Mais longe e mais alto é uma rubrica do Maisfutebol que olha para atletas e modalidades além do futebol. Histórias de esforço, superação, de sucessos e dificuldades.

Há dois anos, o Sp. Braga lançou um desafio a Bruno Torres: além de jogador da equipa de futebol de praia, passaria a ser também treinador. E o balanço, para já, não poderia ser melhor: «Desde que sou treinador e jogador, ganhámos dois europeus, dois mundialitos, dois campeonatos portugueses e a Taça de Portugal… ganhámos as competições todas».

E a estes títulos juntou também os de Campeão da Europa, do Mundo e os Jogos Europeus conquistados ao serviço da Seleção Nacional no dourado ano de 2019… aumentando ainda mais o já longo palmarés.

Em entrevista ao Maisfutebol, o atleta de 39 anos conta como foi este percurso, desde os torneios de verão, com dormidas em parques de campismo, ao levantar sucessivo de taças e troféus, e mostra que, apesar de ter o nome no topo do futebol de praia nacional e mundial, tem os pés bem assentes na terra, ou melhor, na areia, ao explicar o motivo pelo qual nunca se dedicou exclusivamente à modalidade.

Mas recuemos então ao início, aos primeiros passos e passes na areia, mas também na relva, com a paixão herdada do pai, José Alberto Torres. «Fiz a minha formação no futebol de onze, mas no período de férias jogava muito à bola na praia, sendo da Póvoa de Varzim, era fácil. Comecei aos 14 anos a participar em torneios de futebol de praia locais, os designados torneios de café, e com regularidade durante quatro, cinco meses por ano», recorda Bruno Torres.

E não se ficavam pelos jogos em casa. «Arranjávamos uns patrocínios de lojas de desporto e cafés para pagar as inscrições nos torneios, as deslocações para os sítios, os parques de campismo onde ficávamos às vezes a dormir quando íamos, por exemplo, jogar ao norte de Espanha», explica o jogador.

A emoção ao ser campeão do Mundo pela Seleção em 2019

Mas a vida de Bruno Torres não tinha só futebol de pé descalço. Formado nas escolas do Varzim, jogou até aos 26 anos em clubes de escalões inferiores, como Pedras Rubras e Esposende, «equipas que treinassem à noite que era para poder conciliar os estudos com o futebol», esclarece.

Em 2006, o FC Porto convidou-o para disputar o campeonato nacional, que na altura ainda não era organizado pela Federação Portuguesa de Futebol. Estava, na altura a fazer a licenciatura em Educação Física e Desporto, no ISMAI, e ainda jogava futebol de onze, mas essa vertente da sua vida estava prestes a terminar.

«Era uma carreira na qual eu não tinha investido muito, apesar de haver muita gente que achava que eu o devia ter feito, mas sempre dei prioridade aos estudos. E como o ano de estágio na faculdade era muito importante, deixei de jogar futebol», conta. E não tardou muito até que o outro futebol, o de praia, ganhasse uma inesperada importância na sua vida.

«Passado nem meio ano, fui convocado pela FPF para um estágio da Seleção. Era a primeira vez que a Federação ia buscar jogadores a essas equipas para integrarem o estágio, que até então habitualmente era feito por um grupo de jogadores de Lisboa. Fui um dos primeiros a serem chamados à Seleção e desde então praticamente nunca mais de lá saí», recorda Bruno Torres.

Esse foi o ponto de viragem. «Acabei por abraçar o futebol de praia de forma mais séria e com outros objetivos.» Uma relação séria, mas não exclusiva.

«Nunca me dediquei exclusivamente ao futebol de praia, sempre tive uma atividade em paralelo. Dei aulas em escolas, tive também um negócio num ginásio… sempre trabalhei na área do fitness e de educação física», aponta, dizendo que o motivo é o mesmo que o levou a nunca ter colocado o futebol de onze à frente dos estudos.

«O meu pai foi jogador e treinador de futebol e eu sempre acompanhei a carreira dele e sempre senti a insegurança deste mundo. A insegurança que vi em algumas fases da carreira dele fez-me ganhar consciência de que, apesar da paixão que eu tinha, devido a tudo o que ele era, deveria seguir outro caminho. Eu queria ter outra solução», explica Bruno Torres, que aponta que contou com o apoio do pai nessa decisão.

«Há uns anos, grande parte dos pais apoiavam muito mais a decisão de os filhos estudarem, do que de seguirem a carreira de futebolista, até porque antigamente a carreira de jogador até nem era financeiramente tão compensatória como hoje em dia pode ser. Hoje em dia, devido à evolução do futebol e todo o mediatismo, sabemos que há muitos pais que querem que o seu filho seja o Cristiano Ronaldo e acabam por achar que a carreira académica até nem deve ser prioridade».

