«Mais longe e mais alto» é uma rubrica do Maisfutebol que olha para atletas e modalidades além do futebol. Histórias de esforço, superação, de sucessos e dificuldades.

Liliana Cá vive, por estes dias, talvez a melhor fase da carreira. A 27 de fevereiro, em Vagos, obteve os mínimos para os Jogos Olímpicos no lançamento do disco. No último sábado, em Leiria, nas provas de observação de lançamentos, bateu o recorde nacional - 66,40 metros - superando em um metro a marca que vigorava há quase 23 anos: os 65,40m de Teresa Machado (3 de maio de 1998).

É uma de sete filhos de pais guineenses. A primeira dos quatro que nasceram em Portugal, no Barreiro. Passou pelo Sporting seis anos e, de forma mais fugaz, no Benfica, além de um clube em Inglaterra, o New Ham & Essex Beagles. Esteve cinco anos sem competir, mas o regresso, muito impulsionado pelo seu treinador, Luís Herédio, conhece dois capítulos marcantes para a atleta de 34 anos do Novas Luzes, clube de Bobadela, Loures.

A satisfação por ter bilhete para Tóquio – está entre os 38 portugueses que já o conseguiram – não podia ser maior. «Não estava à espera. Só comecei a ficar esperançosa que ia conseguir mínimos depois da última competição no Brasil [ndr: no Grande Prémio Brasil, em São Paulo, dezembro de 2020], em que a minha melhor marca foi nula, mas pedi para medir. Tinha sido 62,65 e disse: não é por 50 ou 60 centímetros que vou desanimar. Disse ao treinador o que sentia e, como ele fala muito com os atletas, começou a ver o que faltava, o que funcionava em mim e pôs no plano de treino. Quando fomos fazer os testes - nós treinamos três semanas e na quarta semana fazemos os testes - ele viu que eu estava pronta para fazer os mínimos, só precisava de competir. Dali as coisas começaram a sair e eu nem estava a acreditar», afirma.

Com o sonho olímpico agora real, Liliana só lamenta que Teresa Machado, vítima de doença oncológica há um ano, não tenha assistido ao que ela mesma já preconizava para si. «Quando em mais nova treinava com a Teresa em estágios, ela dizia sempre que eu tinha talento, que podia bater o recorde nacional, que ficaria contente se eu batesse. Quando senti que estava perto fiquei contente, só que na altura ela já estava muito doente. Quando bati foi uma emoção grande. Não estava à espera, nunca pensei chegar aos 63 [metros], que fará 66», referiu, reforçando a aprendizagem com a antiga atleta do Sporting.  

«Eu via o treino dela e ficava cansada só de ver como ela treinava. Houve um estágio em que treinei com ela, que saí de lá cheiinha de dores no corpo. E só foi técnica! Até fiquei dois dias sem lançar, que a virilha estava mesmo dorida. Ela falava muito comigo, mas eu não tinha a maturidade que tenho. Hoje percebo tudo o que ela transmitia», revela.

Liliana Cá ao lado do treinador Luís Herédio no último sábado, em Leiria, após o recorde nacional

A menina eclética que parou pelos filhos e voltou para singrar

Liliana cedo se tornou promessa nacional a lançar. Cedo também começou no desporto. Deu os primeiros passos no atletismo no antigo Centro de Atletismo do Vale da Amoreira (CAVA), passando depois para o Grupo Recreativo Quinta da Lomba bem jovem. Experimentou provas de estrada, corta-mato, lançamento do peso, mas foi no disco que singrou. Depois de dois recordes nacionais em 2003 e a participação nos Mundiais de juniores em Itália, em 2004, rumou ao Sporting no final deste ano.

Com alguns recordes nacionais a sucederem-se, presenças em provas internacionais e Teresa Machado na fase final de carreira, Liliana projetou-se com a figura feminina do disco em Portugal até ao aparecimento de Irina Rodrigues. Foi campeã nacional em 2009 e 2010, mas parou nesse ano, após ir aos Europeus, por opção. «Eu já estava um pouco cansada, mas mais por injustiças que tinham acontecido e também por problemas pessoais», lembra.

