Mais longe e mais alto é uma rubrica do Maisfutebol que olha para atletas e modalidades além do futebol. Histórias de esforço, superação, de sucessos e dificuldades.
É ao sabor do vento que Jorge Lima e José Costa têm navegado por uma carreira internacional de respeito.
A dupla de velejadores da classe 49er vai para a segunda participação em Jogos Olímpicos, depois da presença no Rio de Janeiro – Jorge Lima fará a terceira participação, uma vez que esteve presente também em Pequim.
Eles, que foram os primeiros portugueses a apurar-se para Tóquio, em julho de 2018, no Mundial que decorreu em Aahrus, vão chegar à competição mais de três anos depois de terem conseguido o apuramento.
Mas esse é apenas um detalhe, numa Odisseia que tem sido feita contra ventos e marés. Porque mesmo quando os sopros não são favoráveis, o barco não pode parar. É preciso arranjar forma de seguir na direção certa. E isso sai-lhes sempre do corpo.
Como a dedicação que têm à modalidade, de resto. Porque apesar de terem na vela a sua atividade, aquilo que lhes é exigido ultrapassa largamente o que recebem em troca.
Com percursos bem distintos na modalidade, Jorge e José formam dupla desde o final de 2008 e garantem que não podiam estar mais satisfeitos com a parceria que se tornou amizade.
O fim, porém, já surge de forma bem nítida na linha do horizonte. Porque os 39 anos do Jorge e os 36 do José obrigam-nos a pensar um pouco mais neles próprios.
«Continuar a viver assim já seria uma grande irresponsabilidade», lamenta Jorge quando a conversa chegou ao tema dos apoios. Ou da falta deles, neste caso.
Mas já lá vamos. Antes interessa falar do que têm sido os percursos dos dois velejadores.
Uma regata com mais 30 anos
Não se pode dizer que a vela foi uma paixão instantânea para Jorge Lima. Com pai e mãe praticantes de windsurf e o irmão mais velho – Gustavo Lima, que participou em cinco edições dos Jogos Olímpicos - também ligado aos desportos náuticos desde muito novo, o pequeno Jorge também se lançou às velas com sete anos… mas sem grande vontade.
«Ao início não gostei muito. Era inverno e para mim era muito duro. Porque na altura não havia fatos pequenos e eu sofria um bocado com o frio», explica, lembrando que chegou a abandonar a prática.
«Mas quando voltei, um pouco mais velho, tudo mudou. Porque de repente era como um miúdo ter o controlo de um carro e controlar tudo. E aquilo deu-me muito gozo, também porque percebi muito depressa como o vento funcionava e conseguia andar bem», continua.
E depois Jorge Lima começou a ganhar mais gosto, ao ritmo que os títulos também começaram a aparecer. «Fui três vezes campeão nacional da classe Optimist, que é uma competição para crianças, participei em quatro mundiais, depois mudei para a classe Laser Radial e tive bons resultados em mundiais de juniores e em 2003 experimentei a 49er», detalha.
Nessa mudança para um barco maior – fazendo dupla com Francisco Andrade, com quem foi aos Jogos Olímpico em Pequim – foi fundamental o apoio do pai.
Isto, porque o primeiro barco que compraram era já um pouco velho e não aguentou muitas provas. E uma embarcação nova exigia um esforço financeiro que os dois velejadores não tinham capacidade para suportar.
«Como o meu pai viu que tínhamos potencial, porque conseguíamos resultados, ajudou-nos a comprar um barco», assume Jorge Lima, revelando que, à data, a embarcação teve um custo de cerca de 20 mil euros.
Mas o esforço valeu a pena. De tal forma que, em 2005, os velejadores conseguiram financiamento para competirem, tornaram-se autónomos e puderam devolver o investimento que o pai de Jorge Lima tinha feito.
E se ainda houvesse dúvidas, o apuramento para os Jogos Olímpicos em 2008 dissipá-las-ia, ainda para mais com a classificação à porta do top-10, com 11.º lugar em Tóquio.
Esse foi também o ano em que Jorge Lima e José Costa se juntaram, depois de terem sido apresentados por Gustavo Lima, um ídolo antigo que se tornara companheiro de José Costa anos antes.