E se uma carreira no futebol traz incerteza a nível financeiro, mais ainda se se tratar de futebol de praia. «São poucos os jogadores de futebol de praia que podem viver única e exclusivamente da modalidade. Só os jogadores de craveira internacional, que têm a possibilidade de irem jogar vários campeonatos no exterior na mesma época é que conseguem ter capacidade financeira para isso», explica.

«Eu nos últimos anos tive a hipótese de me dedicar exclusivamente ao futebol de praia, mas sempre fui muito pragmático e nunca quis deixar a minha área profissional», conta ainda o jogador que adianta que, mesmo quando jogou no estrangeiro [Barcelona , Roma, Lokomotiv Moscovo, Lignano Sabbiadoro, Besiktas, Alanya, Seferihisar Cittaslow] «conseguia conciliar com o outro trabalho».

Em Portugal, Torres representou o FC Porto, Vitória de Guimarães e há oito anos que veste a camisola do Sp. Braga, sendo os últimos dois com papel duplo de jogador e treinador, um desafio que lhe foi lançado pelo presidente arsenalista.

Sp. Braga vencedor do Mundialito 2020 (foto Sp. Braga)

«A minha decisão baseou-se no facto de ter pensado: ‘Se eu disser que não, quem irá ficar com o projeto?’ Não havendo ninguém que conhecesse a realidade do projeto melhor do que eu, não faria sentido eu dizer que não. Não foi uma resposta imediata - falei com a minha família e com alguns amigos mais chegados -, mas ficou claro naquele instante, na reunião com o presidente, com 99% por cento de certeza de que a resposta iria ser positiva, e felizmente as coisas têm corrido muito bem.»

Bruno Torres diz que não viveu ainda nenhuma situação delicada pelo facto de ter uma dupla função, até porque «como jogador já tinha uma postura bastante vincada a nível de liderança.»

«Acredito que quase nada tenha mudado, principalmente com aqueles que jogam comigo há mais tempo, que partilharam comigo muitos momentos dentro do campo no clube e na Seleção», explica, adiantando que, «por ser uma pessoa bastante calculista e pragmática», tenta sempre «antecipar possíveis problemas ou situações complicadas de gerir.»

Passa pouco mais de uma semana desde que os arsenalistas conquistaram o Mundialito em Moscovo. Há um ano, quando venceram pela primeira vez, tornaram-se na primeira equipa portuguesa a ganhar esse título. Agora são, a par do Lokomotiv de Moscovo, as únicas equipas do Mundo a ganharem por duas vezes, o que faz com que os arsenalistas sejam já um nome que impõe respeito nas competições internacionais.

«Aquilo que há uns anos nós sentíamos ao ver o Lokomotiv de Moscovo ou o Kristall, hoje em dia todos sentem em relação ao Braga. Isso é algo que nos deixa muito satisfeitos, nos motiva muito, mas também nos dá mais responsabilidade. A pressão é cada vez maior», lembra Bruno Torres.

E, com um palmarés tão longo, ainda é especial levantar mais um troféu? «Não vou dizer que o sentimento é igual porque, quer queiramos, quer não, esse hábito bom faz com que sintamos as coisas de forma diferente. Obviamente que a alegria do momento varia, mas está sempre presente.»

«Ganhar é um bom hábito para repetir, mas, acima de tudo deve implicar um aprendizado constante porque sabemos que aquilo que se fez para conquistar algo, à partida não será suficiente para uma futura conquista. Então temos de estar sempre atentos para aprender com tudo e de forma a, no futuro, voltarmos a ganhar», frisa.

Além do clube, Bruno Torres é uma das figuras da formação das Quinas e frisa que «as conquistas do Braga e da Seleção não se podem dissociar umas das outras», até pelo número de atletas dos arsenalistas que são presença habitual na Seleção.

«A evolução da modalidade tem permitido que estas conquistas aconteçam. É criar condições para que o futebol de praia seja encarado de outra forma que faz com que haja uma maior seriedade na abordagem que é feita pela federação e pelos clubes», aponta o jogador.

Campeão do Mundo com a Seleção em 2019

Numa altura em que Madjer anunciou o fim da carreira, Bruno Torres diz que, «tendo em conta a lenda que ele é, a carreira que ele teve, o impacto que ele teve na modalidade, alguma coisa vai mudar, quanto mais não seja por ele não estar com a camisola vestida dentro do campo.»

«É óbvio que irá haver um pós-Madjer. Com o Madjer, as coisas foram fantásticas, mas tenho a certeza de que sem o Madjer o futebol de praia em Portugal tem condições para continuar no trajeto das grandes conquistas. O que me deixa satisfeito é ele continuar connosco. Isso é importante», frisa, lembrando:

«Não há jogadores eternos e sabemos que temos de lidar com as suas saídas, da mesma forma como tivemos de lidar com a saída do Alan, que também era uma figura mítica, e a saída de outros jogadores, que se calhar não tiveram tanto destaque, mas quem esteve lá dentro com eles sabe o quão grande foi a importância deles, como o Paulo Graça, o Bruno Novo, o Zé Maria, o Marinho, o João Carlos. São ciclos e têm de ser encarados com uma ambição muito grande e com vontade de trabalhar cada vez mais, até porque há coisas que têm de ser colmatadas.»