Foi com essa paragem que decidiu ter o primeiro filho em 2011. Com a ida da mãe para Londres, não quis ficar sozinha em Portugal e rumou a terras de Sua Majestade. «Encontrei um clube [o New Ham], deu-me saudades e voltei a tentar. Só que não gostava muito do método de treino, era só duas vezes por semana e o treinador, basicamente, só ficava comigo nos lançamentos e não passava planos de treino. Não gostei muito e acabei por parar».

Em 2012 houve ainda um breve regresso a Portugal antes de mais quatro anos a viver em Inglaterra. Tudo devido a um contacto do Benfica, numa ligação de poucos frutos. «Mandaram um mail a perguntar se eu queria ir para o Benfica. Eu aceitei. Dali, aconteceram confusões e não acabei o contrato com o Benfica, que também era só contrato de boca, não tinha assinatura, nada. Voltei para Londres quatro anos. Quando decidi voltar para Portugal, foi aí que comecei com o Herédio», partilha.

Luís Herédio. O técnico por quem Liliana tem «muito apreço» e que encontrou no final de 2016 quando voltou a Portugal, numa conversa inesperada que acabou com a sua ida para o Novas Luzes.

«Não estava a pensar voltar para o atletismo, mas encontrei o Herédio, meti-me com ele e ele olhou para mim: ‘Liliana!’ (risos). Porque eu tinha acabado de ter o meu segundo filho e ele disse: “estás tão cheiinha, tão gordinha”. Perguntou se não pensava voltar para o atletismo. Eu disse que não, mas ele disse para voltar. Sugeriu ir para o Novas Luzes, onde podia começar com calma. E dali começou», conta. «Ele teve muita importância. Começámos no final de 2016 e, em dezembro, a minha mãe faleceu. Ele não me deixou ir abaixo, disse que tinha dois filhos para criar e estava sempre como um amigo. Ele dizia: sempre que tiveres raiva ou tristeza, anda ao treino e descarrega tudo. Houve uma altura que eu fiquei sem comer e a comida que ele levava, dividia comigo, para não me sentir fraca», sublinha.

Liliana Cá, nos Europeus de atletismo de 2018, em Berlim. Foi sétima na final (Matthias Schrader/AP)

Tóquio no futuro, a dificuldade do passado

Sem colocar grandes metas após o recorde nacional e Tóquio, até porque até lá só quer «treinar e focar», Liliana crê que pode chegar no mínimo à final. Nesta altura é a segunda do ranking mundial em 2021, só atrás da cubana Yaimé Pérez. Por outro lado, também espera que Irina consiga os mínimos. «Vai-me ajudar bastante se ela conseguir, porque seremos duas contra o resto do mundo».

Mas culminar com Tóquio não encontra em Liliana só treino e trabalho. O trabalho que já lhe valeu o sétimo lugar nos Europeus de 2018 em Berlim. E prata nos Jogos do Mediterrâneo, em 2018, em Tarragona.

Tem também um passado difícil, numa família que se instalou em Portugal para procurar vida melhor. «Os meus pais nasceram na Guiné-Bissau e ambos tiveram documento português cedo porque o meu pai era militar português na Guiné-Bissau. O meu pai perdeu uma perna e mandaram-no para o Hospital Militar para se tratar e como tinha de fazer tratamento por cá, decidiu ficar e mandou vir a minha mãe», recorda.

Ultrapassou, como todos, a adaptação dos treinos em casa devido à pandemia. Mas também admite que o adiamento dos Jogos pode ter ajudado a ter uma qualificação com melhor marca. Ainda para «melhorar a técnica e a estrutura física». Sem público de fora previsto no Japão, espera que Portugal e os portugueses olhem e apoiem mais o atletismo.

Para já, em pleno Alto do Lumiar, na Pista de Atletismo Municipal Professor Moniz Pereira, Liliana continua a treinar horas a fio, de segunda a sexta.

Por Cá. Para ir lá, ao Japão, competir a sua primeira olimpíada.

O lançamento que ditou o novo recorde nacional: