida da guerra ainda por sarar, a pequena Lorene viu uma nova abrir e trocar-lhe as voltas no início da adolescência.

«Vivi no Congo até aos 13 anos. Depois, a minha mãe faleceu e a família materna decidiu que era melhor eu mudar-me para o Benim, onde morei durante oito anos.»

Ora, no país de origem da mãe, Lorene deparou-se com pensamentos diferentes daquela em que tinha crescido, no que dizia respeito à educação. E a principal mudança foi o afastamento do desporto.

«Enquanto estive no Benim não pratiquei desporto porque a mentalidade da família era diferente. As minhas tias queriam que eu me focasse apenas nos estudos e não me deixavam praticar desporto. Só tinha possibilidade de fazer desporto numa disciplina da escola», realça.

A paixão pelo desporto, porém, nunca se apagou. E o regresso ao Congo fez com que se reacendesse de forma definitiva. Ainda que para tal tenha sido necessário convencer o pai.

«Voltei aos 24 para fazer universidade e pedi ao meu pai para voltar ao desporto, mas ele não quis porque tinha ficado muito tempo sem praticar. Eu queria voltar ao judo, mas o meu pai insistiu para seguir os estudos porque eu não iria conseguir voltar depois de tanto tempo afastada», recorda, antes de falar num reencontro que lhe mudou a vida.

«Pouco tempo depois, encontrei um antigo professor meu que me convidou para ir para o atletismo. Eu ainda disse que seria difícil, mas ele insistiu e convenceu-me. Voltei a falar com o meu pai e ele disse que não estava de acordo porque estava a pagar-me a universidade e achava que me ia atrapalhar nos estudos».

A solução surgiu então sob a forma de um pacto entre pai e filha: «Ele disse-me: ‘quero que fiques entre os cinco melhores da turma’; eu fui a quarta melhor e ele cumpriu’», solta numa gargalhada.

Apesar da enorme vontade de voltar a competir, Lorene percebeu que a tarefa que tinha pela frente não se afigurava nada fácil.

«No início foi muito complicado. Eu sempre fui muito competitiva e ali ficava atrás de toda a gente. Nunca tinha feito atletismo sem ser na escola, tinha estado muito tempo parada, mas ficava tão triste porque antes ganhava tudo e agora ficava atrás de todos», recorda.

Então como agora, a receita para resolver o que via como problema foi simples: força de vontade e treino.

Com os horários da faculdade a poderem complicar a intenção num país onde «as pistas fecham todas às 17h», Lorene ajustou a vida para conseguir pelo menos treinar duas vezes por semana.

«Escolhi universidade que tinha aulas à tarde, acordava muito cedo para ir treinar durante dois ou três dias por semana e no final desse ano fui campeã do Congo de 100 e 200 metros», orgulha-se.

Lorene BAzolo foi porta-estandarte do Congo nos Jogos Olímpicos de Londres, em 2012

Mercado trabalho fechado ‘empurrou-a’ para Portugal onde foi traída… pelo sucesso

Apesar dos excelentes resultados que obteve no atletismo, com vários títulos nacionais e os recordes de 60, 100 e 200 metros – o da distância mais longa é o único que já não lhe pertence – Lorene admite que a sua ideia não passava por fazer carreira desportiva.

«Era licenciada em Administração de empresas e fiz mestrado em Finanças, que terminei em 2011. O meu objetivo era deixar o atletismo e trabalhar nessas áreas. Ainda estagiei durante seis meses num banco, disseram que me iam contratar, mas depois não me chamaram. E como não consegui trabalho durante um ano e continuava a brilhar no desporto, decidi emigrar e dedicar-me ao atletismo», contextualiza.

Foi então que surgiu o convite de um treinador português que Lorene conhecera em provas internacionais. Mas a barreira da língua começou por deixar a atleta de pé atrás.

«No início eu não queria vir porque não falava português, só francês. Mas com o pouco que me ofereciam, acreditei que podia evoluir», refere a atleta que chegou a Portugal para representar o JOMA, clube sediado em Monte Abrão.

«Fui para o clube que me oferecia condições que eu acreditava que me podiam permitir seguir o sonho», resume.

Apesar de admitir que as condições não eram as que hoje considera ideais, aquilo que o JOMA lhe oferecia foi suficiente para lhe mudar a carreira… aos 30 anos.

«Só quando cheguei a Portugal é que comecei a treinar de forma mais profissional e a procurar a perfeição. No JOMA, o meu objetivo era tentar impressionar e nesse ano só fiquei atrás da Carla Tavares, do Sporting», contextualiza.

E se o objetivo era impressionar, resultou na perfeição. No ano seguinte o Sporting contratou-a e a partir daí as portas da história do atletismo português escancaram-se.

«No Sporting é que começou a sério. Mudei de treinador em 2015-2016, porque o que tinha no JOMA era mais especializado em meio-fundo, e isso ajudou-me muito. O trabalho técnico e a mentalidade eram diferentes e ainda hoje continuo a trabalhar com o Rui Norte», elogia.

A correr pelos leões, Lorene Bazolo deu um salto competitivo claro e ajudou o clube a conquistar o título europeu em 2016 e 2018, além de ter conquistado todos os títulos nacionais de velocidade desde 2016, quando se naturalizou portuguesa… algo que também não estava nos seus planos.

«Quando vi para Portugal, o meu objetivo não passava por correr pelo país. O meu nível estava muito longe de me permitir isso. E na verdade, só queria fazer boas marcas e dar nas vistas porque tinha um conflito com a minha federação, que não me selecionou para uma prova apesar de eu ser a melhor do país», confessa.

«Aquela situação era injusta e eu queria mostrar-lhes isso para que não acontecesse a mais atletas. Só queria provar que estavam errados. Por isso é que emigrei para evoluir, continuar no atletismo mais alguns anos, conseguir boas marcas, e depois dedicar-me à minha área», acrescenta.

Acontece que o sucesso que teve em Portugal acabou por trair os planos que Lorene tinha.

«Quando comecei a fazer estas marcas, tive a proposta para representar Portugal e não podia recusar», sorri.

E agora não há volta a dar: Lorene Bazolo tornou-se num nome incontornável do atletismo português.

«Tenho muito orgulho pelos recordes. Não tenho palavras, parece que estou a sonhar», define a atleta que juntou fixou o novo máximo dos 60m, o único que lhe faltava, no início de março.

«Sabia que valia este recorde de 60 [7,17 segundos] desde 2018, quando fiquei a dois centésimos. Entretanto tive alguns problemas físicos, veio uma pandemia e as coisas complicaram-se. Mas tive paciência, continuei a acreditar em mim e no processo, apesar de a idade continuar a aumentar. E sinto que foi um dever cumprido», conclui.

Jogos Olímpicos aos 41 anos? Porque não?

Além da marca que lhe valeu o novo recorde nacional dos 60m, que desde fevereiro de 1998 pertencia a Lucrécia Jardim, o que mais orgulha a atleta do Sporting é a regularidade que tem apresentado esta época.

«Corri quatro vezes nos 7.29 segundos, o que é muita regularidade. Eu fiz cinco vezes a marca de qualificação para os mundiais», sublinha.

E agora em Belgrado, Lorene só quer aproveitar o momento.

«Bati o recorde, tenho uma boa marca, mas não quero colocar-me pressão. Não quero ter confiança de mais, apesar de ir com a melhor marca de sempre. Tudo pode acontecer. E aquilo que penso é que tenho uma nova oportunidade para mostrar que consigo chegar a um nível ainda mais alto», traça.

Perante o trajeto da carreira de Lorene e a regularidade que atingiu agora, a pergunta torna-se obrigatória: onde poderia ter chegado se tivesse chegado ao atletismo antes dos 38 anos?

«Não tenho qualquer dúvida que se tivesse começado a correr mais cedo, teria chegado a este nível mais nova. Mas a idade está na nossa cabeça. Claro que o avançar da idade pode trazer complicações, mas se o corpo não impede de fazer nada, estar bem mentalmente e trabalhar é o único segredo», defende.

Por isso, Lorene convence-se todos os dias que a idade é apenas um número. E como se pode ver pelos resultados mais recentes, as coisas estão a funcionar.

«Se começar a pensar nos 38 anos, isso pode trazer um bloqueio. Como tenho essa idade, preocupo-me em ter mais cuidado e o meu treinador também sabe trabalhar com isso. Mas eu consigo fazer tudo. Faço coisas nos treinos que os jovens não conseguem fazer. E isso só me dá mais vontade de continuar. Porque se o físico me está a dizer que sim, porque vou eu dizer que não?», questiona.

E com esta mentalidade, uma possível participação nos Jogos Olímpicos de Paris têm de estar no horizonte. Depois de já ter marcado presença nas últimas três edições – 2012 ainda com as cores do Congo; 2016 e 2020 já por Portugal – Lorene diz que a presença em Paris vai depender apenas dos sinais que o corpo lhe der.

«Os Jogos Olímpicos são um sonho para qualquer atleta. Eu já estive em três e não descarto nada em relação aos de Paris. Mas gosto de pensar ano a ano. Vou ouvir o meu corpo, se ele me disser que consigo chegar bem a Paris, mesmo com 41 anos, eu vou lá estar», promete.

E alguém se atreve a duvidar?

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