Madjer e Alan eram dois dos nomes mais destacados do futebol de praia nacional ainda quando Bruno Torres não tinha sido chamado à Seleção, assim como Hernâni, que «também admirava muito, principalmente pela maneira de jogar».

«Tive a felicidade de jogar com ele no início da minha caminhada na seleção. Foi o último ano da carreira dele, e tive o prazer de o conhecer pessoalmente, e de partilhar balneário com ele. Constatei tudo aquilo que sentia vendo-o na televisão. Era realmente um jogador com uma raça tremenda e que dava tudo ao jogo e isso foi sempre com que eu me identifiquei e a marca que eu construí durante a minha carreira. Quando se fala no Torres, fala-se de uma carreira de muito trabalho, muita dedicação e muito sacrifício», diz Bruno sobre si próprio.

Campeão do Mundo de 2015 com a Seleção (Foto FPF)

A seu lado, no Sp. Braga, tem também Jordan, que foi distinguido como o melhor jogador do mundo, o que enche Bruno Torres de «orgulho e satisfação.»

«Eu sou de um grupo reduzido de pessoas que acompanham o Jordan desde muito cedo e que têm vivido com ele muitos episódios, dentro e fora do campo, que fizeram com que fosse possível ele atingir este patamar. Sinto-me satisfeito porque é algo de que fiz parte.»

Aos 39 anos, Bruno Torres não pensa ainda em fim de carreira, mas já é uma questão que avalia todos os anos. «Não sei se vou acabar a carreira daqui a um, dois, três, quatro anos… O que sei é que, no dia em que acabar a carreira, vai ser quase uma surpresa para mim», diz, reforçando a exigência da modalidade.

«Quem anda nisto há muitos anos, sabe bem a diferença da exigência entre agora e há dez anos. Por isso agora já não se veem ex-jogadores de futebol a jogarem futebol de praia como antigamente. O nível competitivo é demasiado exigente e já não é fácil, mesmo para alguém que tenha tido uma boa carreira no futebol, adaptar-se e conseguir tudo a que o futebol de praia obriga.»

Mas, mesmo sem contar, em 2012 Bruno Torres teve o fim da carreira à vista, com uma lesão grave no joelho ao serviço da Seleção.

Atenção, as imagens são de conteúdo sensível:

«Tive várias lesões graves ao longo da carreira, essa foi a mais grave de todas, ainda para mais pelo aparato. Na altura, a primeira coisa que me passou pela cabeça foi que tudo tinha terminado. Mas, passada cerca de meia hora, o estado de espírito mudou, principalmente pelas mensagens de apoio e pelo diagnóstico que foi feito. Eu sabia que teria capacidade para superar e foi o que aconteceu. A previsão era de 12 semanas, mas ao fim de seis semanas eu já estava a jogar.»

«Foi muito feio. Mesmo quem vê hoje, aquilo ainda assusta. Felizmente não foi o fim e tenho conquistado bastantes coisas desde aí», frisa Bruno Torres, que diz que esse momento foi «fundamental» na sua carreira.

«Fez-me crescer muito e acreditar que realmente tinha capacidade para tudo o que, felizmente, tenho vindo a conquistar, e mostrou-me que havia muita gente que me apoiava, acarinhava, me admirava.»

Olhando para trás, para os momentos positivos, encontra um título mais especial? «Especiais tenho muitos e por vários motivos, como o campeonato do Mundo conquistado em Espinho, na nossa casa, a conquista do Europeu também esse ano em casa… Tudo o que seja conquistado perante os nossos adeptos, é algo que nos marca mais. Mas, tendo em conta toda a minha história no Braga, tenho de por também no topo estas últimas conquistas que têm marcado a historia da modalidade. Não só pelo facto de ter sido a primeira equipa portuguesa a conseguir, mas sermos a primeira equipa mundial a ter um palmarés deste género», aponta Bruno Torres.

E o que lhe falta ainda ganhar? «Falta o que houver para ganhar», aponta o jogador com ambição, lembrando que uma taça que nunca conquistou foi a Intercontinental de Seleções.

Bruno Torres falou ainda sobre o que ainda há para fazer na modalidade em Portugal, dizendo que seria importante «existirem estádios cobertos para se poder jogar o ano todo.»

«Se houvesse uma competição de dez ou oito meses, haveria condições para os clubes investirem de maneira a que os atletas jogassem só futebol de praia e vivessem disso. Enquanto não houver condições que permitam haver formação, treino em pleno inverno, dificilmente se irá atingir esses patamares. É uma modalidade fantástica. Bonita demais, espetacular, emocionante e, sendo bem praticada, capta multidões», remata.

Artigo original: 24/02; 23h50