«De repente, começou uma relação que mais do que de atletas, é de amizade. E o potencial que eu previa que podíamos ter como dupla, tornou-se ainda maior», resume Jorge Lima.
Do andebol do Benfica para a vela
Parceiros, amigos, mas não só.
José Costa acrescenta uma vertente à relação, com o foco no companheiro.
«O Jorge é muito bom professor. Eu nunca tinha tido qualquer contacto com o barco do 49er. Aquilo era uma coisa completamente diferente de tudo o que eu já tinha feito e não tinha noção da dificuldade. Mas ele tem uma grande capacidade para ensinar», elogia.
Isto, porque o percurso de José Costa é muito diferente daquele que foi percorrido pelo parceiro. Apesar de a vela ser algo que o acompanha desde muito novo, sempre foi algo encarado como hobby. O desporto de José foi, até muito tarde, o andebol.
«O meu pai jogou andebol profissionalmente e, apesar de eu ter praticado vários desportos na infância, o andebol sempre foi o mais sério», diz o velejador natural de Tavira.
A seriedade com que encarava o andebol traduziu-se em presenças constantes na seleção do Algarve, na chegada às seleções jovens e ao Benfica, onde acabaria o percurso na modalidade.
«Quando entrei na Universidade vim para Lisboa e na altura um amigo falou-me em ir treinar ao Benfica. Fui só com a ideia de me manter a treinar, mas logo no final do primeiro treino perguntaram-me se eu não queria jogar na equipa de juniores», convite de José aceitou de imediato.
«Era uma equipa gira, ficámos em segundo no campeonato e na Taça. Só perdíamos mesmo com o FC Porto», recorda.
Acontece que na passagem para sénior a ideia do clube quanto a ele passava por empréstimo, situação que não lhe agradou. E como sempre existira uma ligação à vela, ele começou a dedicar mais tempo a essa outra paixão.
«Comecei a andar bem e decidi participar numa prova grande que costuma haver em Palma de Maiorca. E no final do primeiro dia, tive um bom resultado, o Gustavo Lima também estava lá e veio falar comigo e dar-me os parabéns sem me conhecer de lado nenhum», recorda.
Foi o início de um sonho para José Costa, que assume que tinha no velejador que acabara de ser 5.º classificado nos Jogos Olímpicos de Atenas um ídolo.
Assim, em 2005, José passou a ser companheiro de treino de Gustavo Lima, com quem, confessa, também aprendeu muito. «Cada minuto que podia treinar com ele era excelente para mim, que tentava ser uma esponja para absorver tudo o que podia dele», desvenda.
Acabou, portanto, por se um passo quase natural que Gustavo Lima sugerisse o nome de José Costa ao irmão, quando este procurava um novo parceiro para a classe 49er. Enquanto José, já depois de ter visto a Federação fechar-lhe a porta a um possível apoio, encarou como um bom desafio a mudança para uma classe que nunca tinha experimentado.
E a coisa não tem corrido mal, apesar de tudo. Apesar de tanto.
«Isto é uma vida meio sofrida»
Ser velejador profissional em Portugal é muito difícil. É fácil perceber que os custos são muitos. E os apoios escasseiam.
«Não temos clubes que nos contratem e nos ofereçam estabilidade. Em Portugal, a única forma de ser apoiado é entrar no projeto olímpico e receber a bolsa», diz José Costa.
«Mas estamos a falar de uma bolsa. Não é um contrato, não tem direito a subsídio de férias, de Natal, ou de desemprego. A ideia é que a bolsa seja um complemento, mas para quem se dedica à vela em Portugal acaba por ser a única forma de remuneração», continua.
Jorge Lima, complementa a ideia. «Aquilo que é exigido é brutal. Basicamente, quem começa, tem de ser logo um dos melhores do mundo. Porque só ficando entre os 16 primeiros classificados num mundial é que se consegue entrar no projeto olímpico», realça,
«Isto é uma vida meio sofrida. Andamos nisto muito por amor à camisola, por gostarmos de competir e porque somos casmurros. Mas para nos mantermos neste nível somos obrigados a um grande esforço pessoal e familiar», continua José Costa, concluindo: «há que abdicar de muita coisa para continuar. Inclusivamente do nosso bem-estar».
Nesse sentido, e apesar da vela ser um desporto que permite uma grande longevidade das carreiras, Jorge Lima revela não ter a ambição de igualar as cinco participações do irmão em olimpíadas.
«Esta vai ser a nossa última participação. Como diz o Zé: temos de abdicar de tanta coisa e a compensação é tão baixa, que é muito difícil. E eu não quero viver mais assim. Vou agora ser pai e acho que já seria uma irresponsabilidade continuar», confessa.
«Passo 40 minutos pendurado numa árvore… visto de fora é ridículo»
Apesar de algum desalento que se possa entender nas palavras dos dois atletas, a motivação está sempre presente na rotina de ambos.
E a prova disso têm sido estes últimos meses. Confinados em casa, Jorge e José tiveram de encontrar alternativas para poderem continuar a treinar com a mesma intensidade.
O facto de ter um terraço facilitou a adaptação de Jorge, cuja principal diferença é o facto de o preparador físico que o passou a acompanhar há cerca de dois anos o fazer agora à distância.
«É diferente treinar aqui do que num ginásio. Faz-me falta ouvir as outras pessoas a treinar e não posso ter música de fundo, porque se não deixo de ouvir o meu preparador. No início foi complicado levar o corpo a certos limites, mas agora sinto-me muito bem fisicamente», assegura o homem do leme da dupla.
Mais engenhosa foi a forma encontrada pelo companheiro, cujo trabalho na proa tem outras exigências físicas.
«Eu preciso de muita resistência e tenho picos de explosão e de força, muitas vezes», introduz, antes de resumir a forma como treina: «Eu gosto de levantar pesos como a malta do judo, andar de bicicleta como os do triatlo e nadar tão rápido como os da natação», relata, sorridente.
Porém, há algo que não consegue reproduzir nem na sala do apartamento transformada em ginásio, nem no quarto onde montou a bicicleta estática.
«Quase todos os movimentos na vela são de puxar e aquilo que conseguimos fazer com o peso do corpo só permite empurrar, por isso, lembrei-me de pedir ao condomínio para montar o trapézio numa árvore e eles autorizaram», confidencia.
O resultado é que agora, dia sim, dia não, lá está José Costa pendurado numa árvore a tentar reproduzir a (desconfortável) posição que tem no barco.
«Visto de fora deve ser ridículo – é ridículo, aliás -, mas fico 40 minutos pendurado na árvore e consigo criar aquela linha horizontal à água como tenho no barco e até chamadas faço enquanto estou ali pendurado», declara.
Tudo, porque há o objetivo claro de conseguir um bom resultado em Tóquio, depois do 16.º Lugar nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro.
Para isso, os atletas até tinham começado a trabalhar com um antigo adversário argentino que não conseguiu o apuramento e que os está a ajudar naquilo que consideram ser o ponto mais fraco da embarcação.
«Nós guiamos bem, conseguimos adaptar-nos a condições mais complicadas facilmente, mas na reta da meta falta-nos velocidade de ponta. E o barco desse nosso colega era dos mais rápidos nessa fase», explica Jorge Lima, que considera que essa é uma das razões pelas quais o adiamento até foi uma boa notícia para a dupla.
«Dá-nos mais tempo para trabalhar esse detalhe», nota, ele que também até terá uma motivação-extra daqui a um ano.
«Vou ser pai de uma menina em julho e assim ela já vai ter um ano e será mais uma força», sublinha, antes de apontar os objetivos para a competição.
«Um lugar nos dez primeiros seria muito bom e conseguir um diploma olímpico, que significaria estar nos primeiros oito, seria superpositivo. Mas a vela é um desporto de tantas variáveis que não controlamos, que temos de contar com tudo o que possa acontecer, para cima ou para baixo desses lugares», explica.
Certo é que, com a meta para o fim da carreira à vista, e ainda com esse grande objetivo por chegar, o balanço não podia ser mais positivo.
«São 12 anos de equipa e eu sinto-me muito orgulhoso do que fizemos. Estamos a caminho da reta final e há muito orgulho neste trajeto», finaliza Jorge Lima.