Mais longe e mais alto é uma rubrica do Maisfutebol que olha para atletas e modalidades além do futebol. Histórias de esforço, superação, de sucessos e dificuldades.

Já todos ouvimos alguma vez a expressão «dar 200 por cento», certo?

Pois bem, Hugo Gaspar faz isso todos os dias. Sete dias por semana. Trinta dias por mês. 12 meses por ano... (Já deu para perceber, certo?)

Dizíamos: dá 100 por cento como jogador profissional de voleibol do Benfica, equipa que representa há dez épocas consecutivas e da qual é capitão.

E ainda arranja outros 100 por cento para dar como médico Unidade Saúde Familiar Travessa da Saúde, do Agrupamento de Centros de Saúde Loures-Odivelas, no qual é também diretor do internato médico geral e familiar do ACES Loures-Odivelas

Como se tudo isto não fosse já trabalheira que chegue, Hugo Gaspar ainda arranjou um tempinho para falar com o Maisfutebol, no rescaldo de uma qualificação histórica do Benfica para a fase de grupos da Liga dos Campeões.

Mas já vamos à parte desportiva. Antes disso, há uma coisa que nos está a intrigar: como é que se conciliam duas carreiras tão exigentes?

A resposta vem embrulhada numa gargalhada.

«Eu costumo dizer que é uma coisa organizada num caos. Ando sempre a correr. Tanto na unidade onde trabalho como no Benfica. Quase não há tempo para parar entre ser médico e jogador de alto nível», descreve, rematando: «às vezes gostava que as pessoas andassem uma semana comigo para perceberem como é esta correria.»

Hugo, estamos aqui precisamente para perceber isso. Como é, afinal, essa correria?

«Olha, é fazer entre 40 e 48 horas semanais na medicina, treinar todos os dias no Benfica – sendo que o treino que não faço de manhã tenho de o juntar todos os dias à noite; tentar conjugar os horários muito bem para não faltar, nem chegar atrasado, a nenhum treino, que não falto; e ter tudo muito bem organizado para não faltar também a nenhuma consulta, que não posso faltar.»

Nós bem queremos deixá-lo respirar, mas o homem não consegue parar.

«É ter de desligar de uma consulta para entrar num treino 15 minutos depois. E é começar a trabalhar às 8 da manhã e acabar sempre depois das 21h30. Todos os dias!», conclui com nova gargalhada.

Apesar de «toda esta loucura» que por vezes «é muito complicado conciliar, e depois a família é que sofre», Hugo Gaspar garante que tudo tem valido a pena.

«Tenho vivido a 200 por cento a minha vida e se o faço é porque gosto. Claro que há momentos bons e outros menos bons, mas isso faz parte», resume o jogador de 37 anos.

«Regresso a Portugal? Coloquei a medicina à frente do voleibol»

Se hoje o convívio entre o voleibol e a medicina é pacífico (apesar de cansativo) – há cerca de 15 anos Hugo Gaspar viu-se colocado perante um dilema: seguir uma carreira internacional ou voltar a Portugal para concluir o curso de medicina.

O jogador aceita recuar no tempo para recordar como tudo aconteceu.

«Já tinha feito os primeiros três anos de Medicina, aqueles que é habitual dizerem que são os anos mais difíceis, quando recebi a proposta para ir para Itália. Aceitei e assinei contrato de quatro anos.  No primeiro ano ganhámos tudo, correu muito bem e eu iria continuar no clube. Só que quando questionei a faculdade sobre a possibilidade de suspender a matrícula, disseram-me que não me podiam garantir que poderia retomar depois», explica.

Na altura, Hugo pensou a longo prazo e a opção foi então voltar a Portugal.

«Com três anos feitos, assustei-me com a possibilidade de não conseguir concluir o curso, uma vez que era o meu futuro que estava em jogo. Pedi para me dispensarem para voltar a Portugal porque cá conseguiria conciliar os estudos com o voleibol», continua.

O Benfica a trocar os planos de uma nova emigração

Olhando para trás, não há espaço para arrependimentos na decisão de Hugo Gaspar. Mas existe espaços para uns «ses».

«Coloquei a medicina à frente do voleibol. Na altura falou mais alto garantir um futuro na Medicina, e não tenho dúvidas de que foi a decisão certa. Mas com outras leis, se houvesse as possibilidades que existem hoje, teria optado por fazer uma carreira ao mais alto nível no estrangeiro», admite.

Após a referida época no Sisley Treviso, equipa na qual se sagrou campeão nacional italiano e disputou a Liga dos Campeões, o jogador que alinha na posição de oposto voltou a rumar ao norte do país. Mas em vez do Esmoriz, clube que o acolheu após ter feito a formação no Sport Operário Marinhense, da Marinha Grande, Hugo Gaspar rumou ao V. Guimarães.

No clube vimaranense, fez quatro épocas, conquistou um título nacional e voltou a participar na Liga dos Campeões. Seguiu-se um ano no Castêlo da Maia e, já com o curso terminado, a ideia de voltar a emigrar… até que apareceu o Benfica a trocar os planos

«Quando acabei a faculdade pensei voltar a emigrar, mas foi nessa altura que surgiu a proposta do Benfica. Uma proposta muito boa, num projeto bem estruturado e achei que me compensava ficar em Portugal», confessa.

Já lá vão dez anos de águia ao peito, cerca de duas dezenas de títulos e, agora, a tal qualificação histórica para a fase de grupos da Liga dos Campeões.

Uma montanha para escalar na Europa

Na quarta-feira, a jogar na Croácia diante do Mladost Zagreb, o Benfica conseguiu aquilo que Hugo Gaspar descreve como o culminar de muito trabalho feito ao longo dos últimos anos. E um objetivo que já tinha estado perto de ser alcançado, mas que fugira sempre.

«Este apuramento mostra que todo o trabalho que temos feito nos últimos anos tem sido bem feito. Demonstrámos que conseguimos, de forma planeada, atingir o alto nível europeu, que era objetivo do clube já há alguns anos. Como capitão de equipa, eu defendia há muito tempo que conseguiríamos jogar com os melhores jogadores do mundo e agora vamos finalmente conseguir isso», descreve.

E quando Hugo diz que o Benfica vai defrontar os melhores do mundo, é mesmo isso que vai acontecer, como percebemos ao ver os adversários que calharam em sorte às águias: VERVA Varsóvia (Polónia), Tours (França) e Perugia (Itália).

«Se fizermos um paralelismo com o futebol, podemos dizer que calhámos com o Perugia que é uma espécie de Manchester City; o Tours é como um Paris Saint-Germain; e um Varsóvia que se calhar está ao nível de um Borussia Dortmund», analisa, terminando com nova gargalhada: «acho que assim se percebe o nível que nos calhou.»

«São equipas de alto nível, com alguns dos melhores jogadores do mundo. Aliás, uma delas, o Perugia, tem aquele que é considerado o melhor jogador do mundo: o Wilfredo León», continua, não vendo nesse sorteio, porém, nada de negativo.

«Só participando e defrontando os melhores é que vamos crescer», defende, dando o exemplo do que tem acontecido com o andebol português.

«Quem é que há uns anos pensava que o FC Porto ou o Sporting poderiam andar a ganhar tantos jogos na Liga dos Campeões? E é isso que está a acontecer. As equipas portuguesas andaram a tentar entrar, perderam muitas vezes, andaram, andaram e conseguiram estabilizar-se entre os melhores», elogia.

Os momentos mais marcantes e um final que ainda não se anuncia

Na carreira de grande parte dos desportistas, os 37 anos costumam ser uma boa idade para se fazerem balanços. Contudo, Hugo Gaspar ainda não pensa nem nisso, nem no final da carreira.

Porém, nós enganamo-lo – sem o querermos apontar ao ponto final da carreira, que fique claro – ao perguntar se este tão ambicionado apuramento para a Champions terá sido o melhor momento no clube da Luz.

«Não diria. Acho que o melhor momento foi a primeira vez que fui campeão. Isso nunca se esquece. Era algo que o clube desejava há muito tempo e lutámos bastante para conseguir aquele primeiro título. E foi o início de um período muito forte, durante o qual já ganhámos perto de vinte títulos», sublinha, ainda que valorizando este feito que o clube da Luz nunca antes alcançara.

«A entrada na Liga dos Campeões era um objetivo que ambicionávamos, mas os títulos são sempre aquilo que nos traz melhores recordações.»

Com o tempo que tínhamos pedido a esgotar-se – e tendo nós percebido o quanto ele está contado na vida de Hugo Gaspar – atiramo-nos com tudo para a questão de quanto tempo pensa o jogador prolongar esta loucura do dia-a-dia.

«Nunca coloquei qualquer meta. E digo sempre que enquanto me sentir com capacidade física e psicológica, e perceber que ainda posso ser útil e fazer a diferença, continuarei a fazer isto. Quando sentir que posso estar a mais e que os benefícios sejam menos do que os contras, aí sairei», devolve sem hesitações.

Está visto. A loucura é para continuar.

E a 200 por cento, pois claro.

Artigo original: 02/12/2019; 23h50